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- Se estiver doendo a senhora fala, viu?

- Não, não está.

- Quer tentar sentar novamente?

- Hum. Quero, sim.

- Então vamos. Assim... isso. Pera, vó. Devagar!

Todos os dias, pela manhã, antes de sair, eu passava os remédios de uso tópico nas costas da minha avó e instalava o colete. Era uma armadura de metal envolta por espuma e forrada com napa que ia do pescoço até a lombar, fechando tórax e costas através de oito cintos laterais. Só de colocar me dava agonia, não sei como ela aguentava ficar o tempo todo com aquilo. A ideia era que ficasse apertado, para que a coluna pudesse ficar apoiada.

- Vamos sentar de novo? A senhora é muito teimosa. Eu soube que ontem ficou a tarde toda sentada assistindo tevê, não pode!

- E quem aguenta ficar deitada o dia todo? Fica aí você, pra ver se consegue...

- Largue de ser rabugenta. O médico disse que a sua recuperação está ótima, daqui a duas semanas já pode ir pra a cadeira de rodas definitivamente, não só uma hora ou outra... quem sabe? Depende agora do seu comportamento. Levante o braço pra eu passar a fivela. Isso.

- Esse colete é uma desgraça. Uma desgraça.

- Pare de xingar, minha mãe! Ave Maria! A coisa já tá boa aqui!

Era a minha mãe que gritava da cozinha. A minha avó estava insuportável aqueles dias, reclamando de tudo, desde as dores até a sopa sem sal. Aí falávamos com ela pra ter paciência, e ela ficava horas calada, de cara fechada, macambúzia. Eu tentava consolá-la como podia, até porque compreendia de certa forma a sua situação; para uma pessoa ativa como ela, o repouso absoluto era praticamente uma pena de morte.

- Ah, e o seu médico falou que se continuar assim, daqui a duas semanas a senhora nem precisará usar mais o colete! Êta coisa boa, hein?

- Ah, aí sim. Jogo essa miséria fora!

- Engraçado é o médico dizer que a senhora ia usar isso três meses. Com um mês e meio, joga fora. Dividi em três vezes essa merda! Hahaha.

- Quanta despesa você tá tendo com essa velha, hein, meu filho?

- Ah, vó. Relaxa.

- Já não basta a Drica. Você conseguiu a psicóloga?

- Falei por telefone ontem de noite. Relatei que as aulas da Drica começaram, e que eu tava com receio porque ela tava calada novamente, ela disse que era pra eu levá-la amanhã lá no consultório. Vamo ver.

- Gente, eu não sei o que essa menina tem. A minha neta sempre foi tão centrada... Era calada, tudo bem. Mas estudiosa, nunca deu trabalho...

- Levanta o outro braço, vó. Isso. Mas ela vai melhorar. Isso de ter largado o tratamento não foi uma boa ideia, não. Se o CAPS não tinha condições, éramos pra ter todo mundo juntado o dinheiro e visto logo um particular. Não estamos tendo que fazer isso agora?

- É. Mas a despesa é muito grande. Já tem a sua mãe aí, que uma hora tá boa, outra não. É um inferno.

- Pshh! Pronto, acabou. A senhora quer ficar um pouquinho na varanda, olhando a vida dos outro? Se quiser eu deixo lá enquanto eu tomo banho. Agora temos varanda coberta!

A casa que tínhamos alugado era, de fato, muito boa. Tinha garagem e varanda coberta, uma sala de estar, sala de TV, três quartos e dependência para a empregada invisível. Muito bem ventilada e iluminada. Tinha uma área aberta, mas coberta, no quintal, onde colocamos a mesa de jantar, então todo dia jantávamos fora. Finalmente eu tinha um quarto só meu, e minha avó um só dela. A minha mãe e a Drica ficaram no terceiro quarto, que era uma suíte. Achei, no final das contas (e quantas contas) que iria valer a pena o esforço.

Estacionei a cadeira de rodas da minha avó na varanda e prendi o seu cabelo num rabo de cavalo.

- Vou tomar um banho enquanto a senhora se distrai aí fora. Qualquer coisa, olha só, o sininho tá aqui.

