27. A TEMÍVEL FAMÍLIA MILLER


Decido que também não suporto mais a situação com os meus pais e acompanho Caellum até minha antiga casa ao final da tarde, depois de ter recuperado um pouco da compostura.

Ao meu lado em seu carro, o lorde Maximoff me olha com preocupação quando para o veículo na frente do lugar que costumava ser meu lar, o qual contemplo agora com certo estranhamento. É o mesmo lugar de dois meses atrás, mas não parece mais que representa a mesma coisa para mim. Não consigo mais enxergá-lo como um refúgio.

Sem falar nada, Caellum desliga o carro e segura a minha mão, o que me leva a desviar o olhar da casa para ele.

"É a primeira vez que você me pede para parar aqui e não duas ruas abaixo", o lorde percebe, resgatando na minha memória as vezes em que ele me deu carona no passado e temi que  fosse visto por meus pais.

Parece tão bobo agora.

"Eles já sabem sobre você", respondo o óbvio. "Outras coisas me dão mais medo agora".

"Como encontrá-los?".

Assinto, porque não é nenhum segredo. Eu estou morrendo de medo de vê-los, de como eles reagirão, do que dirão na minha frente e na presença de Caellum. Ao mesmo tempo em que conheço os meus pais há mais de vinte anos, depois de como eles passaram a agir por causa da gravidez, minhas certezas sobre eles passaram a ser mínimas.

"Eu posso entrar sozinho", Caellum fala. "Você já está vivendo sob fortes emoções há muito tempo, Mimi, e isso não te faz bem. Nem aos bebês".

Ele tem razão, de certa forma. Estar sob fortes emoções não é recomendado. Grávidas necessitam de tranquilidade. Mas acho que nunca estive totalmente tranquila desde que Tico e Teco passaram a existir, porque uma parte minha sempre esteve inquieta sobre os meus pais.

"Sei que está preocupado, mas essa conversa é muito mais minha do que sua", respondo. "Apesar do medo, preciso passar por isso. Só me dê uns minutos".

Caellum não contesta.

Ele permanece segurando a minha mão enquanto fico quieta, buscando dentro de mim uma coragem mínima, mas que seja suficiente para que eu saia do carro e entre na casa.

Ela vem quando percebo que não tenho nada a perder: essa conversa pode deixar as coisas como estão ou pode fazer os meus pais perceberem o quanto estão sendo cruéis comigo. Ou nada muda, ou ganho o que tanto quero.

"Vamos".

Retiro o cinto-de-segurança e Caellum me acompanha. Depois nós dois saímos do veículo, ele volta a segurar minha mão enquanto atravessamos o gramado e não a solta quando toco a campainha e aguardamos.

Apesar de uma parte minha achar que tenho o direito de apenas entrar como sempre fiz ao invés de aguardar que abram a porta para mim, não me sinto mais como uma moradora e sim como uma visita indesejada.

Isso fica ainda evidente quando a porta se abre e dou de cara com meu pai: estatura baixa, cabelos escuros com fios brancos, olhos castanhos-escuros, pele clara e levemente enrugada, roupas sociais que usa para trabalhar no banco e expressão severa.

O meu coração para de bater por alguns segundos.

"O que foi que você veio fazer aqui, Miranda?" Sua voz soa tão mordaz quanto na ligação de mais cedo, quando ele se lembrou da minha existência apenas para me atacar.

"Eu posso entrar?" Decido ignorar o fato de que pareço patética perto dele, porque estou tentando segurar a vontade de chorar que meu próprio pai me causa.

"Não é bem-vinda aqui".

"Então quer que os vizinhos fiquem sabendo que está rejeitando a sua própria filha grávida?" Caellum acaba intervindo. "Porque sei que nada o preocupa mais do que sua imagem de bom cidadão, senhor Miller, e nós não vamos embora sem que tenhamos uma conversa".

Meu pai só parece notar a presença do meu acompanhante agora, ao qual dirige um olhar de desprezo. Apesar de nunca tê-lo visto pessoalmente, sei que o reconhece ou ao menos deduz quem ele é por estar segurando a minha mão.

"Não é muito imprudente da sua parte me aparecer aqui depois de ter corrompido a minha filha?".

"Então ainda sou sua filha, mesmo me tratando como menos que nada?".

