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Noite.
As quatro portas do meu carro abertas no meio da rua, a Adriana imóvel no banco do fundo. Cerca de dez pessoas em volta, acudindo, outras comentando baixinho. Algumas passavam lentamente, outras paravam querendo saber.
Eu desabei no passeio. Com as mãos no ouvido, chorava descontroladamente, querendo que a minha mãe parasse de gritar. Ela corria de um lado para o outro do carro, se desvencilhando dos vizinhos que tentavam lhe acalmar.
- Me soltem! Me soltem! Parem de me dizer que a minha filha está morta! Gustavo! Gustavo! Pelo amor de Deus, meu filho, o que você tá fazendo aí? Gustavo!
- Minha senhora, é melhor a senhora se afastar, não é bom...
- Licença! Saai daqui! Me deixe! A minha filha precisa ir no hospital, ela precisa tomar remédio, alguma coisa, gente? Vocês não estão vendo? Gente! Seu Mário! Alguém ajuda aqui! Gustavo, vem aqui!
- Mãe, para! Paara!
Ela alisava os cabelos da Drica, olhava atentamente, tentava colocá-la em seu colo, em vão. Gritou a minha avó:
- Minha mãe! Pelo amor de Deus, fala com o Gustavo aqui para ele me obedecer! A gente tá perdendo tempo!
Me levantei e lentamente me acomodei pelo outro lado do carro no banco de trás. Apertei as pernas da minha irmã, tentei esticá-las, mas estavam muito rígidas. Minha mãe pegou na minha mão e sussurrou, como se ninguém pudesse ouvir:
- Meu filho, eu te peço pelo amor de Deus. Vamos levar a Drica no hospital. Eu sei que ela não tá morta. Pelo amor de Deus. Pelo amor que você tem a mim.
O nosso vizinho de porta estava me cutucando atrás de mim.
- Gustavo, vem aqui. Se levante, meu querido. Dona Estela, dê uma licença do carro, por favor.
- Por que?
- A minha filha, ela é enfermeira. Quer dizer, ela faz enfermagem. Deixem ela olhar a menina. Por favor.
Saí do carro e percebi que estava tremendo demais. Dei a volta e abracei a minha mãe. A moça estava esperando a gente sair, e conversava pelo celular com alguém.
- Isso. Eu sou estudante de enfermagem. Só um momento. Segure aqui o celular, por favor, Gustavo – ela começou a tocar a Drica em vários pontos, e me pediu para encostar o aparelho em seu ouvido para ela continuar falando – olha, ela realmente está sem respiração e sem pulso. Isso. Três minutos. Como isso deve ser impregnação, pode ser que... exato... né?
- O que foi, Gustavo?
- Não sei, mãe.
- Tá ok. Não tem como mesmo, né? Eu entendo. Ok. Tá bom. Tchau, boa noite.
- Camila, minha filha, você estava falando com quem?
- Dona Estela, nós estávamos falando com a SAMU. Eles disseram que tentaram retornar a ligação, mas o telefone não respondia...
- É... ele... caiu.
- Então. Expliquei que ela pode estar tendo uma impregnação, que causa rigidez muscular, não tô vendo sinais vitais – minha mãe gritou – mas ASSIM, DONA ESTELA, isso não quer dizer muita coisa nesse caso, porque os músculos estão rígidos mesmo. Pode ser que internamente, ela ainda esteja lutando. Porque...
Eu não deixei ela terminar de falar. Corri até a varanda, peguei a minha chave que estava no chão e dei a volta como um louco no carro.
- Entra, mãe. Corre!
- Gustavo, deixa eu terminar de...
- Camila, obrigado. Mas eu vou correr. Cada minuto que a gente perde...
- Mas, olha: tudo bem. Eu entendo. A SAMU disse que realmente não pode vir agora. Só queria sugerir que, de repente, alguém dirigisse pra você...
Ainda olhamos em volta, mas as pessoas, hesitantes, apenas se olhavam também.
- Não, Camila. Eu tô bem. Muito obrigado por tudo.
Os vizinhos fecharam as portas dos carros restantes e a minha mãe se acomodou no banco do carona. Segui direto para o hospital.
- Gustavo, meu filho, se acalme – a minha mãe estava em pânico, eu tinha passado dois sinais vermelhos – a Mônica já está lá, já avisou no hospital, ela falou pra a gente ir pro São Mateus.
- Tá, tá. Olha ela aí. Ela tá escorregando, mãe.
A minha mãe se virou para acomodar a Drica e eu tive que frear bruscamente, pois um carro havia cruzado uma transversal. Com isso, o corpo da Drica foi jogado pra a frente, e eu tive a dimensão de como estava pesado e rígido. A minha mãe gritou:
- Filho! Ela mexeu! Ela mexeu! Espumou! Ai, meu Deus, minha Nossa Senhora!
- Calma, mãe, calma! Pode ser um espasmo somente. Já estamos chegando.
- Que nada! A minha filha tá viva, sim!
Entrei com tudo no hospital, embicando o carro dentro da recepção. A Mônica estava em pé, segurando uma bolsa com uma das mãos e com a outra assoava o nariz e limpava os olhos. Correu até os enfermeiros e os trouxe até nós, que entraram pelos fundos do carro já empurrando-a para uma maca. Outras pessoas se juntaram e ajudaram, enquanto eu sentei no chão e fechei os olhos, sem querer abrir.
A Mônica me tocou no ombro.
- Gustavo, eles vão precisar abrir a Drica.
- Como assim?
- Estão pedindo nossa autorização.
- Mas...
- Eles me explicaram que, como ela não tá respirando, eles vão abrir a garganta dela e enfiar um negócio, sei lá, um tubo, pra o ar entrar. Parece que é o último recurso, porque ele aplicaram uma injeção e até agora nada. Eles não querem perder tempo. Mas o pior é que não deram muita esperança. Ela tá roxa.
Estávamos tomando café no quintal de casa, eu, a minha mãe, a Adriana. A minha avó estava fervendo o leite na beira do fogão e logo depois também se juntou a nós, na mesa. O sol batia de leve no canto, então juntamos as quatro cadeiras na extremidade direita.
A minha mãe estava bonita, arrumada com a farda do colégio, disposta para o trabalho e pronta pra sair. A Drica também, de rabo de cavalo, me abusava para que eu a deixasse na faculdade antes de ir para o escritório. Eu ainda estava de cueca, sempre preguiçoso como todo início de dia.
- Larga de ser chato, Gu! Me leva lá! – a Adriana era uma rata no queijo, já estava no terceiro pedaço.
- Se você esperar eu me arrumar, posso até pensar. Vamos ver – disse, enchendo a minha xícara de café.
- Ah, aproveita e me deixa também no colégio, né, meu filho amado... – a minha mãe completou, piscando o olho enquanto roubava o queijo restante da prato da Drica.
- Ah. Mãe! Meu queijo!
- Afff... olha a exploração da minha pessoa! Tenho que trabalhar, viu? – olhei em volta e ri – gente, é impressão minha ou tá todo mundo atrasado mesmo? Kkkk! – disse, abocanhando uma torrada cheia de manteiga.
- Quem mandou ficarem até altas horas, os três, aí, assistindo filme? Gente, eu levantei era mais de uma hora da manhã e vocês aí, no quiquiqui cacacá – a minha avó, sempre ranzinza, suspirava.
- Ah, minha mãe, o filme era bom! Relaxa, véa. – a minha mãe a abraçava, afetuosamente, e ela correspondia.
- Mas, Gu, se você levar a gente, não existe mais atraso! Viu? Eu resolvo tudo! Hahahah!
- Tá certo, Drica! Duas descaradas!
E ficamos lá, mais uns dez minutos, os quatro, nos dando ao direito de uns risos no início do dia. A casa estava num silêncio matinal típico, aquele em que diz que a rua ainda não acordou direito. O barulho do vento nas folhas do pé de manga, alguns pássaros que pousavam perto de vez em quando... Só achei estranho o pé de manga naquele quintal, não o tínhamos trazido quando alugamos a casa. A minha avó também abraçando a minha mãe era raro.
