13| Murmúrios Ruins
Recobrei os sentidos e me deparei com Li dormindo na cadeira de balanço ao lado da cama. Ainda era noite, achei que havia ficado desacordada por mais tempo. Girei a cabeça para o outro lado, sentindo a seda dos lençóis arrepiarem minha pele. A água no vaso de flores estava congelada, estranho. Não senti nenhum pouco de frio, pelo contrário, estava ótima e aquecida. Tirei as cobertas sobre mim e me descobri apenas com um top de lã grossa e um short curto, era estranho não estar sentindo frio enquanto uma nevasca esbravejava lá fora.
Levantei e fui ao banheiro na ponta dos pés para não acordar Li. Felizmente a porta não rangeu, fazendo-me lembrar do último incidente por causa dela. Olhei para a garota no espelho e notei sua pele um pouco mais pálida, mas fora isso tudo estava decididamente normal. Liguei a torneira e despejei água no rosto, estava morna e adorei sentir as ondas de calor. Depois de escovar os dentes, desci para comer alguma coisa, me sentia faminta e rezei para que Lili estivesse em casa. A cozinha estava deserta e com a luz apagada.
Andei sorrateiramente até a sala, passando pelo corredor que dividia a casa. Onde estaria Lili? Resolvi não chamar por ninguém, isso poderia despertar algum invasor se alguém estivesse espreitando a casa. Peguei a katana de meu pai, que ficava fixada na parede junto com um retrato em sua memória. Retirei a bainha e o som do aço arrastado pareceu ecoar por toda a casa. O brilho da katana era de cegar os olhos, apenas uma limpeza no começo da semana com óleo de cravo da índia era o suficiente para mantê-la brilhante e afiada. Serpenteei pelo corredor com passos silenciosos, estava tudo no breu e a única luz que invadia a janela era a da tímida lua que nascia no céu.
As sombras me ocultavam facilmente. Fiquei em posição de alerta. Meus sentidos não me alertavam em nada, mas algo deveria estar errado. Fiquei próxima da sala e ergui a katana a altura dos cotovelos. Esguiei sobre a parede e tateei até encontrar o interruptor. Os pelos de minha nuca se eriçaram, senti a presença de alguém logo atrás de mim e preparei o ataque. Lancei o braço que segurava a katana para trás e chutei o ar ao mesmo tempo, não havia ninguém ali. Mãos fortes seguraram meu pulso com força, senti minha mão ceder e a katana cair com um baque surdo no chão.
- Está ficando louca? – ouvi uma voz sussurrar em meu ouvido.
- Me largue! – ralhei.
- Vou largar, quando você se acalmar – era possível sentir seu hálito gélido.
- Quem é você? – tentei me livrar daquelas mãos, mas agora estava espremida contra a parede.
- Sei que só estamos convivendo por alguns dias, mas achei que você já soubesse como é minha voz. Se me odeia tanto, como pode ter me esquecido?
- Coisa? – desejei que fosse, pois comecei a suar frio e era possível ouvir as batidas do meu coração.
- Pare de me chamar assim – disse, largando um de meus braços.
- Ah! – com a mão livre tinha conseguido ligas as luzes. – Está diferente...
- Lili cortou meu cabelo, e também as unhas – ele exibiu suas mãos, agora com as unhas cortadas, mas ainda continuavam negras.
- Ah... – me senti uma idiota com aquela situação, meu outro pulso ainda preso entre suas mãos começou a doer. – Você pode me soltar agora...
- Certo – grunhiu, fazendo uma careta.
- Bem, isso foi... – reparei que a katana ainda estava no chão, agachei e consegui pega-la. – Isso foi estranho. Mas onde está Lili?
- Ela disse que tinha que resolver alguma coisa. Algo sobre ter que conversar com a mãe. Sabe, tenho que contar algo para Lili, a mãe dela...
Procurei pelo sofá meu celular que começou a tocar. A Coisa olhou para mim, fazendo uma careta carrancuda enquanto eu me curvava para frente. Por um momento fiquei constrangida por estar usando aquelas roupas na frente dele. Pequei o celular e atendi, me curvando para detrás do sofá, para que a Coisa ficasse fora de meu alcance de visão.
"Sora? É você?" – era Dandy.
"Sim, sou eu. O que você quer?" – escutei minha voz sair esganiçada.
"O que eu fiz agora?"
"Ah, nada. Desculpa, não quis falar assim com você. É que estou em uma situação complicada agora." – De repente recordei da cena no lago. Fiquei mais constrangida ainda por me dar conta só agora que ele também era um homem, apesar de bem estranho.
"Quer que eu ligue outra hora? É que consegui comprar aquela katana que você queria. Vai precisar dela quando quiser ver seu criador".
"Oh! Ah muito obrigada Dandy Te espero aqui um dia desses, vem me visitar. Tenho que desligar, até mais!"
Não entendi o que ele quis dizer com aquilo, e não esperei que Dandy se despedisse e encerrei a ligação. Fiquei sentada por alguns instantes detrás do sofá. Senti o celular vibrar e vi que era uma mensagem de Dandy "Cruel". Sai detrás do refúgio e a Coisa ainda estava no mesmo lugar, me olhando com sua careta que já estava se tornando habitual. Contornei o sofá e tentei passar o mais longe possível dele, andando em passos ligeiros. Ele percebeu o que eu pretendia e barrou minha passagem para o corredor, com os dois braços abertos.
- Por que você está fazendo isso? – perguntei.
- Por que temos que conversar – ele estava mais carrancudo do que antes.
- Até que tentamos, mas você me sugou para dentro da sua mente – ele pareceu afetado com o que eu disse, mas logo voltou a fechar a cara.
- Não quis fazer aquilo, mas aconteceu. O que você viu? – perguntou.