Meu pai volta a me encarar. Para além da carcaça rabugenta, ele parece decepcionado e tão cansado disso tudo quanto eu.

"Apenas vá embora, Miranda".

"Não", não sei de onde arranjo coragem para rebater quando nunca fiz isso, mas arranjo. "Precisamos conversar. Eu não vou embora sem que fale comigo".

"Nós não temos mais nada para conversar", ele retruca. "Você se entregou para o primeiro que apareceu, ficou grávida e me envergonhou diante da nossa comunidade. A partir do momento que se achou adulta o bastante para isso, deixou de ser minha responsabilidade".

"Isso é ridículo!" Falo o que sempre quis falar sobre esse pensamento do meu pai, porque perdi a conta de tudo o que deixei de viver e do quanto fui reprimida por causa dessa comunidade e de tradições que não deveriam mais ter espaço em pleno 2025. Foi por medo do que essas pessoas pensariam que eu não me livrei de Landon antes, como deveria.

Papai não fala nada, mas faz menção de fechar a porta e só não o faz porque Julie surge de repente, passa por ele e me agarra em um forte abraço.

"Mimi, você veio!" Ela grita, feliz. "Eu tive tanta saudade. Tanta".

Abraçar minha pequena libera as lágrimas que vinha contendo, porque a saudade que me toma é de uma grandeza que nunca senti na vida.

"Eu também senti saudade, Unicórnio".

Fico tão concentrada em abraçar Julie, sentir seus bracinhos ao meu redor e me surpreender com o fato de ela, aparentemente, ter crescido e agora bater em meu peito que só noto a presença da minha mãe quando ela fala:

"Entrem. Nós vamos conversar".

Por um momento, acho que imaginei coisa e acho que meu pai pensa o mesmo, pois compartilhamos de expressões surpresas. Minha mãe indo contra ele? Isso é novo, mas está acontecendo. Juliana Miller afasta mais a porta para que eu e Caellum possamos entrar.

"Solte a sua irmã, Julie. Ela não vai desaparecer", mamãe ordena.

Minha irmã não gosta nem um pouco da ideia. Ela me encara como se eu pudesse mesmo desaparecer, então ofereço a ela a minha mão livre para segurar.

"Não vou embora agora, Unicórnio".

"O que pensa que está fazendo?" Meu pai finalmente sai de seu estado de choque e questiona minha mãe, contrariado.

"Quero ouvir Miranda", ela responde sem olhá-lo. "Essa casa também é minha e posso receber quem eu quiser. Você pode sair, se não quiser ouvi-la".

"O que...".

Definitivamente, não parece a mesma mulher que me largou nos Kannenberg e depois desligou uma chamada de vídeo na minha cara. Pergunto-me o que mudou.

Ignorando meu pai, entro na casa ladeada por Caellum e Julie.

Por dentro, nada mudou. O pequeno corredor, a escada de madeira, a sala com sofás cinzas e paredes brancas... A única mudança mínima que consigo enxergar é que o quadro com a foto da nossa família foi retirado do lugar em que costumava ficar pendurado, ao lado da porta.

"Sentem-se", minha mãe indica os sofás. Ela parece nervosa agora, principalmente quando olha para Caellum. "Pode nos deixar sozinhos, Julie? É conversa de adultos".

"Não quero deixar a Mimi, mãe!" Minha irmã rebate em um pequeno ato de rebeldia. Ela me olha com um misto de busca por apoio e curiosidade. "É verdade que eu vou ser titia, não é?" Julie olha para a minha barriga que, apesar de avantajada, está disfarçada pela roupa que uso.

"É verdade", não sei como ela soube, se nossos pais a contaram, se ela ouviu escondida, se leu na internet... Mas Julie fica feliz com a novidade.

"É menino ou menina?".

"Os dois".

Os olhos de Julie crescem com a novidade, assim como seu sorriso.

"Os dois?" Ela se empolga. "E como vão se chamar? Ainda vão demorar para nascer?".

"Julie", nossa mãe interrompe sua torrente de perguntas ao usar o tom de voz repreendedor que, em um passado não tão distante, me gelava a espinha. "Quarto. Agora".

Minha irmã ainda parece querer contrariar (ela sempre foi mais corajosa do que eu) e me olha em busca de apoio.

"Vou ao seu quarto quando a gente acabar", digo.

"Promessa de dedinho?".

"Promessa de dedinho".

