15| Suspeita número um
Haru miava na porta do quarto, Li ainda cochilava na cadeira. Tentei avaliar o que havia se passado nas últimas horas, mas não fui muito longe. O quarto de Lili estava silencioso e não consegui ouvir barulhos vindos de lá, as luzes também estavam apagadas. Decidi trocar de roupas antes que Li acordasse, mas apenas vesti um moletom banco por cima do top verde de lã grossa e continuei com o short curto. Desci para a cozinha e preparei uma porção de ceral de chocolate com leite. Haru veio me exigir sua ração molhada, seu pelo estava maior do que o normal e já começava a formar nós. Com tanto estresse ultimamente, tinha me esquecido completamente de Haru, pobre gato.
Liguei a TV e consegui colocar no noticiário local. Travis Tom, o jornalista bonitão, exibia uma matéria de assassinato hediondo. Fiquei aprumada sobre o sofá e aumentei o volume, Blizzard não era uma cidade tão grande, então todo mundo meio que se conhecia. As filmagens exibiam dois corpos largados no chão da floresta, em uma clareira familiar. Ao lado de Travis havia uma imagem com duas garotas sorridentes. Eu não as conhecia, mas lamentei por elas. Fiquei tensa quando percebi que a clareira de onde as filmagens vinham era a mais próxima de minha casa. Gelei. Isso significaria mais policiais batendo em minha porta e fazendo perguntas. Perguntas que ainda não foram respondidas iam vir à tona. Meus pais, o carro, Kalline e tudo o que eu mais queria esquecer.
Dei um pulo do sofá e fui até a janela, já temendo ver o óbvio. Luzes vermelhas e azuis eram refletidas nos gelos das árvores. Um pequeno helicóptero pairava sobre a clareira, iluminando todo o local. Tudo parecia estar silencioso, não ouvi nada além do gorgolejar de algumas corujas. Fechei a janela e afundei no sofá, de repente senti frio e medo. Desejei fugir daquele lugar apenas com a expectativa de mais policiais me interrogando. Olhei para o prato onde jazia a o cereal, não havia mais apetite, apenas medo. Como se estivesse previsto, ouvi batidas na porta. Me encolhi ainda mais no sofá, sabia quem era. Sabia o que ia me fazer lembrar. Sabia que tudo voltaria à tona.
- Sabemos que está ai Sra. Bloom – a voz grave do policial Chuck reverberou lá fora. Esperei, não estava preparada para mais uma enxurrada de perguntas. Como chegaram aqui tão rápido!?
- Vamos lá Sora, abra a porta – reconheci a voz de Charlie, o aprendiz de policial. Aquele merdinha não perdia uma oportunidade de me importunar.
- Vamos ter que derrubar essa maldita porta garota? – irritou-se o policial Chuck.
- Um... dois... – Charlie começou a contar – três...
- Só um minuto! – gritei.
Cerrei os dentes e me concentrei o máximo possível em não cair nos joguinhos deles. Pelo que conhecia desses caras, eles sugariam até a última gota do meu sangue. Levantei do sofá e ajeitei o short, fazendo-o sumir por entre o moletom longo. Caminhei para a porta e girei a chave, mas não abri. Segurei a maçaneta e fechei os olhos, suspirei e abri.
- Oi – murmurou Charlie. – Sinto algo diferente em você hoje, o que será?
- Boa noite para você também Charlie – usei o tom mais frio que pude.
- Muito bem, não viemos aqui para joguinhos adolescentes – rugiu o policial Chuck. – Temos assuntos sérios para tratar. Não vai nos convidar para entrar?
- Por mim vocês morreriam de frio ai mesmo – sibilei, lançando um olhar sombrio para os dois.
- Olha só a natureza assassina dela se revelando - zombou Charlie.
Fiz uma careta de escárnio para ele e dei espaço para a passagem. O policial Chuck entrou sorrateiro em minha casa, examinando cada centímetro da sala. Charlie entrou logo depois e não desgrudou os olhos dos meus, como se tentasse arrancar a verdade deles. Dei uma cuspida em seu rosto e ele tapou minha boca com força, espremendo minha bochecha com força. Me contorci por dentro quando ele me comprimiu contra a porta, mas não deixei transparecer. Ele levou a outra mão até sua arma que estava em seu cinto e me lançou um olhar ameaçador.
- Não deveria desacatar uma autoridade sabia? – sussurrou. Minha saliva escorreu por sua bochecha e foi parar no queixo. – Você já é minha suspeita número um Srta. Kisarague.
- Me solta – rosnei, quase não conseguindo falar por causa do aperto. – Você não é uma autoridade ainda.
- Ah, agora você me pegou – ele largou minha bochecha e exibiu um sorriso presunçoso, depois retirou um lenço do bolso do uniforme e limpou o rosto. – Quando estiver atrás das grades, sou eu quem vai lavar sua boca com sabão todos o dias.