- ÃNN... eu vi você e Pru... quer dizer... – aquilo era constrangedor para dizer, tentei me concentrar e respirei fundo. – Eu vi você e uma garota tomando banho no lago e depois ela te deu um beijinho.
- O que? Não acredito... – ele passou a mão pelos cabelos recém-cortados e olhou para mim com uma expressão desconcertada no rosto. – Você só viu isso? Somente isso?
- Ah não. Eu vi que alguém espreitava vocês. Quando os acompanhei saindo do lago a última coisa que vi foi que uma sombra estava vigiando. Tentei me aproximar dela, mas acordei.
- Por que não me disse isso antes? – gritou ele, vindo em minha direção e ficando a centímetros de mim. – Isso pode nos ajudar a descobrir o que aconteceu comigo, e com você também!
- Comigo não houve nada, é claro – falei, esboçando um sorriso nervoso, mas ele se foi tão rápido quanto veio. O morto-vivo agora estava muito próximo, tentei me encolher, mas ele pegou meu braço e o segurou com força.
- Me pergunto até quando você vai fugir – meu braço já estava ficando dolorido.
- Me solta, está me machucando! – ralhei.
- Não! – gritou. – Você tem aceitar! Tem que aceitar que você tem algo comigo, sobre o que aconteceu comigo!
- ME LAAAAARGA! – gritei, mas ele apenas me machucou mais. Tentei fugir de seu aperto e correr para o quarto, mas ele segurou minha cintura com a outra mão e me imprensou contra a parede.
- Não quero te machucar, mas vou fazer se você não me ouvir – sibilou. Pude sentir a fúria em sua voz.
- Tudo bem, vou te ouvir – menti. Quando ele afrouxou aperto, vi minha oportunidade ali.
Dei um soco em seu rosto e ele tentou me agarrar novamente. Saltei para cima dele, que não previu o ataque e não conseguiu me segurar a tempo. Caímos um por cima do outro, rolei para o lado e tentei levantar, mas seu braço me alcançou e fui puxada de volta. Fui embalada em seus braços. Depois ele ficou em cima de mim, impossibilitando qualquer fuga. Tentei mexer as pernas, mas ele era muito pesado. Abri a boca para gritar, mas seu braço cobriu minha boca, e então eu o mordi.
- AAAREEEEE! – gritou quando cravei meus dentes com toda a força que tinha nas mandíbulas. Ele tentou afastar minha cabeça, mas o mordi com mais força, tentando arrancar um pedaço daquele cretino.
- Sua bruxa, me largue. Posso te matar se quiser! – ralhou, puxando meus cabelos para trás, o que só me fez cravar mais ainda os dentes. Senti um gosto metalizado e percebi que ele estava sangrando.
- Você tem sangue? – perguntei, ficando acuada no canto quando fui liberada.
- Agora sangro – rosnou, olhando para o ferimento em seu braço. – Você morde melhor do que eu.
- Não ouse nos comparar. Você é nojento...
- Já falei para parar de me chamar assim – grunhiu.
- Idiota! – consegui cuspir em seu rosto, ele me agarrou antes que eu conseguisse ficar de pé e fugir. – Me larga!
- Isso não foi uma coisa boa – ele esfregou o rosto no top para limpar onde eu havia cuspido. A vontade de gritar foi imensa, porque seu nariz roçou em meus seios e fiquei enojada – Eu só quero conversar. Pode ser?
Engoli em seco e assenti. Fui até o canto da parede. Ele engatinhou até mim e sentou-se ao lado. Ficamos escorados na parede, o silêncio ficou tenso. Virei para encará-lo, mas ele já me olhava. Observei seu braço e vi ali uma ferida feia, me sentindo culpada no mesmo instante. Pequenas bolhas de sangue começavam a brotar no ferimento. Criei coragem e peguei o seu braço, examinando com curiosidade aquele sangue escuro. Não consegui explicar minha vontade de prova-lo, então passei o dedo pelo sangue e o levei a boca. Ele ficou aturdido com o que eu tinha feito, tentou me impedir de provar o sangue, mas já estava feito.
- Sora, não... – disse.
- Relaxa. Não sou nenhuma sanguessuga.
Ele pareceu ofendido com o que eu disse e fechou a cara novamente. Fiquei irritada com aquela careta carrancuda e cutuquei sua ferida com o dedo. Ele pigarreou e tirou o braço de mim. Ouvimos um barulho de pneus arrastando, depois passos. Eu sabia que era Lili, pois ninguém além de mim tinha as chaves da casa. Quando a porta abriu, nos levantamos, peguei minha katana e a coloquei de volta na bainha. Lili parou para nos observar, seus olhos foram de mim para a Coisa, depois para a katana e a ferida no braço dele.
- Ok. O que aconteceu enquanto eu estive fora? – perguntou, pondo a capa de chuva no sofá, depois se virando para nós.
- Nada – falamos em uníssono.
- Certo. Por que sua boca está suja de sangue Sora? Ah sei, me deixe adivinhar. Está pegando os hábitos de Nero não é? Legal, eu gostaria de aprender também, morder e sugar sangue deve ser tão divertido. Agora, se vocês me dão licença, estou exausta e quero descansar.
- Lili... – tentei falar algo, mas ela passou por mim e evitou meu toque.
Ela subiu as escadas com pressa e a Coisa foi em seu encalço. Fiquei com cara de idiota e me sentindo como uma por não perceber que minha melhor amiga não estava bem. Ela havia contornado toda a situação, situando todos em seus devidos lugares. A culpa foi crescendo quando percebi que agora era Lili que precisava da minha ajuda, mas foi a Coisa que percebeu isso primeiro. Agora ela estava despejando seus problemas para um estranho, um estranho que sabia ouvir. Eu era uma péssima amiga.
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