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05 de abril de 2008.

Eu estava em frente ao único espelho grande da casa, que ficava no quarto da minha mãe, tentando ajeitar uma gravata. Em toda a minha vida, aquela era a terceira vez que usava aquele tipo de vestimenta; as vezes anteriores tinham sido na aula da saudade e na minha formatura: pronto. Tanto que nem existia aquilo no meu guarda roupa, tive que alugar.

Enquanto brigava com os nós e até desistir de utilizar aquele acessório, ouvia os gritos da minha mãe no quintal, ainda passando a roupa da minha avó.

- Cinco horas da tarde e eu aqui ainda parecendo uma louca, com esse cabelo horroroso... a unha toda malfeita, Deus me livre! Ninguém pra me ajudar com essas coisas aqui!

- Deixa essa roupa aí que eu passo, mãe! Affff! – esbravejei do quarto – Vai tomar logo teu banho!

- Euuu não! Agora que eu já tô terminando...

Fui até o quarto da minha avó, que estava esperando seu vestido.

- Então pra que ela gritou, se já tava terminando, né, vó?

- Deixe quieto, que hoje ela tá atacada. Vai ver se a Drica já tá pronta!

Drica, como sempre, deitada na cama, olhando pra a parede, mas já arrumada.

- Drica, levanta, se mãe te ver amassando a roupa que ela acabou de passar, em vez de casamento, vai ter morte aqui!

- Gu, preciso colocar essa sandália, me ajuda. Esse fecho é cheio de putaria.

Ouvimos os passos da minha mãe, e a sua voz ecoando pela casa.

- Adriana, levanta dessa cama! Toma minha mãe a sua roupa! Ó que merda, vai chover! E eu aluguei vestido de braço de fora! Se aquelas irmãs de Malu vierem me dizer alguma coisa, olhe, eu vou mandar uma tomar no cu no meio da igreja... Aff, quando a gente conseguir chegar lá a Mirelle já vai estar divorciada!

Saímos de casa às seis e meia, o casamento da Mirelle estava marcado para às seis e meia.



- Meu Deus... é um dilúvio!

Não sei o que houve, mas em questão de vinte minutos, armou-se uma chuva torrencial na cidade. O trânsito engarrafou, e tivemos que fechar os vidros do carro (que não tinha ar) enquanto esperávamos.

- Eu tô me sentindo um cuscuz, gente... vou chegar lá parecendo um gambá – minha mãe lamentava.

- E o pior é que o vidro tá todo embaçado, não tô enxergando nada...

Sentia o suor descer pelo pescoço até atingir o colarinho, estava horrível aquilo.

Pouco depois de sete horas entramos na igreja, de fato a minha mãe estava fedendo a sovaco.



Para minha surpresa, o casamento ainda não havia começado. Me lembrei que quando acertamos a igreja, o padre tinha sido enfático que não toleraria atrasos de mais de quinze minutos, pois naquele dia ainda iriam haver duas cerimônias. É, os duzentos e oitenta reais não cobriam a tradição.

Meus olhos esquadrinharam o ambiente à procura de alguém conhecido. A igreja de fato estava muito bonita. O tradicional tapete que ia até o altar indicando o caminho da noiva (como se ela não soubesse como chegar) estava coberto de pétalas, e no final das fileiras de bancos haviam colunas com arranjos de flores. O filó branco completava o caminho, e o púlpito estava cuidadosamente arranjado para acomodar os padrinhos e os noivos, as cadeiras forradas com malha.

Clara veio até mim, de vestido longo vermelho e coque estiloso, maquiagem impecável.

- Menina, quase não te conheço sem aquele shortinho.

- Gustavo, faz um favor? Vai procurar um jegue viúvo. E cadê a gravata, hein?

- Ah, não tenho condição de aprender aquilo. Tá aqui no bolso, tu sabe colocar?

- Sei, bora ali num cantinho.

Fomos, esperei ela terminar de me arrumar.

- Vem cá, falou com a Mi? Ela queria falar contigo...

- Não, Clara, cheguei agora. Porque tá tão atrasado assim esse negócio?

- Menino... ela tá super nervosa. Tanto que o próprio padre pediu um tempo para conversar com ela a sós, o...

- Aah, que putaria é que a Mirelle tá inventando, hein?

- Sei lá. Ela queria te ver, te liguei mas tu não atendia nem nada.

- Poxa... mas é que hoje eu trabalhei o dia todo. Saí do escritório já quatro da tarde! Enfim.

A tia Malu se aproximou.

- Gustavo, Clara, vamos sentar. A Mirelle já tá vindo aí de novo no carro, vamo aproveitar que a chuva passou pra ela entrar e começar logo isso.

- E ela tá melhor, tia?

- Tá. Tá boa.

- E o que foi que ela teve?

- Sei lá. Tua prima é maluca, né Gustavo? Não sabe?

- Será que ela percebeu hoje que Maurício é feio?

- Não, isso ela já desconfiava... – Clara ajuntou.

- Gente, vocês dois não prestam... – rimos – vamo começar logo, que as cobras já estão ali dizendo que não vai ter casamento.

As cobras em questão eram as três irmãs da tia Malu, Helena, Socorro e Fátima. Todas as vezes que elas se reuniam, geralmente em alguma ocasião em que o encontro é compulsório e inevitável, como as festas de família, rolava algum stress. Elas tinham o costume de fazer o interrogatório uma da vida da outra, recheado de comentários maliciosos acerca dos respectivos maridos, além de fazer análises comparativas de como estão os filhos na lista interminável de obrigações que a sociedade honrada, católica e heteronormativa impõe: ir bem nos estudos, passar no vestibular, a menina ter um namoradinho bonitinho e se comportar, o menino ter uma namoradinha bonitinha e pegar outras, formar na faculdade, arranjar emprego, se casar, ter filhos com vinte dedos cada, etc. Isso nunca dava certo, porque a tia Malu, por sua vez, era estourada. Às vezes eu até gostava de ouvir alguns diálogos, saía cada coisa.

Na verdade, juntar aquele pessoal não era tarefa fácil pra ninguém. Eu, por exemplo, já estava preparado para as perguntas do tipo "e quando vai ser o seu casamento?" ou "cadê as namoradas?" Não tem jeito, era tipo mais ou menos o clima da faixa de Gaza, Rússia-Crimeia, ou por ali pela Síria.



Todo mundo se levantou para ver a Mirelle entrar. Ela, acompanhada do tio Mauro, vinha bem devagar, como manda o protocolo, enquanto tocava-se a tradicional marcha nupcial. As tias enlouquecidas acenavam para ela olhar para as suas câmeras, mas, de onde eu estava, pude vê-la e tive a sensação de que a Mi estava sendo levada para a cadeira elétrica.

Ao longo da cerimônia essa sensação foi só aumentando, porque a cara dela só piorava. Até o Maurício estava ficando tenso também. Me puni por não ter ligado para a minha prima, dar um suporte nas vésperas daquele dia, nem imaginei que ela pudesse estar com tensão pré-nupcial. Pensava que o caso todo era a questão financeira, que já havia sido resolvida.

- ...aceita o Maurício Rodrigues como seu legítimo esposo?

Silêncio. O Maurício estava em pé, com o rosto todo vermelho, e pude vê-lo sussurrando "Mi, pelo amor de Deus, fala..." mas ela só abaixou a cabeça.

E começou a chorar.



Nem sei quanto tempo levou aquela situação horrorosa, mas ela soluçava e não olhava pra ninguém, só pro chão. O Maurício não tinha o que fazer, morto de vergonha. As pessoas levantaram, mas ninguém teve coragem de sair dos seus lugares. A tia Malu, sentada no altar, agarrou no braço do tio Mauro, esquecendo-se por um momento que ele era seu inimigo.

Minha mãe arregalou o olho pra mim, mas eu apenas dei de ombros. O padre começou a conversar com ela, baixinho, por alguns instantes, e depois anunciou que iria refazer a pergunta. Da segunda vez, ela novamente abaixou a cabeça e cerrou os olhos, deixando um Maurício desesperado.

A minha tia levantou-se de repente e ameaçou ir até lá, com a mão espalmada como se fosse bater na filha. A Mirelle olhou pra ela, se virou pro padre, e gritou, com a voz rouca, "Sim!".

A minha tia sentou novamente, o Maurício voltou a respirar, os convidados se acomodaram, e a cerimônia prosseguiu. O padre fez a pergunta ao noivo, no que ele respondeu com mais firmeza, e a partir daí foi tudo mais tranquilo.

Tentei falar com ela depois, mas foi tudo muito rápido, cumprimentos, fotos, despedida... a cara dela abria sorrisos tão estranhos quanto enigmáticos.



- Gente, o que será que a Mirelle teve? – a minha mãe me perguntava, enquanto se desmontava na nossa sala – ela não te falou nada não? Vocês são tão próximos...