Charlie ainda estava muito próximo e estremeci com a determinação em seu olhar. Ele me deu espaço para respirar e também saiu examinando a sala, mas sempre me lançando olhares inquisidores.
- Sora, quero que me diga o que sabe sobre o assassinato – a voz do policial Chuck rompeu o silêncio.
- Que assassinato? – balbuciei, percebendo o erro na mesma hora.
- Olha só, a assassina está assistindo sobre como sua obra foi bem sucedida – falou Charlie, apontando para a televisão que ainda dava cobertura ao caso.
- Eu não fiz nada dessa vez! – guinchei, o que foi um erro.
- E da outra? O que você fez? – disparou Charlie.
- N-nada! Eu não fiz nada antes e muito menos agora – gaguejei.
- Isso é o que você diz Sora, mas ainda estamos investigando sobre o caso. Mesmo que você tenha sido alegada inocente, ainda é a nossa suspeita número um.
Desejei que tudo aquilo acabasse logo, senti meus olhos arderem, mas me neguei a chorar na frente daqueles sacanas. Percebi que o único jeito de me livrar daquela situação era entrando no jogo deles e respondendo a todas as suas perguntas. Fechei a porta e passei por Charlie, que quase me fuzilou com os olhos. Pedi para que se sentassem e peguei um banquinho na cozinha, ficando de frente para eles e me preparando para a acareação. Não desliguei a televisão, aquilo poderia ser considerado um ato suspeito. Charlie pareceu perceber minhas intenções, pois minha postura me denunciava, eu geralmente sempre fugia de acareações.
- Que os jogos comecem – falou Charlie, me lançando um sorriso astuto.
- Muito bem Sora – começou Chuck, remexendo seu grosso bigode preto. – Como você sabe, duas garotinhas foram assassinadas na clareira mais próxima da sua casa – ele fez uma pausa, me lançando um olhar interrogador. – Luscka, de dezesseis anos, teve seu crânio comprimido contra o gelo. Lysie, de onze anos, teve seu pescoço quebrado....
- Pode ter sido uma queda, afinal, elas estavam patinando no gelo! – interrompi.
- Deus do céu, olhe só! – riu Charlie. – Ela sabe de todos os detalhes sórdidos.
- Não me interrompa Sora, isso pode te prejudicar – falou Chuck, repreendendo. – Continuando, ainda não calculamos há quanto tempo as garotas estão mortas. Mas o mais estranho de tudo, é que elas estavam quase sem sangue, como se tivessem sofrido alguma hemorragia. O que você tem a nos dizer sobre isso?
- Nada – disparei.
- Muito bem. O que você fez naquele dia Sora? Como matou tod...
- Cala a boca Charlie! – ralhei, quase me levantando para esganar aquele merdinha. – Cala a droga dessa maldita boca!
- Já chega! – disparou Chuck. – Vejo que aquilo ainda lhe afeta. Olha, só queremos descobrir o que houve com aquelas meninas. Você não sabe o que a família está passando no momento, foi uma grande perda.
Fiquei desconfortável, me remexi no banco sobre aqueles olhares acusadores. O policial Chuck não era uma má pessoa, pelo contrário, era um dos homens mais justo que eu havia conhecido. Charlie só era um maldito filho da puta quando estava usando seu uniforme, ele era meu colega na escola de natação, mas deixamos de nos falar desde o fatídico dia do acidente. Ele cerrou o queixo e comprimiu os lábios, parecendo saber no que eu estava pensando. Desviei o olhar para a televisão que exibia um comercial de roupa íntima feminina. Charlie me acompanhou e desviou o olhar para o chão, parecendo desconcertado. Ignorei aquele babaca e encarei Chuck, que anotava alguma coisa em seu bloco de notas.
- Vocês não tem um mandato não é? – perguntei.
- Ainda não – falou Charlie. – Você está sozinha?
- Sim – menti.
- Acho que não – disparou.
- Ah, é verdade. Vocês estão aqui comigo – retruquei.
- Engraçadinha. Ouvi falar que os gêmeos vieram morar com você, é verdade?
- Ouvi dizer que você ainda mora com a mamãe, é verdade? – retruquei.
- Claro, porque eu não matei a minha – rosnou Charlie.
- Como você é ridículo – falei, contendo uma risada por conseguir afetá-lo. – Você não sabe nada.
- Mas vou descobrir – a certeza em sua voz me fez tremer por dentro. - E quando o fizer vou...
- Chega crianças – interrompeu Chuck, guardando seu bloco de anotações no bolso do casaco. – Não temos um mandato Sora, é verdade. Mas quanto mais adiarmos essa conversa, mais difícil será para você se livrar de nós.
- Tudo bem, mas eu repito, não tive nada com essas garotas. Muito menos as conhecia.