- Gu, vai tomar banho! Tu tá com uma preguiça hoje...
- Eu vou, daqui a pouco... tô com sono ainda. Não dormi direito.
- O que houve?
- Tive uns sonhos doidos, mãe. Sonhei que a Drica tava doente...
- Euuu? Porque o povo só sonha comigo, hein? E porque eu não ganho na mega sena, pelo menos?
- Sonhei que a Drica tinha perdido o juízo e o médico dizia que ela era esquizofrênica.
- Deus me livre, Gustavo! Que doidice é essa?
Bolinha, o cachorrinho vira-lata da Mônica, estava se lambendo perto da gente. Minha avó deu um passa fora nele. Ele tinha morrido quando a Mônica completou oito anos, mas eu nem achei estranho ele ali, no nosso café.
- Esquizo o que? O que é isso, mãe? – a Drica estava no quarto pedaço de queijo.
- É quando a pessoa endoida, Drica, eu não sei direito. Geralmente esse pessoal que sai matando os colegas no colégio têm isso, é...
- Miolo mole! Kkk!
- Deus me livre, Gu! Logo agora que eu comecei na faculdade!
- Sonho doido, menino...
- Quando eu digo... – a vó Liza novamente - ...esses filmes que vocês assistem, ó! Dá nisso! Vai pra a cama cheio de besteiras na cabeça, sonha bobagem!
- Nada disso! A gente assiste os mesmos filmes, e eu dormi linda a noite toda! – a minha mãe retrucou.
- Dormiu. O "linda" é por conta dela!
- Mas olha, Gustavo, que filha desnaturada eu tenho... – a minha mãe estava boquiaberta com a ousadia da Drica e rimos muito, mas muito...
Abri os olhos e levantei de sobressalto. Ouvi o barulho de um tique-taque de relógio, sussurros de pessoas conversando e uma voz mecânica chamando algum nome.
Tinha dormido no sofá da recepção do hospital. Olhei no relógio, já contavam mais de nove horas. Estava ali então, pelos meus cálculos, há pelo menos meia hora. Sempre achei estranho eu desabar no sono nos momentos mais inoportunos, como aquele, por exemplo. Voltar àquela realidade, no entanto, não parecia uma boa opção. Desejei não ter acordado. Desejei ter parado em algum ponto da minha história e ali ter estacionado, sem mudanças.
O recepcionista me olhava. Eu olhei de volta e ele se aproximou.
- Gustavo, né?
- Sim.
- Boa noite. Eu trabalho aqui na recepção.
- Hum, sei.
- Você vem sempre aqui, né?
- Rss, é. "Você vem sempre aqui" é ótimo. No hospital. Rs.
- Rs, desculpe. É que eu lhe vejo sempre com a sua mãe...
- De fato. Mas hoje é a minha irmã.
- A sua outra irmã lhe procurou, mas como você estava debruçado aí, no braço do sofá, ela não quis te chamar.
- Nossa! Eu desabei.
- É... no início eu pensei que estivesse até rezando, ou meditando... nesses momentos o pessoal costuma fazer isso aqui nesse canto...
- Não... rss. Acho que Deus, se é que existe, está ocupado ultimamente.
O rapaz tentou esconder o choque, e sorriu, discretamente.
- Não crê?
- Não. E se tiver alguma coisa... Escolheu alguns pra cuidar, porque multiplicou demais. Sei lá. Perdeu o controle. Deixa eu ir lá, tá? Brigado.
Entrei no pronto socorro e fui perscrutando os leitos. Uma idosa, um jovem, uma moça, cada um com seus acompanhantes.
A Adriana.
A minha mãe e a Mônica estavam junto dela, uma segurando a mão e a outra arrumando-lhe os cabelos. Elas estavam sorrindo.
- Filho, vem cá! Vem ver.
Me aproximei, hesitante. A minha mãe colocou a minha mão sobre a da minha irmã e a senti apertá-la. Meu coração acelerou e eu olhei de uma pra outra, perguntando o que tinha ocorrido.
- Eles fizeram de tudo, Gu. Eles conseguiram t...
Ouvimos uma voz grave atrás de nós.
- Só pode ficar um acompanhante aqui no PS, senhores – era um homem alto, mas aparentemente jovem, de jaleco.
- Ô, doutor, a gente já vai sair – a minha mãe apontou pro homem – Gu, foi ele que salvou a Drica...
- Rss, só fiz a minha obrigação, senhora. Preciso falar algumas coisas a vocês. A menina teve uma crise, do que a gente chama de impregnação medicamentosa, quando o organismo satura da presença de alguma substância. A sua mãe me disse que ela faz tratamento com Haldol Decanoato semanalmente, o que é uma dosagem muito alta. Provavelmente no futuro o médico dela irá diminuir, mas por enquanto, ela não pode deixar de tomar os dois remédios que servem para combater os efeitos desta injeção. Isso ocorre porque ele atua no sistema nervoso central. Ótimo porque inibe as alucinações e os delírios dela, mas perigoso porque traz muitos efeitos colaterais. Olha... foi muito difícil trazê-la de volta, eu chamaria até de milagre, se não fosse agnóstico, principalmente porque nem foi preciso fazer o procedimento em sua garganta. Quando íamos abrir, sentimos um espasmo e os músculos do pescoço amolecerem. Resolvemos então, na mesa, arriscar, e aguardar, e deu certo. Mas, enfim, vamos acompanhar a evolução, vou deixá-la aí mais algumas horas e recomendo que procurem o psiquiatra dela e relatem tudo o que aconteceu.
- Tá bom, doutor. Muito obrigado – apertei a sua mão – na verdade, depois do que passamos, nem eu tô acreditando direito que ela... voltou.
- Você falou certo. Voltou. Porque, olha... ela estava lá.
- Deus é mais! – a minha irmã se empertigou.
Rimos um pouco e a Adriana se mexeu. Voltamos para ela, que lentamente, acordou, e nos fitou, um a um. Seus olhos já tinham voltado à cor normal, exceto por uns pontos negros ainda persistentes. O pescoço ainda torto, mas já permitia alguns movimentos. Ela me olhou e eu apertei a sua mão. Não consegui falar nada. Só me aproximei e alisei seu cabelo, ela sorriu e eu entendi que ela não tinha mais raiva de mim, ou pelo menos naquele momento não me considerava um inimigo, como em seus delírios. Me lembrei de antes, quando ela me ligava para, nós dois juntos, segurarmos as pontas das brigas entre a minha mãe e a minha avó, segurando um no outro. Suspirei forte um suspiro de alívio, ainda tremia, e comecei a torcer silenciosamente para que ela nunca mais se afastasse de mim.
Saí para a recepção ainda me refazendo. Olhei para o rapaz, que pacientemente explicava a uma senhora estressada o procedimento do seu plano de saúde, e ele acenou com um movimento de cabeça. Me aproximei mais e ele perguntou como estava.
- Agora está tudo bem...
- Ah, que bom. Graças a Deus.
Se virou novamente para o seu atendimento. Me veio um pensamento rápido pela cabeça. Sempre que algo bom acontece assim, automaticamente dizemos "Graças a Deus". Quando queremos repelir algo, "Deus é Pai". Quando torcemos por alguma coisa, "Deus queira", "Se Deus quiser". Sempre usamos dessas expressões, às vezes até de forma inconsciente e maquinal sem acreditar no significado.
O médico havia dito que o fato da Drica ter voltado fora um "milagre", mas eu mesmo duvidava muito da mão de alguém ali, amparando porque atendeu a uma oração. Se houvesse um Deus Pai, a meu ver, poderia, em vez de ajudar no perrengue, simplesmente não deixá-lo acontecer, a menos que houvesse um sadismo envolvido ou estivesse nos castigando por algo anterior. Então isso era Deus?