- Mãe, eu nunca mais vi a Mi... tanta loucura aqui pra administrar...

- Será que tem alguma coisa a ver com aquele dia? Que ela teve aqui te procurando, doida pra conversar, e tu tava em Camaçari?

- Não sei. Bom, agora só resta esperar ela voltar de Maceió pra ver.

- Coitada da Malu. Ouvi a Fátima uma hora lá dizendo pra ela "esses teus filhos, hein, Malu? Tudo problemático..."

- Nossa! Sério? Que vaca...

- Aff, e Socorro tava cravando a Drica de pergunta, tu nem sabe... Perguntou como tava a faculdade, a Drica mentiu que tava indo bem, porque eu tinha dito a ela que por enquanto não era bom dizer a ninguém que ela largou... a cachorra da Socorro disse: "engraçado, o meu filho me disse que nunca mais te viu lá..."

- Gente...

- Vi a hora da Drica sair correndo, coitada.

- Por isso que ela tá assim, mais murcha do que o normal. Chegou, tirou a roupa e foi dormir.

- E eu agradecendo a Deus por a gente estar aqui nessa casa alugada, longe da D. Clotilde.

No domingo eu fui ver o Dan, que estava na cidade e com a loucura do casamento nem pude dar atenção. À noite, saímos eu, ele e a Rose, atualizamos tudo e demos muita risada.

- Daniel... Eu! Tô! Pra! Ver! – a Rose sempre dramática – uma festa de família do Gustavo que não dê um babado, uma confusão.

- Êta, também não é assim – retruquei – teve alguns que foi até... normal...

- Gustavo, te conheço há oito anos... tá, teve umas duas festas que ninguém foi pra cima de ninguém, mas até quando não acontece nada.... a gente sai assim, com uma sensação de vazio...

- Kkkk! Que cachorra! Tua família também não é coisa que preste, não, viu, amiga! Lembro de tua cunhada nos teus aniversários!

- Ah, meu filho, mas lá a gente trabalha na falsidade, então, não tem briga! Muaaahahahaa!

- Hahahahaha! Pois lá em casa é que não tem mesmo... – Daniel completou – ninguém fala com ninguém e pronto!

- Aí cabou!

- KKK!

Entre uma pizza frita e outra, Daniel também falou um pouco da vida dele, ao que parece ele estava sendo cotado para uma vaga de gerente na filial de Itaberaba, estava meio ansioso, e nós ficamos também. A noite foi super agradável, conversamos demais, e, aparentemente, aquele climão entre a Rose e o Dan tinha dado lugar à amizade, ou, a algo mais leve. Só uma vez ou outra que eu pegava um olhar mais demorado entre eles, ou uma piadinha ambígua, mas, eu de cá não podia fazer muita coisa. Se ele era travado e ela também, não ia ser eu que ia dar uma de Silvio Santos e ficar juntando casal, resolvendo se seria namoro ou amizade.

Deixamos a Rose em sua casa, estacionei na porta e me virei pra falar com ela, que estava sentada no banco de trás.

- Valeu, gata – disse, beijando a sua mão – a noite foi ótima.

- Só assim, né, Gu, pra tu sair da toca! Temos que sair mais vezes, voltar à velha forma! Beijinho, nego... Daniel, meu filho, apareça mais vezes também!

Daniel, que estava sentado no banco do carona, se virou para lhe dar um beijo na bochecha.

- Vamos ver isso aí, Rose, é que a vida é corrida mesmo...

- Tá. Beijinho.

Ele beijou a sua bochecha. Ele se olharam.

- Tem que ter do outro lado também, né, Rose?

- É.

Ele beijou a outra bochecha dela.

- Pronto.

- Mas eu ouvi dizer que agora são três...

- Sério?

Me virei para olhar aquela putaria. Ele deu outro beijo, eles se olharam, riram e se beijaram na boca, dando um selinho. Depois se beijaram mesmo, de língua, enquanto eu, do banco do motorista, com o olho arregalado para o retrovisor, com a mão no queixo, aguardava terminar.

- Tchau, Gu! Boa noite pra vocês! – a Rose me deu um beijo na bochecha e saiu.

Dei a partida no carro e parti em direção à casa do Daniel. Ele parecia aéreo a viagem toda, com um sorriso de canto de boca e de vez em quando ria alto, assim, abobado.

- Que foi, Dan?

- Hahahaha, nada! Hahaha!

- Finalmente desencantou isso, hein? Quando eu pensei que já tinha morrido esse clima...

- Pois é, cara! – ele esfregou as mãos uma na outra, numa excitação irritante – eita... tomara que ela tenha gostado, né? Vamo ver, rss.

- É. Se ela me falar alguma coisa eu te conto. Pronto, tá entregue. Quando a gente se vê de novo?



Entrei na minha garagem e desci, travei as portas e conferi os vidros do Palio do Amor.

- É, carrinho, você deve ter algo de afrodisíaco, porque... olha... é gente trepando, é gente se armando.... só não serve pra mim, né? Rum.

O Palio me olhou de volta, com aqueles faróis, que diziam: a culpa não é bem minha...



Tomei um banho e deitei. Algo me tirava o sono, mas não sabia o que era.

Há muito que não via mais o Dan com olhos de confusão. Na verdade, isso só tinha acontecido no iniciozinho da nossa amizade, mas, desde que o Murilo começou a tomar espaço na minha vida, como um sem-terra num latifúndio improdutivo, piqueteando sem cerimônia para delimitar o território da invasão, eu não sentia qualquer tipo de atração pelo meu amigo que não fosse a afinidade natural de almas semelhantes, enfim, amigos mesmo.

Mas, aquele episódio de fato me fez sentir... sei lá... ciúme dele novamente. Quem a Rose pensava que era pra sair beijando o Daniel sem nem ter falado nada comigo, avisado, sei lá? Será que ela já saiu de casa na intenção, tipo, vou usar o idiota do Gustavo pra atrair a vítima e depois, pá! Já era? Maquiavélica...

Ai, quanta bobagem sai da minha cabeça. Porra, acontece, gente.

Será que eles agora iriam engatar um namoro sério? Nossa! Vão ligar um pro outro sem que ligue pra mim antes... sair juntos! Casar! E me chamar pra padrinho!

Será que a minha existência ia ser sempre assim? Eu vendo todo mundo se juntando, namorando, casando, tendo filho... às vezes achava realmente que eu era um querubim defeituoso, um eunuco sem talento vocal.

No fim da noite, afinal, fui dormir com raiva mesmo foi do Murilo. Lembrei dele dizendo que alguém tinha que "inaugurar" meu carro, porque se dependesse de mim, pfff.



- A recuperação dela foi realmente im-pres-sio-nan-te...

O médico da minha avó estava besta. Os exames que ele havia pedido demonstravam que a coluna já estava consolidada, não necessitando mais usar o colete. O rosto da minha avó iluminou-se quando ela soube disso, e ainda mais quando ele a autorizou a sair da cadeira de rodas e tentar utilizar o andador em casa.

- Geralmente nesses casos de fratura, leva-se seis meses ou mais para deixar de usar o colete, principalmente na idade dela e com o histórico de osteoporose grau 4... mas aqui... bom, está tudo ok. Ela realmente é muito forte – o médico virou-se pra ela – e aí, Dona Eliza, está pronta pra começar a andar por aí?

Como a minha mãe e a Drica estavam ansiosas, de lá da clínica mesmo eu liguei para contar as novidades, e quando chegamos em casa, elas já estavam na porta com o andador, nos esperando. Foi uma festa. A minha avó desceu do carro se apoiando em meus ombros, pegou o andador, tremeu um pouquinho, mas deu os passos necessários até entrar em casa, com a minha mãe e minha irmã eufóricas em volta.

- Parem de rodar na minha frente, que agonia! Eu vou ficar tonta assim! – a minha avó espalmava as mãos em volta, com a sua rabugice de sempre, mas nem ela escondia a felicidade, rindo de canto de boca.

Eu, por outro lado, já fiquei feliz só de tirar uma boa parte da trabalheira do dia-a-dia. Só para aquela saída para a clínica, por exemplo, a rotina era: tirar o carro da garagem e colocar no passeio o mais perto possível do meio fio, alinhar a cadeira de rodas junto ao banco do carona, travar a cadeira, dar a volta no carro, apoiar o braço dela no meu ombro, dar um impulso, colocá-la no banco, dar a volta de novo no carro, retirar os seus pés do suporte da cadeira, destravar a cadeira, desencaixar os suportes de pé, fechar a cadeira, empurrar o banco da frente, encaixar a cadeira no carro... o procedimento se repetia na entrada da clínica, na saída da clínica, na chegada em casa, enfim... só de não ter mais aquilo já me sentia feliz.

Em casa também mudaria muita coisa. O banho seria mais rápido e menos complicado, ela conseguiria uma autonomia também para fazer as suas necessidades fisiológicas, tudo ficaria melhor.