- Não estamos lhe acusando de nada no momento, só quero que nos dê algumas informações. Assim como também vamos passar e fazer as mesmas perguntas nas outras casas nas redondezas, nosso trabalho não se limita a prender suspeitos, nós temos que investigar.
- Certo – resmunguei.
- Muito bem Charlie, comece seu trabalho – ordenou Chuck.
- Vamos ver por onde começar – era possível sentir o divertimento em sua voz. – Deus do céu, olhe só! Vamos começar... por aqui – ele tirou um gravador do casaco.
- Por que você vai gravar essa conversa? – disparei.
- Porque precisamos de provas – respondeu. – Ok. Por onde você andou ontem, por volta das cinco da manhã?
- Em minha cama, dormindo. Ás oito sai de casa para fazer algumas compras e resolver minha matrícula na faculdade.
- Sozinha?
- Sim – menti, eles não podiam saber sobre a coisa.
- Estranho, achei ter visto você com um esquisitão enquanto patrulhava – ele voltou a me lançar aquele olhar severo e eu me encolhi por dentro. - E o que fez no restante do dia?
- Isso é invasão de privacidade – reclamei, olhando para Chuck.
- Apenas responda – disse ele.
- Eu dormi. O dia todo, até agora – o que era um pouco de verdade, eu não podia dizer que fui sugada para dentro da mente de um cara.
- Deus do céu, olhe só! Como ela dorme – zombou Charlie. – Pode mostrar as compras que fez? E a matricula da faculdade?
- Você não tem um mandato, então nada feito – falei.
- Certo, posso dar uma olhada lá em cima?
- Não tem ninguém lá – grunhi.
- Por enquanto é só – falou, finalizando a gravação. – Mas eu voltarei. Certo?
- Certo – mal acreditei que eles já estavam indo embora.
Eles levantaram-se do sofá e foram em direção a porta. O policial Chuck ainda sondou a sala enquanto teve tempo, mas Charlie permaneceu parado, olhando para uma foto na parede. Eu estava com meu pai naquela foto, tinha onze anos e havia ganhado uma medalha idiota de natação na escola. Ele passou para a segunda foto, onde eu estava com Kalinne e mamãe em uma praia. Chuck já havia saído e entrara na viatura que já estava coberta de neve. Ele deixou que Charlie fizesse todas as perguntas e suposições, talvez ele o estivesse treinando para assumir seu lugar. Charlie olhou para mim com tristeza e balançou a cabeça em negação.
- Eu me pergunto com você teve coragem, eu gostava muito do seu pai. Ele era como um pai para mim, um amigo – falou.
- Eu não fiz nada Charlie! – falei, ficando bem próxima para que ele olhasse para mim. – Eu não matei ninguém.
- Então me prove o contrário – sua voz saiu arrastada. – Depois daquele dia você não é mais a mesma. Não sai mais com os amigos, não foi mais para a academia de natação. Vive confinada nesta casa... você carrega culpa nos olhos. Me prove que você não é como dizem Sora. Eu não quero acreditar que a filha de Way é uma assassina.
- Olha, é melhor você ir. Está ficando tarde – falei, olhando para meus pés.
Eu sabia que Charlie estava certo. Meus olhos estavam carregados de culpa, sempre estariam.
- Sabe, sábado tenho o dia livre. Você pode ficar a vontade para sair e conversar comigo se quiser... se se sentir tensa ou quiser me contar algo é só ligar, acho que você ainda tem o meu número – disse, me surpreendendo. - Pode ficar tranquila, eu não vou como policial, e não vou repassar nada para o Chuck.
- Eu... ãnn é... – não sabia o que dizer, fiquei sem reação. Nunca esperaria isso de Charlie. – Tudo bem – mas no final de tudo, acabei concordando.
- Ah – ele também pareceu surpreso com minha resposta. – É... bem. Então tudo certo.
- Você tem certeza? – indaguei.
Ele coçou a cabeça e esboçou um sorriso sem graça. Movi o peso de uma perna para outra, me sentindo desconfortável. Charlie não parecia muito seguro com aquela proposta e sua hesitação em responder me deixou um pouco desconfiada. Quando abri a boca para mudar de ideia ele afagou meu ombro e me mostrou uma expressão confiante nos olhos.
- É claro que tenho – a buzina da viatura soou lá fora e ele voltou a colocar o gorro. – Bem, tenho que ir. Espero que ligue.
- Humm, certo – murmurei.
Charlie foi caminhando para fora e me deu uma última olhada antes de sair nevasca a fora. Me recostei na porta e pensei no que havia acabado de acontecer. Sai deslizando pela porta e sentei no chão, quando olhei para frente Lieff estava me observando da escada com uma expressão desconfiada no rosto. Senti algo dentro de mim de remexer e comecei a suar frio. Desejei profundamente que ele não tivesse escutado aquela conversa entre mim e Charlie, mas ele nada fez além de subir a escada e me deixar sozinha novamente.
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