Pensei no que a minha avó disse. "Não perca a sua fé, meu filho". Tarde demais, eu sentia cada vez mais que já a havia perdido. Mas, naquele momento, senti um vazio de... a quem agradecer. O que me diziam sempre era que Deus a tudo via e cuidava dos Seus filhos, mas onde ele poderia estar na ocasião do surto da Drica? Algumas coisas não se encaixavam, e eu não conseguia mais deixar isso pra lá e continuar numa fé oca.
Pensando em onde estaria Deus certas horas me absorvi, e algo me fez olhar pra cima, para um quadro na parede ao lado da recepção.
Aquele quadro, de tamanho considerável, sempre esteve ali, já o tinha visto sem prestar atenção, mas naquele instante aquela visão me deixou perturbado.
A figura do Cristo estava de braços abertos, olhando pra a frente, com uma frase abaixo, em amarelo:
"EU SEMPRE ESTAREI CONTIGO"
Quando fazia catequese sempre ouvi dizer que precisávamos atentar aos sinais sutis que Deus utilizava para falar a nós, principalmente nos momentos de provação, então, naquele instante, aquilo me fez arrepiar o corpo inteiro.
Pensei em minha avó, que uma hora daquelas deveria estar em sua cadeira de rodas com o terço na mão, sem desacreditar um só momento que seria ouvida. Pensei em minha mãe que agradeceu a um deus que era pai inúmeras vezes lá dentro, e na Mônica que abdicou de uma vida para se entregar naquilo que acreditava. Tudo em vão? Estávamos realmente desamparados? Ou eu estava sendo reacionário como um filho mimado o qual havia sido retirado um brinquedinho? O fato é que eu não conseguia me encontrar em nada.
A figura do quadro era de um rapaz louro, de olhos azuis e traços finos, cabelos longos, como se tornou universal por não sei quem para representar Jesus. Sempre questionei aquilo, achava quase impossível um cara do Oriente Médio ser daquele jeito. Sempre questionei também utilizarem dessas mensagens e pôsteres em locais onde o ser humano geralmente passava por momentos de fragilidade: hospitais, funerárias, etc. Mas o fato é que, naquele momento, eu senti um recado de alguém. E fiquei tocado e fico sempre que lembro. Era muita coincidência aquele cara olhar pra mim e dizer aquilo logo depois de tudo o que passamos naquela noite, e num momento em que eu me perguntava como teria sido possível a Drica ainda estar viva.
Ainda naquela noite, logo depois, decidi que não iria mais pensar naquilo, pois já tinha decidido que não iria me render a qualquer deus ou religião novamente. Percebia que as crenças ou religiões enfraqueciam as pessoas, deixando-as um pouco inertes ou entregando nas mãos do invisível coisas que elas tinham que resolver. Ao mesmo tempo eu pensava que precisava acreditar em mim somente, para assim me fortalecer, e poder enfrentar todas as dificuldades que eventualmente viriam.
Chegamos em casa às duas da manhã, acabados, mas ao mesmo tempo aliviados. A minha avó estava com um dos vizinhos e abraçou muito forte a Drica, que pacientemente, se agachava para encontrá-la na cadeira.
Conversamos um pouco, mas estavam todos cansados. A minha mãe capotou logo, nem quis comer nada. Quando eu saí do banho, a casa já estava silenciosa.
Conferi as portas e janelas, apaguei as luzes e deixei somente a da sala. Me sentei em frente à TV.
O silêncio da noite fez novamente o meu medo voltar e o coração acelerou. Institivamente, massageei o meu peito. O que o próximo dia iria trazer? Até quando aquilo?
Olhei para o telefone espatifado na sala e o ataque de mais cedo. Lembrei do surto anterior, dos remédios, das providências e cuidados a partir de agora, enfim. A minha mente estava ainda acelerada.
Resolvi que o sono estava longe de vir e peguei um livro pra ler. Nunca mais tinha avançado em qualquer leitura.
Li umas três páginas. Resolvi que ia fazer contas.
Listei todas as despesas, as prováveis receitas, o dia em que vencia cada uma e quais clientes teria que priorizar pra receber o dinheiro mais rápido. Perdi mesmo o sono.
Liguei a tevê. Estava passando um filme de ação, daqueles em que vai morrendo todo mundo e no final só sobra um loirinho e uma loirinha que com certeza vão trepar depois do fim. Era até bonzinho, conseguia prender a atenção.
Lembrei do moço da recepção. Sempre o achei gatinho, nas minhas incursões de acompanhante de minha mãe. Assim, fofo, com aquela roupa meio social e o cabelo partido no meio. Liso, toda hora ele jogava pra trás. Mas era um rapaz sério, não dava muita bola pra ninguém.
Refleti que eu nunca mais tinha parado pra pensar em nada assim no campo da paquera ou da putaria. Se antes eu já era fraco, agora eu era de fato um eunuco, como a Rose profetizara. Nem me lembrava da última vez que eu havia olhado pra alguém, ou pensado em qualquer libidinagem.
Deitei no sofá em pensei em bater uma, pra ver se ficava cansado e dormia. Mas eu tava sem inspiração, e deu preguiça de ligar o computador, procurar videozinho, etc. Terminei de assistir ao filme e começou outro.
Só quando os primeiros raios da manhã atravessaram os cômodos, iluminando e mandando embora os fantasmas, eu consegui dormir.
20 de novembro de 2014
- Vamos lá? Agora me conta, como foram esses últimos dias?
O rosto da minha terapeuta estava agora bem próximo de mim, me acordando. Acabara de fazer uma massagem e como sempre, eu adormeci na maca. Me espreguicei.
- Nossa, Lívia, tinha me esquecido de como era bom vir aqui.
- Você está muito displicente com a nossa terapia, menino. Nunca mais veio me ver, só desmarcando as consultas.... precisamos avançar, se lembra do nosso compromisso?
- Rss, lembro... É que eu tô enrolado aí esses dias.
- Tá bom. Me conta, como você tá?
Atualizei-a dos últimos acontecimentos e trocamos ideia. Faço esse tratamento de terapia holística desde 2010, dividido em pacotes em que decidimos tratar de coisas específicas. Depois tiro umas férias de lá, sedimento o que assimilei e volto, para mais uma jornada. Tem sido muito bom.
- Sim, me fala do conto... "Sobre o Amor", não é? Suas postagens, como estão? E o pessoal, tá gostando?
Peguei o meu smartphone e mostrei a ela.
- Aqui, ó. Aqui o que eu postei... os comentários.
- Nossa! Gustavo, eles participam? Que máximo...
- Claro que part... quer dizer: o meu não é assim, tão bombado como outros que tem aí, mas... eu tô gostando mais ainda, porque virou meio que um clubinho, sabe? Tem uma galera fiel, a gente meio que já se conhece, eu fico esperando porque são quase sempre as mesmas pessoas. Ganhamos afinidade.
Ela rolava a tela.
- Gente, olha o tamanho desse comentário...
- Xô ver. Ah, minha filha, esse daí foi profundo, no âmago da questão. É isso o que eu te falei. A gente troca muita ideia, e eu tô... digerindo, sabe como é?
- Sei, Gu, isso é muito bom pra você. Desde o início eu achei que seria uma ótima ideia você condensar os seus escritos, mas... tá vendo? Foi mais além. Não imaginei que fosse haver troca de ideia, muito bom.
Suspirei.
- Anteontem eu postei a parte em que eu desisti de ir pro aniversário do Murilo. Nossa, parece que eu tava sentindo de novo toda aquela... agonia... deixar a minha irmã... ou ir pro aniversário dele... deixar a minha irmã... ou ir pro aniversário dele... enfim. Depois me acabei de chorar, porque daqui pra a frente... sabe né?
- Acredito que nesse momento foi a primeira vez que você abdicou da sua vida pessoal por conta da sua... família. Estou certa?
