16| A cripta

Aquelas vozes desconhecidas me incomodavam, por horas me revirei na cama até perceber que não dormiria até que os estranhos fossem embora. Consegui levantar da cama sem acordar Lili e joguei as cobertas por cima dela para que não passasse frio. Acabei dando um encontrão em Lieff quando sai, que esbarrou em meu ombro e não parou para se desculpar, apenas soltou um resmungo. Tive vontade lhe dar uma surra, mas me concentrei nos estranhos. Eles não representavam uma ameaça, seus cheiros não me diziam muita coisa e tampouco sinalizavam perigo. As palpitações nervosas e o calor vindos de olhos verdes me diziam que aquele encontro estava desagradável e confuso. Quando seus batimentos ficaram mais acelerados, fui me aproximando silenciosamente da escada para tentar ver o que estava acontecendo.

Um deles já havia saído da casa, o outro ainda permanecia com ela. Parei na ponta da escada, vendo que Lieff estava parado no meio para observar algo. As palpitações nervosas e o calor foram se esvaindo aos poucos de olhos verdes, dando lugar a vibrações mais tranquilas. Lieff voltou a subir pisando forte, com um semblante zangado. Puxei seu braço para que ele olhasse para mim, mas ele conseguiu esquivar-se, me ignorando e seguindo para o quarto de Lili.

- Não – exclamei. – Ela está dormindo!

- Ah, deixe-me adivinhar – disse ele, parando com a mão na porta. – Foi você quem fez ela dormir?

Fiz uma careta por causa da pergunta que me pegou desprevenido, mas assenti.

- Quem são aqueles estranhos? O que queriam? – perguntei.

- Bem, isso eu não sei ao certo. Mas pergunte a Sora, ela saberá te dizer com mais clareza, afinal ela...

Ele parou de falar quando percebeu que olhos verdes subia as escadas. Ela olhou de mim para Lieff, e seguiu porta do quarto. Seus lábios comprimidos foram o bastante para perceber que ela havia escutado.

- Acho que eu estou chateando todo mundo hoje não é? – preguntou, em seguida entrando no quarto e fechando a porta.

- Certo, acho que não tenho escolha. Vou dormir no quarto debaixo, e não quero você espreitando pelo quarto de Lili – disparou.

- Tenho coisas mais importantes para fazer – falei.

- Tipo? – perguntou, erguendo uma de suas sobrancelhas brancas.

- Vasculhar a cripta, ver se encontro algo que possa me ajudar. E quando encontrar para onde seguir, vou embora daqui.

- Quer ajuda? – perguntou. – Se é para você sumir daqui eu te ajudo.

- Aceito.

A passagem da cripta ainda permanecia intacta. O lugar do meu primeiro encontro com olhos verdes. Lieff encontrou um machado para tentar tornar o buraco maior e facilitar nossa passagem. Quebramos boa parte do chão e adentramos na cripta, o começo de tudo. Lieff pegou um objeto que emitia luz, algo parecido com uma tocha, mas sem o fogo. Lanterna, foi o que ele me disse que era quando perguntei. Ele iluminou vários pontos da cripta até chegar ao túmulo da minha família. Ele pareceu surpreso e afastou-se, me dando um pouco de espaço. Passei a mão sobre a coroa de pedra acima da lápide de meu pai, pensando que um dia ela poderia ter sido minha. Ao ouvir Lieff pisar em algo, despertei do meu devaneio e olhei para ele, que removia algo do chão.

- Encontrei algo – falou. – Parece um broche.

Peguei o objeto de suas mãos e o examinei. Era realmente um broche ornamentado com uma coroa. Dois lobos entrelaçados sobre ela entravam em contraste com sua cor vermelha. Segurei o broche com força em minha mão, até sentir que estava me ferindo. O guardei entre minhas vestes e pedi que Lieff fosse adiante. Ele preferiu não me fazer perguntas sobre o broche, e agradeci em silêncio por isso. Paramos diante do meu túmulo, que estava quebrado e exumado. Ouvi um zunido em minha cabeça, rocei o dedo na orelha, fiquei tonto e logo minha visão começou a ficar turva. O rosto de Lieff agora era apenas um borrão, tentei me segurar em algo, mas não encontrei apoio.

"Esqueça esse lugar, não irá encontrar respostas aqui. Eu sou tudo que você precisa." esbravejou a voz da Besta em minha cabeça.

Senti que Lieff me segurava, tentei me livrar do torpor. Logo vieram as ânsias de vômito, meu estômago contraiu-se, mas não havia nada para sair. Meu corpo logo ficou mais frio que o habitual e senti arder onde olhos verdes me mordeu.

- Saia... – tentei falar para Lieff. – Saia daqui agora...

- O que? Não entendo – ele arfou, ainda ao meu lado no chão.