Aproveitei que a manhã de trabalho já tinha sido perdida e fui na universidade, fazer uma coisa que estava adiando há tempos: o trancamento da matrícula da Adriana.

- Bom, então pelo que eu entendi – a coordenadora do curso e professora da Drica me atendia – ela está fazendo tratamento para a síndrome do pânico. Você acha que no próximo semestre ela já está de volta?

- É... ainda é muito cedo pra dizer, professora... mas, tudo indica que sim, porque ela tá fazendo o tratamento direitinho, tentando esquecer o assalto...

- É. Confesso que fiquei bastante preocupada com a Adriana. Não sei se você sabe, mas foi na minha aula que ela... enfim... teve uma situação muito desagradável. Eu sei que é ruim tocar nesse assunto delicado, mas ela estava tão transtornada que, sinceramente, eu pensei que fosse algo até pior.

- Bom, o relatório do psiquiatra está aí. Segundo ele, ela teve uma síndrome do pânico decorrente do trauma do assalto, mas é temporário, é contornável.

A mulher me olhava, numa expressa que nada dizia.

- Bom. É... vamos lá. Vou te explicar o procedimento. Já passou do primeiro mês do semestre, então ela só consegue fazer o trancamento por problema de saúde, você preenche este formulário...

Era uma odisseia, incluindo avaliação médica com o setor de saúde da UEFS. Eu estava seguindo as orientações do psiquiatra da Drica, que achou melhor, pelo menos inicialmente, não expor que era na verdade esquizofrenia, temendo que isso atrapalhasse o futuro da minha irmã. Além de complicações que a própria coordenação poderia impor, por ela ter ingressado num curso da área de saúde, o que mais pesou foi mesmo o preconceito que ela iria sofrer caso voltasse.

Apesar de que, cada vez mais, eu desconfiava que a Adriana pudesse, um dia, seguir naquele curso, ou em qualquer outro. Ela tinha problemas sérios em sair de casa, vez em quando tinha pequenos acessos de raiva ou medo, além do que, só em tocar no assunto faculdade a deixava deprimida a ponto de não sair do quarto, exigindo de nós um esforço hercúleo em levantá-la novamente. Por incrível que pareça, o que mais a distraía era cuidar da vó Liza, além das inúmeras sessões de filmes que a minha mãe inventava para ela.

Por outro lado, eu estudava cada vez mais a sua doença, através de livros, depoimentos de familiares e internet. A grande maioria não dava muita esperança com relação a esse assunto. Ou seja, segundo eles, o esquizofrênico, tendo muito apoio da família, consegue ter uma sobrevida, um cotidiano mais ou menos saudável, mas daí a ter uma vida própria, uma carreira, ou sequer um emprego, uma ocupação... não. A cada leitura, a cada entrevista, a cada "não" a essa questão, eu desabava, e via a minha irmã como uma morta-viva, uma pessoa condenada a brigar eternamente com a sua própria mente.

Naquele dia em especial, eu saí da coordenação me lembrando do quanto comemoramos o ingresso da Drica numa universidade pública, a feijoada, os planos para o seu futuro, e de novo veio aquela onda enorme de pessimismo, e aquele medo de seguir adiante. Na verdade nem era mais medo, era uma certeza que eu guardava de que nada mais de bom aconteceria dali por diante.



No outro dia recebi uma ligação importante no escritório.

O cara trabalhava na prefeitura de uma cidade a 300km de Feira, estava precisando dos serviços de um engenheiro civil.

- Do que trata exatamente, senhor?

- Olha, eu preferia que conversássemos pessoalmente. Posso te adiantar que é um trabalho um pouco grande, e nós temos um prazo curto, muito curto pra fazer. Trata-se de uma verba que podemos receber do governo federal, mas, para isso precisaremos desenvolver uns projetos. Na verdade, já tínhamos desistido desse recurso, mas a pessoa que indicou o seu nome disse que eu podia confiar que você iria dar conta desse recado.

- Olha, realmente, eu concordo em conversarmos pessoalmente, mas é que sem saber do que se trata, como é uma cidade um pouco distante, nós precisaríamos...

- Eu cubro os custos da sua visita. Alimentação, transporte, hospedagem, o que for. Só preciso que você nos encontre o mais rápido possível.

- Ok. Eu vou ver então quando eu...

- Teria que ser hoje. No máximo.



Quando eu desliguei o telefone do escritório, corri para contar a minha sócia Lenita o que tinha acontecido. Falei que o troço era sério e que eu precisava da sua ajuda, no que ela concordou de prontidão.

- E aí, Leni, o que tu acha? A gente vai? Ele cobre a gasolina, alimentação, visita, tudo.

- Se a gente vai? Claro que a gente vai! Tu viu as conta aí? Só a luz já venceu duas, o contador desde fevereiro que não vê um real... A gente VAI COM CERTEZA, Gustavo!

- Hum. Tá. Então, vamos filha!

- Não, tenho que passar em casa pra pegar uma calçola...

- Dá tempo não, o homem quer reunião hoje à tarde. Só de estrada são mais de três horas. Bora!



- É uma verba do Ministério da Educação para a reforma de dezoito escolas do nosso município. O recurso está estimado em seis milhões e quatrocentos mil, somente para as obras, além de compra de equipamentos, mobiliário, etc.

Quem falava era a secretária de educação. Na reunião, que acontecia no gabinete, ainda estavam o prefeito da cidade, o assessor que tinha me ligado, e a Lenita. Já eram uma sete da noite. Cada vez que a mulher falava me dava mais agonia, e a expressão da minha sócia cada vez mais eufórica. Eu lia na cara dela "dinheirooo, dinheiroo!", rezando para os outros não perceberem.

Eu não sei o que deu na gente, mas topamos o trabalho. Teríamos apenas sete dias para entregar os projetos da reforma daquelas dezoito escolas, com instalações elétricas, hidráulicas, memoriais descritivos, planilhas de orçamento, tudo como o Ministério pedia. Uma loucura. Acertamos o valor do nosso trabalho em cerca de quarenta mil reais, depois de muita discussão e pechincha, divididos em três parcelas iguais, sendo que a primeira seria paga quando entregássemos, dali a uma semana.

Fomos dormir numa pousada próxima, porque no outro dia já iríamos fazer as vistorias.

- Leni, e aí, tu achou o que?

- Vamos ver, né? Tô fazendo uma lista aqui de quem a gente vai chamar pra ajudar. Mais um colega engenheiro e mais três cadistas. Já tô ligando pra eles esperarem a gente amanhã de noite lá no escritório.

- É. Vai dar certo.

- Tô preocupada mesmo é com o dinheiro. Essas prefeituras pra pagar, sei não... é um povo caloteiro.

- É. Bom, se a gente não receber a primeira parcela a gente não entrega nada. E as outras duas, que ficaram pra daqui a trinta e sessenta dias? Se eles não pagarem?

A Lenita ficou pensativa, depois me encarou.

- Meu filho... eles pagando essa primeira aí, me tirando do buraco... já tá ótimo! Kkk!

- Que eles não saibam disso! Kkk! Dois fudido! Hahahahaha!

Foi uma aventura, a começar por essa noite. A Lenita lavou a calcinha na pousada e fomos atrás de uma loja pra comprar uma muda de roupa, escova de dente, essas coisas. No outro dia, passamos o dia inteiro vistoriando os imóveis, buscando nos arquivos as plantas dos mesmos, combinando os detalhes. Chegamos em Feira por volta de oito da noite e fizemos a reunião com o pessoal que nos ajudaria, saímos de lá por volta de uma da manhã. Os dias subsequentes não foram menos extenuantes. Eu, que jurei que nunca mais passaria por aquela loucura novamente, desde que peguei aquele projeto com a Valquíria, estava já com saudades daquela primeira experiência. Era algo muito maior, muito mais detalhado, além do que agora existia uma equipe envolvida de mais ou menos umas sete pessoas. Dormíamos em média três horas por noite, o almoço era em quinze minutos e não existia pausa para tratar de nenhum outro assunto ou projeto. Da terça-feira em que acertamos tudo até a segunda em que entregaríamos, só respiramos aquilo. Quando eu dormia, ainda sonhava com as coisas pendentes. Até o pessoal de casa começou a torcer, porque queriam que eu me desse bem e, enfim, porque o aluguel tava atrasado também.

Só dei duas pausas nessa correria, uma pra ficar um pouco com a Drica, na sexta de manhã, porque ela tava péssima, mesmo assim com o notebook no colo, e a outra no sábado à noite, porque o trabalho maior agora estava com os desenhistas, e porque o Edu estava na cidade. Saímos eu, ele e a Rose.



- Menino, tu tá a cara da derrota – a minha amiga estava me colocando pra cima – acabado, cheio de olheira, descabelado, desgrenhado... quando é que esse trabalho termina?