Juntamos nossos mindinhos, o que parece satisfazê-la. Julie me dá mais um abraço, beija meu rosto, olha para Caellum com curiosidade e depois sai andando e sobe a escada. Sei que vai me perguntar sobre ele depois.

"Gêmeos?" É a primeira coisa que a minha mãe me pergunta quando a criança sai de cena.

Esse detalhe não foi divulgado ao público ainda, o que justifica a sua surpresa.

Eu afirmo ao assentir.

"Gêmeos".

Ainda presente na sala, apesar de não ter se sentado como o resto de nós, meu pai bufa.

"Vá direto ao ponto, Miranda", Mark Miller diz. "O que você veio fazer aqui? O que ainda há para ser dito?".

"Entendo que o senhor seja um homem tradicional, mas não pode ser menos intragável?" Caellum questiona.

"Estou falando com a minha filha".

"Ainda sou sua filha?" Repito a pergunta que fiz antes de Julie e mamãe aparecerem. "Ou sua?" Encaro a minha mãe que, apesar de parecer mais aberta a me receber, preferiu acatar o lado do meu pai e me deixar só. "Porque não consigo entender o modo como agem só por causa de um erro".

"Um erro?".

"Engravidei sem estar casada ou mesmo em um relacionamento sério, papai, é verdade", respondo. "Mas é só por isso que mereço ser expulsa de casa, tratada como menos que nada por vocês? Sem falar em tudo o que o senhor me falou por causa do Landon".

"Linda Carter veio à nossa casa para nos dizer que você quis se vingar de seu filho e o denunciou à polícia porque ele tentou falar com você, como queria que eu reagisse?".

"Perguntando o meu lado para descobrir a verdade, porque o Landon me machucou", retruco. "Eu o denunciei porque ele não tinha nada que ter me abordado, falado comigo e muito menos me segurado quando não somos nada".

"Nossa família é amiga dos Carter, Miranda. Ele só tentou falar com você. Não percebe o quanto está exagerando?".

Diante da descrença dele e do modo como vê as coisas, fica mais fácil de entender o porquê a Miranda de dezoito anos ficou quieta e não disse nada a respeito do acidente. Quem acreditaria nela quando Landon sempre agiu como o homem perfeito?

"Se visse as imagens de segurança, não acharia um exagero", Caellum volta a falar. "Não entendo como pode ser frio com a sua própria filha, senhor. Aliás, os dois", ele mira minha mãe, que ao menos tem a decência de parecer envergonhada.

"Fui cruel com a Miranda, é verdade", Juliana reconhece. "Não quis contrariar meu marido e achei que, se deixasse o tempo passar, tudo se resolveria sozinho. Fui tola oa tentar evitar um conflito e peço perdão".

Apesar de parecer arrependida, não consigo ceder tão fácil à Juliana. Minha mãe pode não ter tido intenção ao me magoar, mas ainda me magoou muito. Deixou-me sozinha para enfrentar o inferno, e isso é algo que não posso apenas relevar, ainda mais quando Julie também sofreu no meio disso. Não é assim que funciona.

"Ainda não disse porque veio aqui", papai fala. "Quer o nosso perdão? Quer que a gente lhe receba de volta estando grávida de gêmeos?" Ele desdenha, como se fosse um pedido ridículo.

"Eu não espero nada disso de vocês dois, na verdade", respondo. "Só quero que parem de me ignorar e tratar mal. É pedir muito? Não precisam me dar nenhum apoio financeiro, se é o que os preocupa, e não precisam me levar para os encontros da comunidade ou falar sobre mim para seus amigos cujas opiniões levam tanto em conta".

"Para estar desdenhando de dinheiro, suponho que vai ser sustentada por esse aí", ao que parece, essa é a única parte em que meu pai consegue focar.

"Vou cuidar da Miranda e dos nossos filhos, é verdade, mas não sustentá-la. Sua filha tem planos de finalizar a faculdade e trabalhar na área que sempre quis, crescer sozinha".

"Grávida de gêmeos?" Mark não cede. "Impossível".

"Não vou ficar grávida para sempre", rebato. "E de que lhe importa como vou me sustentar? Não pareceu minimamente interessado quando me expulsou de casa com uma mão na frente e outra atrás".

Isso deixa a sua carranca mais evidente, porque é uma verdade que mexe com a sua autoridade.