"Mate-o logo. Você não deve ficar aqui. Mete-o, mas não beba seu sangue. É impuro como o da irmã."

- CALA ESSA MALDITA BOCA – gritei. – FAÇA PARAR!

Pus as mãos ao redor da cabeça, na tentativa de que aquela voz não fosse ouvida pelos outros. Minha visão ainda estava turva, mas percebi que Lieff havia se afastado de mim e me observava assustado. O lugar onde olhos verdes me mordera agora estava dormente, a dor lancinante vinha dele. Engatinhei até meu túmulo com dificuldade, o zunindo em meu ouvido foi cessando aos poucos, mas ainda pude sentir que a Besta não havia partido.

"Você é um tolo. Será que vou ter que fazer tudo sozinho? Há quanto tempo você não se alimenta? Por que não mata logo todos eles? Beba o sangue, coma a carne." bradou novamente a Besta. Cheguei ao ponto em que não conseguia mais me mover, um pequeno filete de saliva desceu de minha boca. Passe as costas da mão para limpá-lo, me sentei e tentei me concentrar em conseguir falar com a Besta.

- Quem é você? – perguntei.

"Não sou ninguém" finalmente consegui estabelecer um diálogo com a Besta.

- Como se chama? – tentei parecer o mais confiante possível, mas não era possível esconder o nervosismo em minha voz.

"Eu tenho vários nomes, e nenhum deles você é digno de pronunciar." uma risada gutural pôde ser ouvida através da minha mente. Aquele som reverberou sobre as paredes da cripta, olhei para Lieff, que me devolveu um olhar aterrorizado.

- Me diga um deles – tornei a falar, ainda tentando manter a concentração. – Você é um demônio? Um espírito?

Não houve resposta, aquilo me deixou apavorado. Os zunidos cessaram por completo, a tontura esvaiu-se. Lieff veio ao meu encontro e me ajudou a ficar de pé, ele trazia uma expressão mista de medo e incompreensão. Passei a mão onde olhos verdes me mordeu, não senti nada, foi como se aquela parte do meu braço estivesse morta. Olhei ao redor e vi que algumas tumbas cederam com o impacto daquela voz. Pedi que Lieff se retirasse dali, mas ele não me ouviu, porque olhava horrorizado para meu pescoço.

- O que foi? – perguntei.

- Seu pescoço... – ele não terminou de falar, agora se afastando de mim.

Senti uma forte ardência no pescoço e logo depois uma dor lancinante. Pus a mão onde estava queimando, mas logo a retirei porque também queimei a palma. Lieff retirou sua blusa e a jogou para mim. Coloquei-a no pescoço e senti cheiro de fumaça, a blusa havia pegado fogo. Joguei a roupa no chão e apaguei o fogo com os pés. A ardência cessou tão rápido quanto veio, passei a mão pelo pescoço e senti minha pele mais maleável, um pedaço de couro morto veio junto com cinzas ainda mornas.

- O que foi isso? – perguntou Lieff.

- Não sei... o que tem em meu pescoço? – perguntei, temendo ouvir o pior.

- Tem algo escrito, eu acho – ele disse se aproximando de mim para observar melhor. Ele estendeu seu braço em direção ao meu pescoço, mas eu o afastei.

- Não, isso pode ser perigoso.

- O fogo já cessou – disse, agora puxando o resto de pele morta e cinzas.

- O que tem ai? – balbuciei.

- Tem algo escrito...

- Me diga o que tem escrito ai – grunhi, já impaciente.

- Guerreiro.

- Não entendo – murmurei. – Guerreiro?

- O que você era antes de acordar? – ele não desgrudou os olhos do meu pescoço, como se estivesse montando todas as peças desse quebra-cabeça.

- Eu não lembro... era só o filho do rei.

- Isso parece bastante com a marca que um escravo ganharia. Mas o que acabou de acontecer aqui? Uma hora você estava bem e agora você me aparece com essa coisa aí no seu pescoço. O que foi aquilo? Quem deu aquela risada?

- Depois – falei. – Quando eu estiver pronto você saberá.

Ele não falou nada e seguimos para fora da cripta. Deparamos com as duas garotas na porta do aposento, que agora parecia mais inclinado. Lili estava com a mão em seu queixo e me lançava um olhar assustado. Lieff passou por Sora sem lhe falar nada, ignorando-a. Ela tentou tocá-lo, mas ele soltou um resmungo e seguiu adiante.

Tentei fazer o mesmo, para evitar as muitas perguntas que viriam a seguir, mas Lili me segurou pelo braço e observou meu pescoço com preocupação. Pude sentir que ela estava aflita. Ela olhou em meus olhos e vi que precisava contar a verdade, a verdade sobre tudo. Deixamos olhos verdes sozinha e seguimos para seu quarto, onde ela pegou um casaco e avisou que íamos dar uma volta.

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