- Nossa, primeiramente obrigado. Ai... amanhã marcamos todo mundo às oito lá no escritório, hoje os cadistas estão virando a noite pra fechar os desenhos, e amanhã sou eu e Leni fechando os valores. A gente TEM que entregar segunda lá.

- Cansei só de ouvir. É, de fato é bom não beber, fique só no seu suquinho mesmo. Tá vendo, Edu, como é bom?

- Ainda bem que eu estudei – completou o Edu – e não virei engenheiro. Hahaha! Aqui estou eu tomando minha cervejinha bem despreocupado! Tim-tim, Rose!

- Tim-tim, Edu!

- Seus cão!

A gente tava num barzinho super agradável, o Flamboyants. Algumas mesas ficavam debaixo da árvore que dava nome ao lugar aconchegante, boa música, boa comida. O que mais eu gostava era um espetinho de frango que eles faziam, era diferente porque eles empanavam o frango e tinha queijo dentro. Gordice, eu sei.

- Menina, mudando de assunto – Edu sorveu um gole e se virou pra a Rose – me conte desse casamento aí...

- Ah, o casamento! Eu não fui, só soube da confusão pelo Gust...

- Não tô falando desse casamento, não... – eu ri do jeito do Edu falar – esse o Gustavo já me contou. Tô falando do seu casamento com meu broder Daniel...

- Ah! Kkk! Mas vocês, hein? Aff!

- Ah, tá pensando que eu não sei não, é?

- Nossa, a notícia corre! Ai, gente... não sei... o que dizer? – a Rose ria, sem graça – nos beijamos, assim, de uma hora pra outra... de repente. Foi bom! Mas... acho que é só, né?

- Hum... é só?

- É, né? Ou... não? Ai... vocês que deviam me dizer, né? Vocês devem conversar entre si. Ai, ai, depois dizem que é mulher que gosta de uma fofoca!

- Isso foge à questão do gênero. Todo mundo gosta – Edu se virou pra mim – Cê acha o que, Gustavo? O Daniel te disse alguma coisa?

- Bom. Dizer. Não precisaria dizer. Na verdade, Daniel dizer alguma coisa é sempre difícil. Mas, nesse caso, não sei se seria necessário dizer. Podemos até dizer que ele disse, de algum modo.

Eles se olharam e caíram na risada.

- Gente, esse suco do Gustavo tá batizado!

- Kkkk! Não entendi caralho de nada!

- Ah, gente... tá. É assim. Ele é fechadão. Mas... – suspirei. Vamos lá, Gustavo, ajudar mais um casal – uma vez ele me disse, lá naquele feriadão, lembra, Edu? Que ele tava super empolgado, e tal, mas que ele sempre tinha... dificuldade em chegar, essa coisa, né, da iniciativa... E no dia que eles se chuparam, ele ficou todo empolgado de novo, eu deixei ele em casa e jurei que ia ajudar. Então...

- Êêêê... – Edu batia palma – vai rolar! Bam-Bam-Bam! Vai rolar! Fudeu! Fudeu!

- Kkkkk! Paaara, maluco! Deixa o Gu terminar!!!

- Terminar o que?

- O que como assim? Ele falou mais o que?

- Como assim, Rose? Falou isso!

- Ele não falou mais muita coisa. Torceu pra que você tivesse gostado da pegada dele, e tal. Enfim, acho que rola algo sério, viu? Sei lá!

- Cara, e a Jamile?

- Vixe, é! – agora fui eu que me sacudi, tinha esquecido completamente da namorada do Daniel – tem a Jamile!

- Ai, Deus. Ó eu me fudendo de novo... ele ainda tá com essa porra, é?

- Não sei, Rose. Desde que eu conheço o Daniel, ele nunca fala nela, sei lá, é um negócio tão estranho... né, Edu?

- É. Ele nunca fala nela mesmo.

- Então, pra te dizer a verdade, nem sei se existe ainda essa criatura.

- Porra... esse bofe tá muito complicado. Primeiro eu tenho que tomar a iniciativa, depois ainda tenho que ver se ele ainda é desimpedido. Tô quase largando isso de mão, viu!

- Ah, Rose. Relaxa! Deixa correr! Quem sabe, né?

- Não, deixa pra lá isso. E outra: agora que eu consegui me livrar do louco do Vinícius, vou me encalacrar de novo? Não, deixa eu curtir minha solteirice mesmo, tomar minha cervejinha, beijar umas boca de vez em quando, solta... tá bom demais.

- Hum. Sei.

- Que foi, Gustavo? Que cara é essa aí, broder? – o Eduardo me observava.

- Nada... Só não quero que esse povo se envolva, aí começa uma história, dá merda, depois fica eu no meio ouvindo de um e de outro... aff!

O Edu a e Rose se olharam, espantados.

- Que foi isso, aí, hein? Kkkk!

- Aaaaaahhhh! Entendi, Edu! – a Rose arregalou o olho – ele está com ciúme!

- Sério que é isso? – o Edu se espantou.

- Claro!

- Que ciúme o que, gente? – eu senti o meu rosto arder – eu só..

- Aaaa, vem cá, vem – a Rose se chegou e me abraçou – relaxa, meu amor, que nenhum homem vai tirar o seu lugar na minha vida, tá?

- Ah... tá.



- Bicho, vai dar certo o negócio da micareta? – o Edu me perguntou.

- Vai, sim, pô. Tem que me dizer só quem vem.

Na semana seguinte ia rolar a micareta de Feira. Pra quem não conhece, é um carnaval fora de época, que ocorre na cidade, geralmente no mês de abril, e, guardadas as proporções, nos mesmos formatos da festa de Salvador: blocos com abadá, trio elétrico, camarotes, etc. Começaria na quinta-feira seguinte e iria até o domingo, e o pessoal de Camaçari ficou empolgado pra vir. O Edu tinha me ligado pra falar que viriam ele e o Diego, talvez o Bomba também.

- Então, pera: deixa eu contar. Vêm você, o Diego, o Bomba, o Rafa, o Yuri...

- O Bomba não é bom contar, porque ele é bufa fria. O Murilo...

- Murilo?

- É. Me falou que vinha.

- Ah... e ele vem com a noiva ou com a namorada?

- Como é isso? – a Rose parou o gole dela no meio.

- Ele tem noiva e namorada. Sim, ele vai trazer qual das duas?

- Cara, ele não vai trazer ninguém. Pelo menos, não falou nada disso não. Vem só. E outra, o Daniel falou que na casa dele dá pra ficar um povo também, pra dividir.

- O Yuri e o Rafa têm a casa dos pais deles, não conta. Então, fica você, o Murilo e o Diego.

- Véi, outra coisa. É... eu queria trazer um colega meu. Tem problema?

- Quem é?

- Tu não conhece, ele faz faculdade comigo. Jimmy. Gente boa demais.

- Traz, pô. Bom, nesse caso, são quatro, né?

- É. Eu, o Jimmy, o Murilo e o Diego.

- O Diego vai ter que dormir lá em casa, porque ele tá desenvolvendo um projeto comigo em 3D. Inclusive ele vem na sexta e já dorme lá. Vocês só vêm no sábado, né?

- É. Mas, então não dá pra dividir dois e dois. Não vou dormir num lugar e largar o meu colega no outro.

- Não, pô, lá em casa dá os três. Eu pego uns colchões na tia Malu. Aí o Murilo dorme com o Daniel lá na casa dele.

- Pronto.

- Ai, gente – a Rose se escalou – eu tô colada aí nessa farra, viu? Não me esqueçam não!



A gente conversou horrores naquele dia, os dois beberam bastante e, apesar de eu estar no suquinho, entrei no clima deles de conversar aquelas coisas que não se conversa todo dia. Tipo, aquele velho recorrente assunto da relação com nossos pais.

- Rose, pelo que eu tô entendendo então do relato do Edu, ele é da nossa laia.

- É, Gu, também percebi – a Rose estava atenta à conversa.

- Não, gente, pera... – o Edu parou para tomar um gole – eu me dou bem com o meu pai... só a infância mesmo que foi meio complicada...

- O que você chama de se dar bem? O problema maior era o álcool?

- É... era. Álcool e jogo também. Foda. Digo que eu me dou bem porque... a gente se dá bem, oras.

- Ah... não acho não.

- Nunca mais eu vi o meu – a Rose ponderou – a última vez que ele me ligou foi pra dizer que tinha colocado um dinheiro na minha poupança, só fiz agradecer, desliguei e corri pro banco.

- Aff... o meu me liga pra pedir dinheiro – eu contribuía para a lista de mazelas.

- Gu, mas porque tu acha que o Edu não se dá bem com o pai? – a Rose se virou pro Edu – vocês não moram juntos?

- Sim! Eu, meu irmão, meu pai e minha mãe. E os cachorros. Tudo bem tradicional.