"Essa casa também é minha", mamãe fala de repente. "E sua, Mimi. Se quiser voltar...".

Balanço a cabeça em negação. Isso era o que eu mais desejava ouvir desde que saí daqui para passar um tempo com os Kannenberg, mas agora percebo o inferno que seria. Meu pai jamais me deixaria em paz estando sob seu teto e teríamos torta de climão diariamente para o jantar.

"Eu estou bem, mãe".

"Vivendo de favor com os Kannenberg?".

"Morando comigo, na verdade", Caellum informa.

Isso os pega de surpresa também.

"Estão vivendo juntos?".

Ah, a família tradicional Oriana...

"Não é como se pudéssemos fazer mais do que já fizemos", dou de ombros, indicando minha barriga.

Mamãe fica vermelha e meu pai fica ofendido.

"E vem para cá querendo que sejamos compreensíveis?" Mark questiona.

"Sejamos honestos, não há mais nada a fazer sobre eu estar grávida", retruco. "Os gêmeos virão. Vocês só têm que decidir se vão estar na minha vida para conhecê-los ou não. Eu estou cansada de me sentir dependente de vocês, de que me perdoem".

Aos poucos, percebo o quão tolo foi o medo que cultivei dessa conversa ao longo do tempo, porque não me sinto mais pequena para enfrentar meus pais. Não com Caellum ao meu lado, e Caeli e June sendo mais importantes.

"Não gosto nem um pouco da ideia de que more com alguém com quem não tem qualquer compromisso", meu pai diz, e é como se não tivesse escutado nada do que eu disse.

Reviro os olhos.

"Somos namorados", respondo. "E ele é pai dos meus filhos".

"E pretendo me casar com Miranda um dia, se isso te importa tanto", Caellum acrescenta, o que me pega de surpresa.

Apesar dos pedidos de casamento que me fez, sempre pensei que foi só por causa dos bebês e, embora saiba que tem sentimentos por mim agora, casar por causa deles ainda não foi uma pauta nossa. Estamos namorando há menos de um mês, oficialmente.

"Com casamento ou não, pretendo conhecer meus netos", mamãe declara. "Vou te apoiar daqui para frente, Miranda. Sei que não posso fazer nada sobre o tempo em que esteve sozinha, além de me envergonhar por ter sido covarde, mas... Se é mesmo da sua vontade, quero estar na sua vida e das crianças".

Não acho que posso perdoá-la agora. A mágoa ainda é grande. Porém, ouvi-la ceder é como um desejo realizado e não escondo isso. Olho-a com o máximo de carinho que consigo.

"Obrigada, mamãe".

Meu pai, por outro lado, não parece pensar da mesma forma.

"Faça o que quiser", ele diz. "Ainda não consigo perdoá-la, mas como sua mãe está repetindo ao longo da conversa, essa casa também é dela e não posso fazer nada sobre isso".

Ele se retira da sala depois disso, deixando para trás um clima pesado. Ainda existe muita coisa entre nós que não foi dita, mas eu não finalizar a conversa sendo expulsa de novo parece um lucro a se levar em conta.

Sinto-me exausta.

"Eu vou fazer um chá", mamãe fica de pé. Ela parece não saber o que fazer na minha presença e, tampouco, na de Caellum. "É melhor você ir ver a Julie, como prometeu".

"Sim, senhora".

Assim que ela segue para a cozinha, noto que a mão de Caellum ainda está segurando a minha.

"Isso foi difícil", comento.

"Mas terminou bem".

"Mais ou menos".

Estou pensando no meu pai e acho que ele sabe.

"Vá ver a sua irmã", Cal diz. "Eu vou falar com seu pai".

"Sozinho?".

"Quero falar algumas coisas".

"Não vai fazê-lo voltar atrás sobre deixar que a minha mãe faça o que quiser, vai?".

"Não", o lorde garante. "Só acho que ele precisa ouvir mais algumas coisas".

"Se pedir minha mão em casamento para o meu pai como se estivéssemos no século passado, eu te mato", o fato de ele ter tocado nesse tópico antes me faz desconfiar das suas intenções.

Caellum ri.

"Não se preocupe. Eu não quero ouvir um terceiro não seu nem tão cedo", ele fica de pé, solta a minha mão e me dá um beijo na testa. "Encontro você daqui a pouco, Mimi".

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