- Não tenho certeza. Pode ser que sim. Olha só, esse cara escreveu exatamente sobre o que conversamos da última vez.
- Sim. Sim. E você? Refletiu sobre tudo o que a gente conversou?
- Refleti, sim, Você tem razão. De fato, criou-se um trauma.
A doutora tinha trazido para debatermos no divã uma teoria de que, após o assalto, e tudo o que veio depois, tinha-se criado em mim um trauma, que na linguagem restrita da psicologia significa: um dano emocional decorrente de alguma situação ou acontecimento doloroso. Para evitar que tal experiência ocorra novamente, o trauma faz uma ampliação do medo, envolve mudanças de comportamento e de pensamento do traumatizado, que fará de tudo para que a experiência não ocorra novamente.
- Veja bem o desenrolar dos acontecimentos, Gustavo: você viaja, volta e vê que a sua irmã e sua mãe foram assaltadas; você não estava lá para "protegê-las"; a sua irmã começa a desenvolver a doença; a sua irmã quase morre; a sua mãe logo depois sucumbe...
- Será que é por isso que eu tenho tanto pavor de me afastar? De viajar?
- Com certeza. Você chegou onde eu queria. Me responde agora: por quanto tempo você ficou achando que a Drica poderia morrer ou surtar a qualquer momento?
Parei e respirei fundo. Olhei pra ela, que me olhava, compreensiva. Não falei nada. Lembrei de todos os momentos em que, depois daquilo, eu tentei controlar tudo, ao longo de todos esses anos, e decidi que poderia me anular a favor da paz, da harmonia da casa e da saúde daquelas pessoas. Abdiquei de momentos, de pessoas, de mim mesmo, enfim. Abdiquei até do meu casamento.
Eu, sentado no chão da sala de estar do nosso apartamento em Salvador, olhava para todos os móveis e objetos que compunham aquele cômodo. Ao longo de um ano, fomos juntando e comprando cada um deles. A TV, o bicama, o rack com o computador, as cadeiras. Estranhamente, quando tudo parecia estar completo, eu assistia ao amor da minha vida fazer a mala. Ou seja, nem precisávamos então de tanto esforço.
Eu ainda interrompi a sua passagem pela sala até a porta de saída, segurando-o pela mão que segurava a sacola, sem perceber que o fato de eu estar no chão simbolizava o meu estado real. Suplicava apenas com o choro tímido e com o olhar fixo no seu. Ele me retribuía com dó, mas com firmeza. E antes, de me soltar e partir, disse:
- Eu só acho que você tem que aprender muito ainda Sobre o Amor. Você não sabe... amar. Sei lá. Boa sorte. Ah, e eu sempre, sempre vou te amar.
Comecei a chorar silenciosamente, enquanto ela alisava a minha testa e apertava a minha mão.
- Isso tudo já passou, meu querido.
Depois de um tempo, ela me passou o dever de casa: refletir e anotar as consequências deste comportamento para debatermos na próxima consulta e antes da próxima postagem.
- Antes de você ir embora, vamos fazer as nossas repetições? Quero ver você bem!
- Vamos sim.
- Eu, Gustavo...
- Eu, Gustavo...
- ...não mais permitirei que o medo atrapalhe a minha felicidade...
- ...não mais permitirei que o medo atrapalhe a minha felicidade...
- ...quem se foi precisava ir, pois completou-se seu tempo na Terra, e todos que aqui estão vão ficar bem...
- ...quem se foi precisava ir, pois completou-se seu tempo na Terra, e todos que aqui estão vão ficar bem...
- ...e que eu tenho que cuidar de mim, porque eu me amo e me aceito profundamente...
- ...e que eu tenho que cuidar de mim, porque eu me amo e me aceito profundamente...
- ...a partir de agora, continuarei amando a minha família, mas vou priorizar a mim mesmo...
- ...a partir de agora, continuarei amando a minha família, mas vou priorizar a mim mesmo...
- ... porque eu entendi que eu mereço ser feliz...
- ... porque eu entendi que eu mereço ser feliz...
- ... eu mereço ser feliz, porque eu me amo.
- ... eu mereço ser feliz, porque eu me amo.
- E eu vou ser feliz.
- E eu vou ser feliz.
- E eu vou ser feliz.
- E eu vou ser feliz.
- E eu vou ser muito feliz.
- E eu vou ser, sim, muito feliz.
28 de março de 2008
Cheguei em casa um pouco mais cedo que o habitual. Tinha chegado no escritório por volta de oito da manhã e resolvi levar direto sem parar pro almoço, por conta de um projeto que precisava finalizar. Quando finalmente terminei, eram três da tarde. Fui pra casa, almocei, tomei um banho frio e fui ver a Drica no quarto. Ela estava deitada, com a cabeça virada pra a parede. Quando eu enfiei a cabeça no quarto, ela se virou.
- Pensei que tava dormindo...
- Não. Tava aqui pensando na vida.
- Tá... tudo bem? – disse, me sentando ao seu lado na cama.
- Tá sim, Gu.
- Deixa eu ver os movimentos. Dói ainda?
- Não. O pescoço já voltou pro lugar, mas a mão ainda não. Já consigo andar normal, pelo menos.
- É, o médico falou que demorava uns três dias pra voltar.
Ela me olhava. Sabia que queria me dizer alguma coisa. Suspirei e abaixei a cabeça. Eu não sabia mais lidar com ela.
- Bom... eu vou comprar pão. Já volto. A gente pode assistir alguma coisa depois. Ver Notting Hill pela sexta vez.
- Rss, pode ser.
- Hum. Então, tá.
- Posso ir contigo?
Me espantei.
- Tu vai querer sair de casa? Quer dizer, tem problema não?
- Acho que não. Quero sair um pouquinho, Gu. Tu tem dinheiro pra um sorvete?
Demos a volta na quadra pra achar a sorveteria da rua de trás. Ela passou o braço no meu e fomos andando, de vez em quando eu puxava o queixo dela pra cima, lembrando da orientação da terapeuta de ela parar com o costume de andar olhando pro chão. Ela ria. Estava de cabelo amarrado, magra como um palito, mas, com uma expressão de serenidade no rosto. Parecia-lhe querer novamente viver, e aquela sensação que eu percebi me deu um conforto grande também. Quando algum carro passava ela procurava olhar pra outro lado, na certa querendo afastar algum pensamento negativo.
- Não quero olhar mais pra carro nenhum.
- Relaxa... Isso passa. Vai passar também.
Ela suspirou.
- Gu... desculpa, tá?
- Pelo que?
- Eu te pedi perdão naquela hora porque eu pensei que ia morrer. Mas não era só por ter deixado de tomar o remédio, não. É por ter te tratado mal esse tempo todo.
- Eu nunca levei em conta isso, Drica. Não tem do que.
- É que... o pensamento às vezes eu não consigo controlar. As vozes me contavam que você era um traidor, e que tava fazendo... ah, eu não quero lembrar...
- Não lembra. Deixa tudo isso pra lá. Já passou.
Nos abraçamos na entrada da sorveteria. Lá em casa, isso era um avanço, nunca fomos treinados pra pedir desculpas, dar boa noite, abraço ou qualquer outra coisa que pessoas normais fazem. É todo mundo muito tosco.
- Quero duas bolas de napolitano.
- Eu quero uma só.
- Só uma porque, Gu?
- Porque eu só tenho oito reais.
A Drica deu uma crise de riso, bem alta, que fez a moça ao lado rir e eu também.
E numa sorveteria de bairro, final da tarde de uma sexta-feira qualquer, com oito reais na mão, tive uma sensação de alegria e gratidão como nunca antes. A minha irmã estava viva, sorrindo, voltando aos poucos à realidade. De fato, não é preciso muita coisa para sermos felizes, às vezes só mesmo o que a gente já tem.