Eles se viraram pra mim. Eu continuei:

- Eles sentam à noite pra assistir novela, o jornal, comentam algo às vezes... pelo menos é assim quando eu durmo lá, né?

- Sim...

- Mas, sei lá. Eu vejo o pai dele sempre de um lado e ele do outro... Ah, sei lá! Estranho.

- Qual é, Gu? – o Edu estava surpreso, enquanto eu vomitava as minhas impressões.

- O pai dele até tenta... sei lá... se aproximar. Mas ele sempre fecha a cara.

- Eu??

- Tá vendo, Edu? Você coloca uma pessoa dentro da sua casa, dá abrigo, pra ela ver a sua intimidade e jogar coisa na sua cara.

- Cala a boca, palhaça! Tô dizendo o que eu vejo, né? Acho que ele ainda é magoado.

- Ah, mas eu não acho que eu fecho a cara pro meu pai, não. A gente só não conversa muito. Conversar o que? Pra que? Ele pergunta uma parada, eu respondo e pronto, cabou. Não tem assunto, cara. Se já mora junto, né, Rose?

- Meu filho, eu não sei. Não moro junto com meu pai desde os meus catorze. Mas com a minha mãe eu converso muito, sim.

- Então, Edu... Acho que você se fecha, sim.

- Porra nenhuma. Tá bom assim. Ah, e quanto à mágoa... não nego, não. Devo ter, sim. Claro. Essas coisas não somem, assim, do nada.

Suspirei.

- Eu vi o meu pai a última vez quando a Drica caiu doente. Eu acho que destratei ele, porque ele insistia que a gente tava indo na onda dos médicos, e que a Drica não tinha "aquilo", e que a gente tava entupindo ela de remédio... eu acabei dizendo que ele era ignorante, que ele tava falando merda. Ele foi embora.

- Vixe, amigo... tu falou assim com ele?

- Falei assim e falei mais. Que ele não sabia de porra de nada do que acontecia com a gente, porque ele nunca sabia! E tal.

- Tu não acha que foi grosso?

- Assim que ele saiu eu vi que tinha sido. Mas é que na hora me deu um nervoso, ele dizendo aquelas coisas, eu com medo da Drica escutar... Já tava tão difícil fazê-la tomar os remédios, sabe?

- Sei.

- Mas o pior que eu fiquei fodido. Nunca consegui ter uma relação com meu pai, assim, de, sentir saudade dele, de ligar pra saber como ele tá, ou o contrário. Ele vai lá em casa bem às vezes, e aí... ou é um gelo, que a gente fica olhando um pra a cara do outro, dizendo que tá um calorão, ou que a previsão do tempo disse que vai chover, ou dá nisso. Antes ele perguntava: "e como é que tá o curso de contábeis?", eu respondia: "pai, quem faz contábeis é a Mônica, eu faço engenharia".

- Hum, uma proximidade incrível né...

- Demais. Eu não vou dizer que eu sinto raiva dele, não. Eu posso dizer até que entendo. Ele É assim. Meu pai é desligadão, todo fora de órbita. A gente fala os problemas com ele e ele diz "ah, relaxa que vai melhorar...". Só no caso da Drica que ele ficou noiado, porque viu que ela tava mal e porque ela também é o xodó dele.

- Mas... hum. É tão difícil opinar. Mas, se vocês se reaproximassem? Sei lá, tenta participar um pouco mais da vida dele, liga no meio da semana pra saber como tá... já tentou?

- Ai, Edu, quer saber a verdade? As últimas vezes que o meu pai me procurou, foi pra pedir dinheiro emprestado. É, ele tá na pindaíba, porque não consegue um emprego formal, e tá com um filho agora, então, de vez em quando liga, ou me procura em casa, pra pedir algum. Nunca paga. Eu sempre dou.

- Mas vocês não conversam.

- Muuuito pouco. É um gelo a gente, sabe? Fica um olhando pra a cara do outro, tentando puxar assunto. Às vezes tenho até vontade de dizer algumas coisas, sabe, tipo: "pai, olha, eu agora saí do emprego e tô montando uma empresa, acho que vai dar certo, o que tu acha? Tá aparecendo uns clientes bons, e tudo..."

- É, isso aí...

- Mas, sabe o que eu penso? Eu falo que tô me dando bem e ele vai me pedir mais dinheiro. Ai, que vergonha. Mas é isso.

- Complicado – a Rose sorvia a conversa e a cerveja.

- Em resumo, eu, com tanto problema lá em casa, fico deixando esse em banho-maria. Com tanta coisa que eu tô passando, revirar isso agora! Não dá.

- Mas é uma coisa que te aflige, né?

- É. Quando ele vai lá, e a gente não briga, ou quando conseguimos dar uma risada junto de alguma coisa, é tão bom – suspirei, tomei um gole do meu suco pra me refazer – é, deixa melhorar essa fase que eu vou procurá-lo, sei lá, pôr em prática alguma coisa. Eu tenho isso nos meus planos há muito tempo, mas ultimamente tá muito forte.

- Então, menino, faz! Eu tenho isso comigo também em relação àquela criatura nefasta. E também tô sem coragem pra resolver isso agora, mas no meu caso é preguiça mesmo...

- No meu caso, é que eu tô atolado de problema. Mas, tá na minha lista: assim que as coisas lá em casa se acalmarem, sei lá, daqui a uns meses, ou ano que vem, eu procuro ele e vamos resolver isso. A gente retoma nossa relação.

- Isso!

E aquelas três pessoas que achavam que a vida espera a nossa vontade de começar a amar de verdade os nossos próximos ficaram ali, fazendo mais alguns planos bobos, como se tudo dependesse da gente, ou como se a gente controlasse e dispusesse do tempo que fosse preciso pra isso. Como se todo mundo fosse eterno fisicamente, como se o amanhã viesse sempre.



Dali a dois dias, na segunda-feira de manhã, pegamos a nossa estrada, eu e a Leni. No banco de trás do carro, se acomodavam dezoito pastas A-Z cheias de projetos, memoriais, impressos e assinados para entregar. Chegando lá, ainda teríamos que fechar alguns valores na planilha, motivo pelo qual ainda não estava fechado o trabalho.

Neste dia não almoçamos, mas nem sentimos falta, por conta da adrenalina do trabalho. Concluímos às três e meia, os funcionários já estavam com o cu na mão de não conseguirmos. Tínhamos que postar tudo antes dos Correios fecharem, senão perderíamos o prazo do Ministério.

- Aqui está o cheque de vocês – disse o secretário estendendo a mão para a Lenita – o contrato está pronto, postaremos assim que o prefeito assinar. E, olha, muito obrigado por tudo. Eu sou eternamente grato. Hoje mais cedo ainda agradeci à pessoa que te indicou, Gustavo, para agradecer também. Ela tinha razão. Vocês deram conta.

- Secretário – eu o interrompi – no meio da correria eu acabei nem te perguntando quem tinha te passado o meu nome.

- Ah, foi a Dra. Valquíria, lá de Camaçari.

- A Valquíria! Ah! Rss!

- É, eu a conheço há muito tempo, e nos encontramos recentemente. Falei com ela sobre esse problema e ela me disse: "olha, só conheço essa pessoa que pode dar conta disso". Ela tinha razão.

- Olha... muito obrigado pelo elogio. Nós – apertei a mão da Lenita – te agradecemos também, muito.

- E quero dizer que é só o início dessa parceria, viu? Quero vocês nos auxiliando aqui no que for preciso. Agora mesmo estamos correndo atrás de verba para a construção de cinquenta casas populares, eu já estou contando com os projetos de vocês.

- Pode contar conosco SEMPRE – a Lenita puxou o cheque da mão do homem e conferiu – a gente está aqui pra isso.

- O senhor anotou os nossos contatos direitinho? – perguntei.

- Sim, estão aqui. A gente vai mantendo contato.

- Secretário...

- Sim, Dra. Lenita?

- Esse cheque é cruzado, né? Somente para depósito em conta...

- Sim. Achamos que vocês não iam querer pegar estrada com uma soma dessa de dinheiro na bagagem, correto?



A Lenita fez o homem refazer todo o processo, ir no banco e sacar o dinheiro vivo.

- Aonde que eu ia voltar com aquele cheque?? Tá doido! Eu aqui lisa, mais dura do que pau de tarado na seca, esperar até quinta pra pegar em dinheiro? E o povo que tá lá esperando?

- Rsss, é verdade. Ainda bem que deu certo, né? E eu acho que ele nem percebeu que a gente é morto de fome...

- Que nada! Falei que estávamos com um problema com nosso setor financeiro! Kkkkkk!

- Kkkk! Ai, ai... setor financeiro!

Já estávamos na estrada de volta, fim de tarde, já escurecendo. Parei o carro no acostamento.

- Que foi? Parou porque?

Olhei pra os lados.

- Leni... eu tô com medo. Cadê o dinheiro?

- Tá aqui – ela abriu uma sacola com um envelope pardo, tinha treze mil e trezentos reais em notas de cem e cinquenta – medo de que, caralho?

- Ai, sei lá... aquele assessor foi tão solícito em trocar aquele cheque por dinheiro, tão interessado em que a gente trouxesse isso por essa estrada deserta uma hora dessa...

- Ai, para com essa merda, porra, que merda... agora eu tô com medo. E agora?

Colocamos dinheiro embaixo dos tapetes, sob os bancos, dentro do porta luvas, na pasta do notebook, enfim.

- Pronto, agora vamos tocar daqui, Lenita, senão...

- Bora, bora! Tô rezando, já.

- Que é aquilo ali, gente? Ai meu DEUS!! São eles! – apontei para uma moita do outro lado da estrada.

- O queee? Uaaaaaaaai!!!! SOCORRO!

- Kkkkkkkk! – chorei de rir, batendo no volante, a Lenita tava se cagando.

- Viado, corno, porra! Vai dar susto na puta da tua mãe!

Viemos a viagem toda alternando entre as risadas e o medo. Estávamos muito excitados, porque tinha dado tudo certo, a adrenalina ainda estava no corpo. Lembramos de tudo o que deu errado e certo naquela semana, até chegarmos ali. Da impressora que quebrou no domingo. Da louca da assessora da prefeitura que achava que os projetos tinham que estar em Brasília no fim da tarde.

- E eu expliquei a ela que bastava postar no correio que dava certo! Eu tinha lido o edital!

- kkk! Eu vi você explicando, Gustavo, e ela insistia que se não tivesse no Ministério hoje de tarde eles iam perder!

- Pior foi quando ela falou: "a gente tem que mandar pelo Sedex 10! No Sedex 10, se a gente postar agora chega em Brasília em dez minutos!"

- "Por isso que o nome é Sedex 10! Vocês não entenderam!"

- Kkkkkkk! Ô gente!



A primeira coisa que fizemos ao chegar na casa da Lenita, por volta de oito e meia, foi catar o dinheiro de volta, jogar na mesa de centro, sentar no chão... e começar a fazer conta. Depois de separados o dinheiro do pessoal, daquela primeira parcela, sobrou quatro mil e duzentos pra cada um. Peguei uma folha de papel e entreguei outro pra ela, e nos pomos a lembrar dos nossos credores.

Meu papel ficou assim:

ALUGUEL.................................450,00

PRESTAÇÕES DO CARRO......1.580,00

ROSE.....................................1.500,00

PRESTAÇÃO DO COLETE...........320,00

TOTAL....................................3.850,00

- Pronto, acabou o dinheiro! – gritei, levantando a mão com a caneta – Quer dizer, sobrou um tutu pra ficar na mão, pra tomar uma cerveja. E tu, Leni?

A Lenita escrevia sem parar, parecia que estava psicografando algum recado do além. Puxei o papel e olhei:

ANA DA UNHA..................................R$40,00

MARIZETE DO CABELO....................R$160,00

ZEZO DO TÁXI...................................R$60,00

LUZ...................................................R$240,00

CONDOMÍNIO..................................R$480,00

QUINHO DA VERDURA......................R$80,00

GALEGO DA MANIÇOBA.....................R$60,00

Era uma lista interminável. Enquanto a minha acabava em quatro itens, a dela tomava todo um lado da folha e um pedaço do outro.

- Gente, eu não tô acreditando nisso...

- Me dá meu papel, diabo, deixa eu terminar! Senão eu me perco e esqueço!

- Tu deve a deus e o mundo, né, bicho? Até o galego do almoço...

- Ah, nesse dia eu tava sem, ele me disse que com a gente não tem aperto. Eu acreditei, né? – ela pegou o meu papel – sim, a tua é pequena, mas... só tem bomba, né amigo? Dá mais que o meu! Hahahah!

Meu celular tocou, era a minha mãe. Aproveitei e contei que tinha dado tudo certo lá.

- Já descolei o dinheiro do aluguel, tá aqui na minha mão.

- Ai, graças ao bom Deus, gente! Né por nada não, filho, mas a Dona Álvara já veio aqui três vezes hoje. Agora eu entendo o que a Malu falava de morar de aluguel, nossa, não vejo a hora de me livrar dessa puta velha descarada!

O nome da mulher nem era esse, mas a gente chamava por conta do seriado que passava na época. Era igualzinha, no modo de falar, de bisbilhotar a gente (ela morava na casa vizinha), e de cobrar os alugueis.

- Tá bom, mãe, fala que eu já tô chegando. Tô terminando aqui com a Leni.



- Amanhã a gente vai comprar o ar condicionado do escritório, vou ver com o rapaz que deixou o cartão lá.

- Quanto foi que deu mesmo aquele orçamento?

- Cinco mil, com a instalação. Ele divide. Aí a gente paga com as outras duas prestações que vão vir aí.

- Beleza, vai ficar muito mais folgado pra a gente, porque já não vamos ter o pagamento dos cadistas, né?

A Lenita me observava.

- Vou chamar a Rose também amanhã, no horário de almoço. A gente vai lá no shopping ver umas roupas pra tu. Tá um molambo!

- Euuu? Tá doida? Minhas roupas não são velhas, não.

- A gente bota no meu cartão. Filho, tu tem que se cuidar, cuidar da aparência. Vai ficar esse bagaço aí?



- Bagaço é a palavra, Leni – a Rose caminhava excitadíssima pelos corredores do shopping, abrindo e fechando as mãos, percorrendo com os olhos todas as vitrines enquanto tentávamos alcançá-la – não é o caso de ser roupa velha, Gu. É que já estão cansadas, e você não tem estilo algum. Ai, adoro comprar!

Paramos na Levi's.

- Olha. Isso. Aqui. Hãaaaaaa!!... vai ficar um gato, Leni! Gu, você não tem noção... todas as bucetas da cidade vão cair aos seus pés!

Olhei a etiqueta.

- Tá maluca, Rose! Eu vou mesmo dar cento e sessenta numa blusa!

- Meu filhoooo! Você acha o que? É assim mesmo! Não é sempre, mas pelo menos uma vez ou outra você tem que comprar um negócio desse, pra ter no guarda roupa... é um estilo, é um negócio que valoriza o corpo, tem um corte, sabe? Olha essa outra... gente!

- Laranja, Rose? Blusa laranja?

- Affff, meu Deus... me poupe de ouvir isso.

- Que é que tu tem contra o laranja, Gustavo? – Lenita esbravejava.

- Que é que ele tem contra as CORES EM GERAL, NÉE! Gustavo só tem blusa cinza e azul escuro. Ou então preta – a Rose torcia o bico.

- E aquele azul bem fubazado né!

- Azul-puxado-pra-cinza.

- Ou cinza-puxado-pra-azul! Gustavo, meu filho, a gente que não é bonito tem que chamar atenção de alguma forma, botar uma parada diferente...

- Eu, hein! Fale por você, viu, amiga! Eu sou linda, um tesão... – a Rose se olhava no espelho.

- Eu, então, nem sei o que dizer! – completei – Ó, eu não tenho só blusa cinza não. E aquela verde? É linda aquela blusa.

- Eu também achei, nas primeiras trezentas vezes que eu te vi com ela. Depois, achei que ela fazia parte do teu corpo já. Eu tenho certeza que é só você dizer que vai sair, a blusa já sai do guarda roupa sozinha, né?

- kkkkk! Rosee, é verdade! – a Lenita estava gargalhando – uma verde com gola branca e um bolso desenhado! Afff! Aquilo precisa ser aposentado ur-gen-te-men-te!

O pessoal da loja só ria, aqueles vendedores plastificados.

- Pega essa calça aqui, ó, tá linda. Promoção.

- Rum. Promoção. Tá de quanto?

- Tá com 50% de desconto.

- E isso dá quanto?

- Vá pro provador que depois eu pergunto ao rapaz.

Olhei pra elas, reticente.

- Vai, diabo!



Não gosto muito de me olhar no espelho. Estava de cueca no provador e percebi que aqueles últimos meses tinham deixado algumas marcas no meu físico. De fato, meu cabelo estava horroroso, as minhas olheiras estavam saltitantes, a minha expressão, de forma geral, remetia ao cansaço. O peso era um caso à parte. Quando voltei a morar em Feira pesava 59kg, e agora, já tinha perdido sete. Só ali, naquela loja, tive tempo de me olhar de fato e ver essas coisas. Talvez as meninas tivessem razão.

E tinham mesmo. A blusa, gola polo, era de um vermelho diferente, e tinha uma malha e um corte que valorizava o que no meu caso nem existia: o peitoral e o ombro. A bainha era um pouco mais alta e mais fechada, ficando alinhada ao tronco. Muito boa! A calça, jeans escura, com uma cintura mais baixa que o normal, alinhou perfeitamente.