Nos dias seguintes aumentamos a vigilância em cima dela, para assegurar que os remédios fossem tomados. Mas era ela quem agora cuidava dos horários, pois morria de medo de quase morrer de novo. Então, era a primeira quem dizia que não poderia faltar a medicação. Além disso, a experiência traumática a fez de alguma forma e por um bom tempo voltar à realidade novamente, o que foi um alívio para nós, e principalmente para ela.
Na semana seguinte a minha mãe conseguiu que fosse aprovada a sua licença do trabalho. A primeira providência que eu tomei foi ir a Camaçari.
Eu já tinha uma lista considerável de projetos executados para a Valquíria, sem receber um centavo por isso. Não era exatamente culpa de ninguém; eu precisava abrir uma empresa, regularizá-la, e atender a uma lista de documentação para apresentar, assinar contrato, fazer relatório de execução para pagamento... me vi atolado, primeiro na abertura da própria empresa, depois no atendimento das exigências da minha cliente. Ser empreendedor no Brasil ainda é complicado. Abrir a empresa, em si, é relativamente fácil. O quase impossível é mantê-la, são muitos tributos e exigências.
Eu e a Lenita, por outro lado, éramos muito desligados. Estávamos acostumados a lidar com clientes particulares ou empresas menores, em que as coisas correm de forma bem mais prática – às vezes era no melhor estilo "toma lá dá cá" mesmo. Era um mundo novo ter que correr atrás de Receita federal, INSS, contador, o diabo. Com os últimos acontecimentos lá em casa, fui me desligando cada vez mais da parte prática da vida, a qual fui chamado tão logo as dívidas começaram a avolumar.
Chamei logo o Bomba pra bater a real: "Não saiu nada ainda, sei que eu tô te devendo, mas, assim eu sair, eu te pago". Ele só fez "relaxa, sei que tá guardado". Na verdade o que ele queria mesmo era guardar, pelo menos até junho, pois estava com planos de casar no segundo semestre. Ele tinha uma noiva há onze anos, era completamente apaixonado por ela, e estava contando as horas pra juntar os trapinhos. Esse dinheiro serviria para ajudar a mobiliar a casa que eles tinham adquirido. Me comprometi que resolveria até lá.
Também conversei longamente com a Valquíria sobre o andamento do nosso contrato. Estava dependendo mais de mim mesmo, de eu regularizar a documentação da empresa e ela enfim efetuar o pagamento.
- É o único caso que eu tenho aqui em que eu quero pagar e o fornecedor não quer receber...rss.
- Não quer? Hahaha, amiga, você não sabe de nada...
- Rsss, sei, sim. Quer dizer, posso imaginar.
- Vocês também aqui, vou te contar... uma put... uma burocracia pra fazer um contratinho. Precisa daquilo tudo mesmo, Val?
- É, é verdade. Mas, eu não posso fazer nada, são as regras da matriz. Você tem alguma previsão de quando poderemos fechar isto?
- Olha, sinceramente, não sei. Meu contador falou em quinze dias, mas, toda hora aparece uma taxa, um imposto, uma regularização cadastral... Aí eu tenho que correr atrás do dinheiro pra pagar o imposto, pra receber este dinheiro!
- Terrível. Tô te perguntando isso porque: eu tô com uma demanda enorme ainda de projetos para serem feitos, Gustavo, eu estava na verdade aguardando o desfecho pra ver se eu ampliava o nosso contrato com você ou procurava outras opções. Por isso que achei importante marcar essa reunião pra você me ajudar a definir...
- Sei... – eu estava confuso – pô, Val, o problema é que nem eu sei o que te responder. Ao mesmo tempo em que eu tô com situações pessoais um pouco complicadas, e aí tenho medo de me comprometer com coisas que não vou dar conta, eu preciso trabalhar, né? A outra coisa também é quando eu recebo. Não posso ficar trabalhando de graça, mesmo que não seja culpa sua.
- Eu entendo. É que eu preciso dar conta disso aqui – bateu a mão em cima de diversas pastas em cima da sua mesa.
- Bom. Vamos fazer o seguinte? Me explica o que tem e eu te digo no final se dá pra pegar.
Passamos a tarde inteira vendo as necessidades de projeto da Dra. Valquíria. A impressão que me dava era que eu tinha condições plenas de fazer, mas estava receoso. No final do expediente ainda não tínhamos visto tudo, mas eu já estava preparado para ficar lá o tempo que fosse necessário.
- Não se preocupe, Val. Eu vou dormir por aqui e amanhã a gente continua.
Procurei pelo Edu no corredor e ele estava conversando com o Bigorna, que me abraçou efusivamente. Conversamos um pouco, querendo saber novidades um do outro.
- E aí, Gustavinho, me conta como você tá!
- Como eu tô? Ói, Bigorna, deixa quieto viu... Eu fui contar a minha vida prum carroceiro amigo meu, até o jegue dele chorou.
- Caralho! Kkk! Tá mal mesmo!
- E tu?
- Ah... a novidade é que eu tô pensando em sair daqui, velho, fazer igual a você. Me picar. Salário ainda continua aquela merda, não tem como melhorar... sei lá. Tô pensando em falar já com a Valquíria aí essa semana.
- Poxa... pena. Mas, enfim, se for o melhor pra você, né, tem que meter as ca...
Senti um braço passar por trás de mim até o meu tórax. Virei a cabeça pra trás e vi o Murilo sorrindo, querendo me dar uma gravata.
- E aí, rapaz... Veio ver os pobres! Lembrou dos amigos...
- Ah... hahaha! Na verdade, vim atrás de dinheiroo! – me virei – Ver vocês é uma consequência!
- Hahaha, tá vendo aí, Bigorna, Edu? – me abraçou – como são as coisas?
- Como é que você tá, Murilo?
- Eu tô bem, cara. Tudo indo. Aquela correria de sempre. Sabe, né? E você, como está?
- Fala pra ele, Gu! Kkkk! - o Bigorna riu.
- Pois é, vou nem contar! Digamos que esteja tudo indo – me virei pro Edu – Edu, meu filho, vamo?
- Vamo! – o Edu respondeu – vou só catar meus trecos na minha sala e a gente vai.
- Vão pra onde?
- Eu e o Edu? Lugar nenhum! Quer dizer, vamos pra a casa dele. Me convidei a dormir lá.
- Gente, eu já vou também – o Bigorna se despediu – pra você que fica, cabeça de pica!
- Ah, nojento...
- Baixo astral!
Olhamos o Bigorna se afastar.
- Sim, Gustavo, me conta aí, seu pessoal, tá bem? E aqui, como anda o trabalho? E esse sumiço todo, foi o que?
- Ah... o pessoal tá bem. Tá tudo bem. Tive que sumir porque estava ajeitando outras coisas. Agora, eu tô vendo o meu contrato com a Valquíria aqui, vim aqui resolver isso. Talvez tenha que ficar aqui por uns dias, vamo ver.
A Aline passou pelo corredor e nos cumprimentamos.
- Tudo bem, doutor Gustavo?
- Eu não tenho doutorado, Aline. Rss.
- Rsss.
- Mas tá tudo bem, sim. E com você?
- Tudo ótimo. Apareceu, né?
- Pois é. Rs.
Ela se virou pro Murilo.
- Murilo, eu vou indo. Vou só pegar as minhas coisas no setor.
- Tá – ele olhou pra mim e pra ela, ela olhou pra mim, eu olhei pro lado, ele olhou pra o outro – Espera um pouco que eu vou também na sala, e já pego as minhas coisas também.
- Bom, vai lá Murilo, não se prende por mim. Eu vou buscar o Edu, que deve estar de mudança da sala, só pode.
Saí direto pra a sala do Edu e ele já havia desligado o PC, já levantando da cadeira.
- Bora, porra!
- Bora, caralho. Tava terminando só uma merda aqui.
- Hum.
- Pensei que ia sair com o Murilo.
- Quem? Eu?
- Não. A Feiticeira.
- Não, Edu, eu quero ir pra casa. Quero dizer, pra a sua casa. Nem te falei que eu vou dormir lá, né?
- Não tinha falado, não. Já virou brega mesmo isso. Ó, mas eu tô indo pra a faculdade agora, então, tu vai lá e fica me esperando.
- Poxa... e eu chego lá de mala e cuia na tua casa e digo "oi, gente, onde é meu quarto mesmo?"
- Vou ligar pra lá, idiota. Pera.
O Edu ligou e avisou que eu estava indo. Hum, que gelo, ficar lá sem ele.
Na saída ainda encontramos a Solange, que fez a maior festa quando me viu.
- Meninooo! Ai, já vi que vai ter cerveja hoje, né? Aiii... pena que eu vou ter reunião com a comunidade... pouxa...
- Onde vai ter cerveja eu não sei, mas a minha vai ser na faculdade! – o Edu me empurrou – Bora, Gustavo, que agora quem tá com pressa sou eu. Me dá um tombo até o centro, na moral.
- Bora. Vem, Solange, com a gente. Qualquer coisa a gente para em algum lugar e come algo.
O Edu acabou lanchando com a gente no centro da cidade antes de ir pra a facu. Coisa rápida, coxinha, risole, e refrigerante. O Murilo parou na porta da lanchonete, estava andando, nos viu e entrou.
- Você saiu sem falar nada, Gustavo. Procurei vocês lá, o vigia disse que tinham saído.
- Ah, foi mal. Pensei que você já tivesse ido com a Aline. E o Edu precisava ir. Foi mal. Quer um lanche?
- Quero, sim. Tô com fome.
- Gente, eu vou adiantar – o Edu anunciou – tô atrasado. Tchau – pegou a mochila e saiu.
O Murilo foi até o balcão, escolheu a sua peça e voltou à mesa. Comemos.
- Gustavo, porque você não dorme lá em casa, bicho? Eu tô só, o pessoal tá todo viajando.
- Ah, Murilo, não sei. O Edu já avisou ao povo, eles devem estar esperando.
- A gente passa lá, pô. Fala com eles.
- É, Gustavo. Se o Murilo tá só em casa, fica melhor pra você, né? – a Solange ajuntou.
- Larga de coisa e umbora – ele pegou a chave do meu carro e se levantou.
- Gente – a Sol suplicou – me deixem ali, por favor no local da minha reunião, please... Tô cansada de andar. Velha.
- Deixamos, sim, Sol – o Murilo respondeu – só falar onde é que eu te deixo.
Ele deve achar mesmo que o carro é dele. Saiu na frente, sentou no banco do motorista, ligou o carro e ajeitou-se. Restou-me o banco do carona, e a Solange, sentada atrás, dava as coordenadas do lugar. No meio do caminho ele parou em frente a uma farmácia.
- Sol, é rapidinho, só vou comprar uma parada aqui.
- Tá, mas não demora, já são quase sete e meia.
Ele saiu, depois de alguns minutos voltou e depositou no espaço entre os nossos bancos uma sacolinha da farmácia onde se via nitidamente um pacote de camisinha. A Solange arregalou os olhos, e depois disfarçou.
Mais uma vez eu levando a fama sem deitar na cama, literalmente. Era óbvio que aquele pacote seria usado a quilômetros de distância de mim, mas a Solange, com toda aquela boataria do passado e a informação que eu iria dormir na casa dele, saiu para a sua reunião convicta que hoje ia ter sessão de sodomia intensa na casa do Murilo.
E o Murilo, como sempre, sem noção.
No caminho para a casa do Edu, estava comigo pensando se não era melhor ficar por lá mesmo, sem maiores contatos com o Murilo. Estava só sem jeito de falar com ele. Estacionamos na porta do Edu e eu percebi que o celular dele tocava. Vi no visor o nome "Aline". Aproveitei.
- Murilo, acho melhor eu ficar por aqui.
- Porque, cara? – Ele estava com o celular na mão, sem atender.
- Cê não tem compromisso ainda?
- Hum... não. Quer dizer... mais ou menos.
- Não é a Aline que tá ligando aí? Marcou com ela?
- A gente tinha marcado agora de noite, mas... eu posso desmarcar. É só eu ligar pra ela, peço pra ela esperar...
- Não, pô. Vai pra a sua foda. Perca não. Eu tô cansado mesmo, entro, fico por aqui... de boa. Vai lá. Aproveita a casa vazia! Rss.
- É verdade. E eu tinha marcado com ela também, né? Fica chato.
- Também acho. Quer que eu te deixe em algum lugar?
- Não, relaxa, eu me viro. Cê tem certeza que vai ficar legal aí?
- Sim. O povo aí é tranquilo. Relaxa. Amanhã a gente almoça, faz alguma coisa, quem sabe. Olha... quer o carro emprestado pra ir lá? Eu não vou usar mais hoje, vou ficar recolhido. Amanhã você me pega aqui, qualquer coisa.
- Não, não. Aí não.
Sabíamos porquê. Depois da Noite Fatídica em que ele cometeu aquela leviandade, deve ter ficado receoso em utilizar meu carro novamente. Mas, sinceramente, naquele dia ele poderia fazer uma orgia romana naquele Palio que eu não tava nem aí. Queria mesmo era tomar um banho, esticar minhas canelas e relaxar.
- Vai, Murilo. Larga de besteira e vai logo. Amanhã a gente se fala.
Entrei na casa do Edu e ele foi embora.
Tomei um banho merecido, coloquei um short e uma camiseta, e me sentei na mesa da sala de jantar, onde dava pra ver a tevê em que os pais do Edu assistiam a novela. Ele já tinha me ligado dizendo que ia esticar a noite com os colegas da facu, me chamou pra ir, mas eu não quis. Estava repassando a reunião com Valquíria e organizando em uma planilha. Queria muito pegar os trabalhos, mas precisava também de sustentabilidade econômica para isso. Liguei pra a Lenita e ela me encorajou a pegar, e firmamos juntos o compromisso de regularizar a empresa o mais rápido possível.
A Drica estava me ligando e eu tive um sobressalto. Quando eu atendi e vi que ela estava calma, respirei, e me perguntei até quando eu ficaria em estado de alerta.
- Na verdade, é a Mirelle que tá aqui em casa. Veio pra falar contigo, pera.
Ouvi ela passando o celular pra a Mirelle.
- Oi, Mi!
- Oi, Gu! Que merda tu tá fazendo aí?
- Ah! Nem te conto. Catando dinheiro. Mas, me conta, aconteceu alguma coisa? – senti a minha prima nervosa.
- Ah, nada não. Deixa pra lá. Poxa, Gu... Tu vem que dia??
- Amanhã no fim da tarde ou então depois de amanhã, não sei. Foi alguma coisa com o casamento? Eu já tenho o dinheiro da terceira parcela do agiota, viu? A minha parte.
- Não, relaxa. Eu já consegui o dinheiro todo. Fiz uns extras, aí. Deixa pra lá.
- Mi, eu pos... – ouvi o fim da ligação. Liguei de volta imediatamente e a Drica que atendeu.
- Gu, ela saiu aqui, disse que ia pra casa, que não queria mais falar com ninguém não. Mãe até saiu atrás dela, mas ela tava agoniada.
- O que terá sido, gente?
- Eu, hein!
- Bom, deixa pra lá. Quando eu chegar aí eu a procuro.
- Tá.
- E não se preocupa, não, tá?
- Tá.
- Boa noite.
Eu tinha ido pro quintal da casa do Edu, porque eu tinha conversado primeiro com a Lenita e depois com a Drica e a Mi, não queria incomodar o pessoal. Nem sei quanto tempo fiquei lá, mas quando eu voltei pra a sala, o Murilo estava lá sentado.
- Que foi?
- Não falei que voltava?
- Não. Pensei que já ficaria por lá.
- Entendeu errado. Bora?