Fiz mais algumas poses sensuais pra me certificar que tava tudo ok, e não pude deixar de me lembrar da última vez que havia investido no meu visual. A Noite Fatídica. Por isso mesmo decidi sucumbir ao consumismo, pra tentar levantar meu astral e apagar essas coisas da mente.

Ainda comprei uma outra blusa (azul-puxado-pra-cinza) e uma calça jeans. Seiscentos e sessenta em quatro vezes. Mas, segundo a filósofa contemporânea Lenita, a gente tem que fazer dívida pra ter energia pra trabalhar todo dia de manhã.



Cheguei em casa e procurei pela Drica. Ela estava sentada no chão do quarto, de cabeça baixa, olhando uns papeis. Me aproximei devagar.

- Drica... cheguei.

Ela não me respondeu.

- Oi... tá tudo bem?

- Vovó me disse que tu já trancou a minha matrícula, né?

- É... nem te falei. Fui lá, deu tudo certo.

- Tudo certo? – ela levantou os papeis, eram o seu comprovante de matrícula, algumas provas que ela tinha feito, o seu caderno – estudei tanto pra passar e agora... nada. Tô aqui, presa em casa, os meus colegas terminando já o semestre, fazendo prova, e eu atrasada já no primeiro semestre e...

Começou a chorar. Eu, de novo, perdi o fôlego só de pensar no que aquilo poderia terminar. Abracei-a.

- Drica, vem cá. Levanta desse chão.

A minha mãe veio até o quarto, assustada, e se aproximou.

- O que foi, Drica? Ai, meu Deus.

- Nada, mãe, nada! Ave Maria, eu não posso chorar agora?

Sentamos na beira da cama, eu, a Drica, e a minha mãe. A minha avó também apareceu no quarto. Aquilo tudo era sinal de que vivíamos alarmados, sempre atentos a qualquer movimento, sempre esperando que algo ruim pudesse voltar a acontecer. Vó Liza se aproximou lentamente com o seu andador, e alisou a cabeça da neta.

- Fique assim não, minha filha.

- Ah, vó... O que é que vai ser da minha vida? Hum?

- Mas aos poucos você tá melhorando, filha – a minha mãe argumentou – já tá conseguindo sair de casa, olha, Gu, hoje de manhã a gente foi lá na Malu!

- Foi mesmo! Que bom!

- É, e foi ótimo! Ela não teve nenhuma sensação ruim, não viu o carro, nem nada... ficamos lá a manhã inteira, conversando, dando risada...

- Ô Drica, que bom! – eu sentei no chão, me apoiando nas pernas da minha irmã, para que a minha avó sentasse na cama – aí, tá vendo? É aos poucos... Você já tá saindo pra o supermercado, também, né?

- É... – ela enxugou as lágrimas – compro algumas coisas. Vou na padaria também.

- Então! – peguei nas suas mãos e apertei – é assim mesmo! Você tá bem melhor.

Ela olhava pra a gente, e nós tentávamos passar uma animação que nem tínhamos às vezes.

- Amanhã a gente vai no salão, Gu. Né, Drica?

- É...

- Isso mesmo. Arrumar o cabelo. Ficar bonita.

- Minha filha – a minha avó falava – eu não paro de rezar o dia todo por você. Você vai ver que isso tudo vai passar, com fé em Deus. Você vai voltar pra a sua faculdade, vai terminar seu curso, vai ficar boa de vez. Isso tudo vai ficar no passado, uma lembrança.

A minha avó sempre pegava pesado. Enquanto eu e minha mãe nos conformávamos em ter uma rotina tranquila dali pra frente, sem nenhum surto, a minha avó não queria nem saber das previsões dos médicos; segundo ela, ela estava em oração constante e a Drica ia ficar era completamente boa, se curaria de vez, e tudo voltaria ao que era antes. Eu sempre rebatia dizendo pra ela ir com calma, mas, naquele momento, ela falava com tanta firmeza que até eu me senti melhor, e me deixei crer que aquilo era possível.

Ficamos os quatro um tempo, em silêncio. A minha mãe começou a contar algumas coisas do dia a dia, a gente foi trocando ideia e rindo, e a Drica se sentiu melhor.

- Gu, tu acha que eu consigo mesmo?

Suspirei. Ela me perguntava, e ansiava pela resposta. Até aquele momento, eu tinha certeza que não.

- Sim, claro que consegue. A gente consegue tudo o que a gente quer. Você é tão inteligente, Drica, tá só passando por um momento ruim. Pronto!

Ela abraçou a minha mãe e riu, consolada.

- Minha filha, a gente SEMPRE vai estar aqui. Sempre, sempre...

- Tá.



Levantei de um pulo.

- AH! Lembrei de uma coisa, Drica!

- Que foi!?

- Hoje de manhã teve um cara lá no escritório, desesperado. É um colega meu das antigas, do colégio. Hoje ele é dono daquele camarote da Micareta, um bombado...

Falei o nome do camarote e ela reconheceu.

- Que chique! O que ele queria?

- O CREA e a prefeitura baixaram nas instalações do camarote semana passada, ele me ligou, mas eu falei que só podia conversar com ele hoje, porque eu tava enfiado naquele trabalho, né?

- Sei.

- Então. Hoje ele foi lá. Ele foi notificado, por falta de alguns projetos, e de algumas documentações. Fomos no local, eu vi tudo o que ele precisava, enfim...

- Gu... – a cara da Drica tava: "o que eu tenho a ver com isso?"

- Passei pra ele o quanto ia custar o trabalho, sabe o que o cara de pau me disse? Que não me queria pagar em dinheiro, não, que a gente era tão "broder", e tal...

- Ai, ai... hahahaha!

- Nessas horas todo mundo é "broder"! – a minha mãe riu.

- E ele queria te pagar como?

- Em camisas! Kkk!

- Sério?

- Sério! Disse: "olha, tem gente se estapeando aí por essas camisas, é o melhor camarote da cidade... eu tô te oferecendo porque eu sou seu amigo..."

- Hahaha! E tu?

- Mandei ele pastar, claro. Mas agora, pensando bem...

- O que, Gu?

- Não quer colar comigo nesse camarote não?

- A gente lá nesse camarote chique?? – a Drica olhou pra a mãe, o rosto iluminado – imagine?

- Vamo! Vou ligar pra ele...

- Será que é boa ideia, Gustavo..? – a minha mãe estava receosa – a Drica no meio daquela multidão...

- Ah, mãe... não sei. Por isso que eu tô perguntando a ela. E aí, Drica, se não quiser ir, tudo bem...

- Não, eu... Eu... quero ir sim. Quero ir! – ela riu – quero ir, vai ser massa, a gente lá!

- Se não se sentir bem, a gente não precisa ir nos outros dias, tá?

- Tá. Era isso que eu queria te dizer...

- A gente vai na quinta, vê o clima, como tu se comporta, né?

- É!

Ela ficou mais animada, e eu prontamente liguei pro camarada pra dizer a ele que faria o serviço, por duas camisas do camarote nos quatro dias da festa. Pesquisei no site e de fato eram muito caras, pagaria o projeto com folga. Não achei que tava inaugurando o escambo na engenharia.



Eu ouvi o carro da minha vizinha chegando em casa e aproveitei para abordá-la.

- Camila, minha enfermeira favorita... Deixa eu te agradecer por aquele dia...

- Ah, Gustavo... por nada.

Abracei-a.

- Nossa, você salvou a vida dela, Camila. Brigado mesmo.

- Foi só a minha obrigação. Mas eu adorei ter ajudado assim. Quando precisar, viu? Estamos aqui pra ajudar.

- Tomara que não precisemos, kkk!

- Pois é.

Nos olhamos.

- Ela tá melhor?

- Bom... sim. Na medida do possível. Nunca mais teve nenhuma intercorrência, né? Vamos ver...

Nos olhamos de novo.

- Olha, eu conversei um pouco com a sua mãe sobre ela, tá? Ela me falou.

- Ah...

- Não precisa se preocupar. Eu acho que vocês tão agindo certo em manter um pouco de segredo nesse assunto. O preconceito é muito grande com quem tem transtornos mentais.

- É... eu... também acho. Se já vai ser difícil assim, imagine com as pessoas apontando onde ela for...

- E ela vai precisar ter uma vida própria, sair, conhecer gente, trabalhar...

- Camila... será? Eu tenho minhas dúvidas se ela vai conseguir fazer tudo isso algum dia. Hoje eu torço pra ela se manter equilibrada.

- Olha, Gustavo... doente mental não é inválido não, viu? A conscientização começa dentro de casa. Não é fácil, mas é possível, sim.

- Camila, é que eu ando pesquisando tanto, e...

- ...e deve ter visto que o apoio da família é fundamental. Né?