- Aff... Pra ONDE, Murilo?
Estávamos no carro, indo pra a casa dele. Estava fazendo as contas mentalmente. Ele me deixou em casa quase oito, às nove já estava lá de volta. Eca... Como que lendo meus pensamentos, ele falou:
- A gente só conversou um pouquinho mesmo, eu falei que você tava esperando.
- Mas a gente combinou que eu ia ficar por lá, né?
- Mas não tem lógica, né? A minha casa vazia, e tal.
- Tá.
Ele colocou o carro na garagem e subimos a escada. Lembrei daquele dia trágico em que conheci a Priscila.
- A Priscila não vai baixar aqui amanhã não, né, bicho?
- Não, pô, relaxa. Ela tá calma esses di...
Paramos na sala, o irmão dele estava refestelado no sofá só de cueca. Colocou uma almofada em cima das partes íntimas e falou conosco. Fomos pro quarto dele. Joguei a sacola no chão e abri os braços.
- O que você entende por... "casa vazia", Murilo?
- Ah... é meu irmão, só. Mas os meus pais viajaram mesmo. Eu vou pegar o colchão e coloco aqui ao lado da cama, tá?
- Deixa que eu pego, vai tomar banho. Tá aonde?
Quando ele voltou do banho, eu já estava deitado, abraçado com um travesseiro grande que eu tinha encontrado.
- Poxa, já tá assim? Ia te chamar pra a gente ir ali, velho!
- Ô, eu tô morrendo de sono... Amanhã quem sabe a gente faz alguma coisa.
Ele se sentou na cama e me contemplou.
- Cê tá com uma cara abatida mesmo.
- Brigado pelo elogio. Me sinto melhor. Agora deixa eu dormir.
- Não quer sair não, pra a gente conversar?
- Bora conversar aqui um pouquinho. Ó, já tô vendo tudo: a gente sai, aí encontra o Edu, que tá com uma galerinha, que liga pra o Bomba, pro Diego, e aí quando eu vou ver já são quatro da manhã... afff!
- Quem era você, hein? – ele dizia me olhando com desdém e eu levantei meu dedo médio pra ele. Depois rimos.
- Me conta, Murilo, como é que você tá.
Ele pegou a toalha que ainda descansava nos seus ombros e enxugou o seu cabelo.
- Eu tô bem, cara. Não muda muita coisa, não.
Conversamos muita coisa. Ele me mostrou uns trabalhos da faculdade que ele estava fazendo, super empolgado. Queria saber como eu estava me virando, mas eu nem dei muitos detalhes sobre a confusão lá em casa. Falamos muito de engenharia, falamos pouco de mim e menos ainda dele com as suas esposas. Como eu estava com muito sono, cochilava entre um papo e outro, e ele me cutucava e voltávamos a conversar. Depois não teve jeito, entrei em coma e só acordei de manhã.
A Valquíria ficou super feliz porque eu aceitei os trabalhos, ficamos trabalhando o dia inteiro. Almocei com o Murilo e com os meninos todos da sala da Engenharia, o que foi ótimo. No fim do dia o Murilo me levou pra um pagode de mesa que tava rolando num boteco, a gente ficou lá olhando o povo dançar. Depois fomos pra um outro barzinho pra fechar a noite.
- Tem falado com o Daniel?
- Tenho sim. Sempre nos falamos.
- Ele sumiu.
- Tá em Itaberaba, né? O que pega é que seu celular é da Claro, Murilo, aí fica ruim pra se falar. Ó: eu, o Edu, o Dan, é todo mundo da Tim.
- Ah, mas eu não quero pegar outro chip não.
- Então se foda. Hahahaha.
- É que você tá diferente.
- Eu?
- É. Tá meio aéreo, assim. Cansadão.
Suspirei.
- Ah... nada não.
- Você me falou que lá na sua casa tava meio ruim, né?
Durante o dia tínhamos conversado um pouco sobre mim, sobre ele, mas eu preferi não contar nada do que tava rolando lá em casa. Na verdade, não me abri muito pra ninguém; pro Edu e pro Daniel eu tinha falado por alto, sem dar detalhes. Primeiro porque me doía lembrar, depois não me sentia à vontade pra descarregar aquelas coisas tão pesadas nos ombros dos outros. Preferi, no momento, me recolher.
- Na verdade, é tudo junto. Mas é só uma fase. Eu vou me organizar. Acho que todo mundo tem isso, né? De passar por períodos mais pesados, mais corridos... sei lá.
Nos olhamos e rimos. É fato que eu estava diferente, e ele também, cada um a seu modo e por suas razões. Ao longo do dia pude perceber como as coisas tinham mudado, realmente. Ainda éramos ligados, procuramos aproveitar a companhia um do outro, bem como dos outros meninos também, mas de fato não existia nem da parte dele nem da minha, aquela ânsia de outrora, aquela confusão de sentimentos que descambava em alguma discussão ou confusão. Eu, porque distante de tudo, tinha me tornado uma máquina assexuada de resolver problemas familiares, e ele, porque estava amando, e portanto, satisfeito nesse campo.
- Vê se vem mais aqui em Camaçari. Nunca mais a gente tinha se visto nem nada.
- Você também, de repente. Nunca foi lá em Feira.
- Fui aquela vez.
- Entregar documento.
- Mas vale.
- Tá. Marca um dia com o Edu, pô. Vocês saem aqui num sábado, a gente combina com o Dan também, seria ótimo.
- É. Seria mesmo. É que eu tô tão enrolado aqui... cê sabe, né?
- Rsss. Sei. Se já era difícil com uma, imagine com duas agora...
- Verdade. Mas... a verdade é que eu não posso continuar assim por muito tempo, não. Sinto que eu tenho que tomar uma resolução.
Sorvi um gole da minha cerveja e procurei a minha carteira de cigarro no bolso. Estávamos entrando pela primeira vez nesse assunto, e eu não queria me envolver, por várias razões.
- Você acha que tem que tomar uma resolução?
- Claro! Como não?
Dei de ombros.
- É fato, né, Murilo, que você sempre chifrou a Priscila. E, ao que me parece, ela sempre aceitou, m...
- Ela é ciumenta!
- ....mesmo se fazendo de desentendida. Por favor, ela implicava com a sua amizade comigo e você pegando geral aí. Agora, por exemplo: tá namorando outra pessoa há três meses! Vai dizer que ela sequer desconfia?
- Ah, acho que não.
- Acho difícil. Pra mim, ela é uma corna-cuscuz. Sabe, mas abafa. Kkk.
- Rsss.
- Então, Murilo, nesse cenário, nem sei se você teria que tomar uma resolução, entende?
Ele se calou. Vi que ele queria falar algo, mas se conteve. Arrisquei a tentar identificar o que era.
- A menos que você... sinta a necessidade agora de, de fato, resolver e ficar com uma pessoa só.
- É... mais ou menos isso.
Me empertiguei. Aquela conversa estava ficando desconfortável de repente.
Ficamos calados um tempo, acho que absorvendo que o rumo da conversa estava indo pra um rumo que inconscientemente tentávamos evitar. Ele riu.
- Engraçado a vida, né, véi? Eu, noivo há anos com a Priscila, todo mundo esperando que o casamento saia... e de repente, sei lá...
- Se apaixona por outra pessoa que não tinha nada a ver com a história, nova no pedaço, que não conhecia ninguém e não tava nem aí pra quem já estava... É, isso é a vida! Rsss.
- Verdade. É tudo muito imprevisível. Eu mesmo não imaginava que não me casaria com a Priscila, porque já tinha me acostumado com ela... até com os defeitos, sabe? Achava que aquilo tava bom.
- Até descobrir o que de fato importa: amar.
Ele me fitou. Estava sem graça e me perguntei porquê. Será que era porque eu estava induzindo-o a admitir certas coisas?
- Você é bem romântico, né, Gustavo?
- Ah, Murilo. Não sei. É só a visão do que eu observo. Minha prima tá super nervosa porque vai casar em poucos dias, mas vejo que o que ela quer é isso. É o Maurício que ela gosta. Os dois brigam pra caralho, mas são super ligados. A minha irmã tá com um cara que não vale nada, mas tá lá, tá feliz. Enfim... o que eu vejo é que tá todo mundo correndo atrás do que importa, que é a sua felicidade, sei lá. Não chamaria isso de romantismo. É estatística!
- Ah, tá.
- Você, por exemplo. É fato que a Aline mexeu contigo. E agora você quer, mas não tem coragem não sei por que, de gritar isso, mandar a Priscila pra a casa do caralho e curtir seu momento com ela.
- Não é tão simples assim.
- Desculpa. Eu sou sempre muito categórico.
- Não, relaxa. Eu gosto do seu jeito assim, taxativo. Mas não é simples mesmo. Eu tenho uma história com a Priscila, né? Eu sei o quanto ela me ama. Eu...
- Você tem dúvidas do amor da Aline?
- Não! Não! De jeito nenhum.
- Foi mal. É que do jeito que você falou, eu...
- Você sabe que ela é casada, né? Te falei?
- Humm... não. Mas... eu soube.
- Ela tá inclusive disposta a se separar, também, isso é uma prova de amor do caralho, eu acho.
- E...
- Só isso. Sei lá, a dúvida.
- Medo da mudança.
- Talvez.
Suspiramos.
Ele me estudava.
- Gustavo, você... deixa pra lá.
- Eu o que?
Ele ria, balançava a cabeça.
- Quem te conhece, assim, te vê no dia a dia... nunca vai dizer que você é assim, que tem esses... pensamentos...
- Como assim? Que pensamentos? Kkk!
- Esses arroubos românticos...
- Não é romantismo, é estatística, já te falei. Tá todo mundo procurando a felicidade, embora ela possa nem existir...
- Aí, tá vendo? Quer dizer então que felicidade não existe?
- Talvez não. Tem uma arquiteta amiga minha, que é crente inclusive, ela me deu um apoio danado em um desses dias aí que eu passei, enfim, por umas dificuldades. Aí teve uma coisa que ela me disse: "A felicidade não é deste mundo". É da Bíblia, do livro de Eclesiastes. Nem acredito nessas porras, mas essa frase aí, eu me identifiquei. Porque...
- Pera, pô. Tá vendo? Como você é radical?
- É só o que e...
- Existe felicidade, sim.
- Você é feliz, Murilo?
- Olha... o que é felicidade pra você?
- Você é feliz?
- O que é felicidade?
- Se você fosse feliz não estava assim hesitando em responder.
- Tá. Então responda.
- O quê?
- Defina felicidade.
- É brinquedo que não tem.
Estávamos sérios, e de repente explodimos em risada.
- Você. É. Louco! Não dá pra conversar contigo.
- Dá, sim. Agora, você: defina felicidade, Murilo Feliz.
- Ah, cara... é que você é muito exigente, tirado a profundo... igual ao Edu, querendo discutir as coisas no âmago da questão. Eu acho que, na medida do possível, eu sou feliz, sim.
- Bom, então – suspirei – estamos falando da mesma coisa. A gente faz o que dá.
- Talvez.
- Por isso mesmo que eu te digo: não perde tempo, Murilo. Corre atrás. Se é da Aline que você tá afim agora, vai lá a luta. Fica com ela. Tira os entraves. Vai ser "feliz", pô!
- Você e esse seu discurso de se jogar, né?
- Já conversamos sobre isso.
- Rss. É. Sobre o tal do Amor com A maiúsculo.
- Sim! Lembrou!
- Claro! Aquele dia a gente conversou pra caralho! E você já me cobrando isso de "se jogar".
- Claro. É por isso que eu te digo. Pode até parecer contraditório o meu discurso de que não existe felicidade e ao mesmo tempo dizer que a gente tem que correr atrás de melhorar, mas, eu acho que é por isso mesmo que a gente tem que fazer o máximo possível pra ser... menos infeliz... sei lá.
- Contraditório é.
- Pode ser. Talvez eu esteja influenciado por esse período meio ruim que eu tô passando.
Ele me observava novamente enquanto eu acendia um cigarro.
- Que foi?
- E você?
- Eu o quê?
- Sei lá... Acho estranho o fato de você nunca estar com alguém.
- Isso não quer dizer que...
- O que eu acho é que esse seu discurso de se jogar – ele me fitava agora, incisivo – de repente só serve pros outros. Quando chega a sua hora você não faz isso.
Me recostei na cadeira e traguei. Ele continuou:
- Então, Gustavo, o que eu acho é que você só diz isso da boca pra fora. Mas você mesmo não faz. Quando chega a sua hora de "se jogar", você prefere... enfim.
- Você não me conhece, Murilo.
- Pode ser. Só tô te falando pelo que eu conheço de você. Acho que você não tem é coragem, talvez. Ou por acaso você nunca se apaixonou?
Mais uma vez o Murilo estava me jogando na cara coisas que mexiam comigo. Ele podia ter razão, talvez. Claro que eu era medroso. Talvez não... medroso, mas, cauteloso. Não sei. O fato é que depois de tudo o que houve entre a gente – o que não houve, quero dizer – e todas aquelas mágoas, naquele momento eu não queria dar o braço a torcer pra ele. De jeito algum.
- Já me apaixonei, sim. Infelizmente, em algumas determinantes vezes, não fui correspondido, e nem por isso deixei de amar, e de falar. Só uma vez que eu não falei, e fiquei entupido.
Ele se aproximou e me fitou.
- Então, qual o seu critério pra se jogar ou não?
- Valer a pena. Tem que valer a pena, Murilo.
Ele me fitava atento.
- Quando eu acho que eu devo, eu me lanço, sim. Mas nem todo mundo vale a pena.
Ele tirou os olhos de mim e foi abaixando a cabeça lentamente. Eu suspirei, nunca pensei que aquela saída despretensiosa fosse acabar naquela conversa tão densa.
- Vamo pedir a conta?
Tinha sido jogada a última pá de cal em cima daquela historinha ridícula.
Chegamos na casa dele e eu fui direto pro banho, estava morto de cansado. Quando voltei ele estava mexendo em um dos seus aparelhos desmontados na prancheta, só de cueca. Me aproximei e peguei em seus ombros, massageando-os.
- Vai dormir, não, maluco?
- Vou sim. Só estava esperando você sair do banho. Cê vai embora amanhã mesmo?
- Sim, sim – me larguei no colchão – já resolvi o que tinha que resolver por aqui, amanhã vou só terminar umas coisinhas e volto logo antes do almoço mesmo.
- Fica pelo menos pro almoço, pô.
- Pode ser. Vamo ver.
Nos olhamos e eu dei um sorriso amarelo. Depois nós dois voltamos a atenção pra a porta do quarto, pois eu tive uma sensação estranha, e vi que ele também, de que tinha alguém ali. De repente, num salto, o irmão dele abre, de vez. Ficou claro pela surpresa dele, quando abriu a porta e ficou estático com cara de bobo nos olhando, que esperava ver alguma coisa. Eu e o Murilo olhamos pra o cara, assim, sem entender, mas ele tava super sem graça.
- Que foi, Miguel?
- Hum. Nada não – ele colocou a mão na maçaneta novamente, nos passando um rabo de olho – é... queria ver se meu pai tivesse aqui e visse essa putaria de vocês dois aqui em casa.
Disse isso com cara de bravo e fechou a porta tão rápido quanto abriu.
Eu olhei, abismado pro Murilo, e ele me olhou de volta, e vi que ele também estava surpreso.
- Eu, hein!
- Kkkkkkkkkkkk!
- Kkkkkkkkkkkk!
Desatamos a rir, eu colocando a mão na barriga, rolando no colchão, e o Murilo com a mão na boca.
...
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