- É. Mas...

- Eu faço enfermagem, trabalho na loja do meu pai... e sou doente mental.

Olhei pra ela. Fitei-a, espantado.

- Como?

- Fui diagnosticada há uns cinco anos. TOC. Conhece?

- Conheço... sim. A doença do Roberto Carlos, né?

- É. Digamos que sim. Além disso, eu sofro de depressão profunda. Eu tomo quatro remédios diferentes, sou acompanhada e estou vivendo. Nos momentos mais difíceis, tentei o suicídio. Por três vezes. Olha aqui essa marca. Faca de pão, no pulso. Quase vou embora.

- Camila, eu sinto...

- Da outra vez eu tomei remédio pra ver se a minha cabeça parava de pensar... eu pensava que tinha que voltar para trancar o carro, senão algo muito ruim aconteceria, e meus pais... eles... também quase enlouqueceram... eu subia e descia as escadas conferindo se esse carro aqui estava fechado. Eu não dormi por três dias, porque quando eu subia a escada, me vinha o pensamento de que talvez eu não tivesse trancado... e por aí vai.

- Sinto muito.

- Rss. Valeu. Eu também sinto. Sabe... não é a vida que eu achava que poderia ter, ou que mereceria ter, Gustavo. Mas, é a que eu tenho. Hoje me trato, estudo, trabalho, e, sim, tenho os meus dias ruins.

- Mas, quem não tem, né, Camila?

- Pois é. É nesse ponto que eu queria chegar. Porque, afinal, Gustavo, o que é ser normal? Depois de tudo o que eu passei, você não tem noção de quantas pessoas que eu conheço chegaram pra mim e falaram "relaxa, eu também tomo remédio controlado", ou "eu tenho depressão", enfim. E estão aí, vivendo.

- Eu pensei nisso também esse dias, Camila. Minha irmã vai precisar de tratamento a vida toda, mas... e quem tem diabetes, pressão alta? Também não precisa sempre ser acompanhada?

- Precisa, mais até do que a gente! E de perto, ninguém é absolutamente normal, não, ok? Digo porque eu participei de uma terapia em grupo, eram executivos, diaristas, freiras! Gente, saía cada coisa... gente que não conseguia sair de casa por conta de determinada situação... outra que não parava de chorar por conta de um acontecimento de décadas atrás... e todas aí, ditas "normais".

- É...

- Por isso eu te digo: não sabote a sua irmã. Não ache que ela é só uma doença. Tá bom?

- Rss, você falando eu me lembrei de um livro que eu li anos atrás, do Machado...

- "O Alienista"!

- É! O médico interna a cidade toda!

- Eu adoro aquele livro. Ele questiona: vinte e dois homens correndo atrás de uma bola, isso é normal? Uma pessoa emprestar todo o seu dinheiro, e não conseguir cobrar a ninguém, é normal!

- Lembro disso, sim! Muito bom, aquele livro...

- Também gosto. Eu refleti muito com ele.

- Ah, a gente vê cada coisa aí na rua, tem muito doido mesmo! Rss.

- A diferença talvez é que muitos deles não foram diagnosticados, né?

- Hehehe, é verdade!

- "O maior disfarce da loucura, é a sanidade!" Lembra?

- Exatamente, Camila! Isso aí. Não lembrava mais dessa parte. Mas é a mais pura verdade...

- Olha, eu vou entrar. Mas, pensa no que eu te falei. Ela não é só a doença dela.



Na quarta-feira à tarde, eu estava dando conta dos últimos trâmites para o camarote do meu cliente. A festa, oficialmente, só começaria na quinta, mas naquela noite já tinham alguns blocos alternativos, e a confusão era grande com os preparativos. Estava conferindo com os operários alguns detalhes da instalação elétrica, porque teria vistoria do CREA no dia seguinte, quando o Edu me ligou.

- Edu, broder, você não sabe a loucura que tá aqui! Mas tá ficando show de bola o circuito, velho! Tudo arrumadinho...

- Cara, e você de bacana agora nesse camarote? A gente na pipoca, vamo ficar sem curtir junto, é?

- Não, pô. Vocês só vêm no sábado, né? Quinta e sexta eu fico aqui em cima, depois a gente vê. Quero ficar junto com vocês...

- Tá. Ó, todo mundo confirmou, viu? Eu, Diego, Murilo e o meu colega.

- Beleza. Já falaram com o Dan?

- Ô. Se já. Ah, o Murilo disse que vai ficar na sua casa.

- Como assim, gente? E na casa do Daniel, não fica ninguém?

- Foi isso que perguntamos. Mas aí ele resolveu com o Diego que ele dorme lá.

- Mas o Diego tá fazendo um trabalho comigo. Não tem nem graça ele ficar lá em casa e ir pro Daniel só pra dormir.

- Ó, deixa isso assim. O Daniel já conversou, eu também, mas, tu sabe quem é a peça, né? Bateu o pé que queria ficar na tua casa.

- Não tem cabimento isso. A gente vai ficar todo mundo junto de qualquer forma...

- É, mas o menino mimado disse que quer ficar lá cocê. Dan ficou puto com isso.

- Ah, pera que eu vou ligar pra ele. Que absur...

- Deixa aí, pô, eles já conversaram, tá tudo certo. O Diego disse que não liga, não.

- Mas eu vou falar que...

- Se você ligar é capaz de ele dizer que você tá botando ele pra fora.

- Ai, ai... todo mundo fazendo a vontade do Murilo, né?

- Olha quem fala.



Fiquei irritado com o Murilo, uma irritação gostosa... Ele quis ficar lá. Bateu o pé. Idiotinha.

Me debrucei no guarda corpo do camarote, observando o vai e vem dos operários e de todo mundo que de alguma forma estava trabalhando pra aquela micareta. Era excitante ver aquilo sendo formado, aumentava cada vez mais a minha animação pra a festa e o encontro de todos nós que iria acontecer. Sentia saudade dos meninos e da minha rotina de farra com eles. Minha vida tinha mudado tanto desde então, eu nem me lembrava da última vez que eu aproveitei plenamente alguma coisa.

A minha casa estaria cheia, além de tudo a minha tia Malu ficaria lá também. A Mirelle voltaria da lua de mel na quinta, e já ia direto pra a rua. Estava apreensivo com a Drica, era a primeira vez que teríamos tanta gente em casa depois dos últimos acontecimentos. Estava torcendo pra que tudo desse certo.

Estava me sentindo bem, ansioso pra reunir aquele povo e dar umas risadas. O meu cotidiano estava meio pesado, precisava relaxar.

Precisava também cuidar de mim, como as meninas haviam me alertado. Precisava ser um pouco mais otimista, acreditar em coisas boas, por mais difícil que pudesse ser. Precisava seguir em frente, isso incluía deixar certas historinhas no passado. Me peguei novamente pensando no Murilo. Claro que eu fiquei feliz de ele querer ficar mais próximo de mim, mas nem de longe havia na minha cabeça qualquer esperança de que isso significasse alguma coisa. Tudo estava mais claro pra mim. Estava, portanto, tranquilo. Tranquilo pra aproveitar a companhia de todos.

Sem querer e nem saber disso, aliás, negando, eu estava querendo mais uma vez tentar ser minimamente feliz, com o que eu tinha na mão. Driblar os problemas, esquecer coisas ruins, serenar com o que não pode ser mudado, aproveitar os bons momentos.

É,acho que é assim que todo mundo faz.


...


FIM DA PARTE II


Voltamos dia 03/09/17


https://youtu.be/-0jLLmGj1ZI


Eu tô tentando largar o cigarro
Eu tô tentando remar meu barco
Eu tô tentando armar um barraco
Eu tô tentando não cair no buraco

Eu tô tentando tirar o atraso
Eu tô tentando te dar um abraço
Eu tô penando pra driblar o fracasso
Eu tô brigando pra enfrentar o cagaço

Eu tô tentando ser brasileiro
Eu tô tentando saber o que é isso
Eu tô tentando ficar com Deus
Eu tô tentando que Ele fique comigo

Eu tô fincando meus pés no chão
Eu tô tentando ganhar um milhão
Eu tô tentando ter mais culhão
Eu tô treinando pra ser campeão

Eu tô tentando ser feliz
Eu tô tentando te fazer feliz
Eu tô tentando ser feliz
Eu tô tentando te fazer feliz

Eu tô tentando entrar em forma
Eu tô tentando enganar a morte
Eu tô tentando ser atuante
Eu tô tentando ser boa amante

Eu tô tentando criar meu filho
Eu tô tentando fazer meu filme
Eu tô chutando pra marcar um gol
Eu tô vivendo de Rock'n Roll

Eu tô tentando ser feliz
Eu tô tentando te fazer feliz
Eu tô tentando ser feliz
Eu tô tentando te fazer feliz

Eu tou tentando - George Israel e Paula Toller

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