- Vá, meu filho – ela contemplou a frente, ainda séria – essa varanda é boa.

- Boa mesmo – sentei no chão ao seu lado – quando a senhora melhorar, a Drica também, enfim... essa fase passar, pensei em a gente fazer uma bagunça aqui, chamar a Mi, um povo, alugar umas mesas... fazer uma inauguração, que a senhora acha?

- Só pensa em beber. Vá trabalhar, que já está tarde!

- Hahaha, vou!

Minha avó odeia bagunça em casa. Falei só pra irritá-la mesmo.



O mês de janeiro passou e eu nem vi.

A minha irmã, desde que havíamos decidido largar os remédios, vinha apresentando melhora sensível; conseguia realizar os afazeres normalmente, ajudava com a minha avó, com humor estável e sempre em alta. Mas fevereiro chegou e as aulas da faculdade retomaram, e aos poucos a Adriana foi murchando. Com o passar dos dias ela nos confessou que estava tendo novamente a sensação de estar sendo perseguida, por um carro preto, onde quer que fosse, inclusive e principalmente quando ia à faculdade. Comecei a me preocupar novamente. Consegui uma indicação de uma psicóloga e a levei até lá, onde tiveram uma longa conversa. A mesma, ao final da sessão, pediu que voltássemos ao CAPS e foi categórica ao afirmar que a Drica necessitava de um tratamento mais intenso.



O Dan tinha feito eu prometê-lo que no Carnaval iríamos pro Conde, aquela cidadezinha litorânea na qual passamos o feriado na casa do Murilo. Dessa vez ficaríamos na casa da família do Edu, o Murilo também estaria lá na casa vizinha com a noiva-pé-no-saco... Nem tava muito afim de ir quando eu combinei, mas, no sábado, eles me ligaram, o Edu e o Dan, e foi me dando uma vontade. Eu estava no escritório em pleno sábado de carnaval, a rua vazia... Liguei pra a minha mãe e pedi a ela pra segurar as pontas.

- Volto amanhã mesmo, sei lá, ou segunda, no máximo...

- Tá... vai. Mas não demora. A Drica, cê sabe, não tá legal. Hoje ela me disse que está vendo de novo o carro perseguindo ela.

- É, eu sei, a doutora me falou ontem. Vou lá no CAPS assim que passar o carnaval pra conversar com o médico, mãe, e pedi à Drica pra voltar a tomar os remédios, até que pelo menos eu consiga contato. Fica tranquila.

Tranquilo eu mesmo não estava, quando peguei o volante em direção ao litoral. Minha cabeça tava pesada, pois aquele cotidiano estava me matando. Eu estava me consumindo em preocupação com a Drica, a recuperação da minha avó, as contas pra pagar, os trabalhos pra entregar. Por conta disso mesmo eu resolvi ir, me dar esse alívio, até porque o Dan tinha me prometido que a gente ia se divertir.

Fui direto pra a casa do Edu, ele estava, claro, bêbado, junto com o Daniel, eufóricos. Fui recepcionado com uma lata de cerveja, e conversamos e demos risada. O Dan de vez em quando me chamava de sacana, e dizia "queria ver só se você não vinha, cara, tava falado aqui com o Edu, você ia ver o seu". Arte de bêbado.

Fomos pra a praia. Os três, andando preguiçosamente, falando de todos os tipos de assunto. Sentamos numa mesa vazia de uma das barracas, e logo o Edu avistou o Murilo adiante, com a digníssima noiva.

- Ih, Daniel, ó lá. Murilo.

- Pô, velho, é foda...- o Daniel praguejou.

- Que foi, gente? Que é que tem? – não entendi a chateação do Dan.

O Murilo se aproximou e nos cumprimentamos.

- Pô, galera, vamo sentar ali na outra mesa com a gente...

O Dan e o Edu se olharam e levantaram reticentes. Sentamos com eles. Dei dois beijinhos, falsos como notas de três reais, na face da Priscila e ela retribuiu com igual dissimulação.

- Olha, quem está por aqui! Gustavo! Como está, querido?

- Óoootimo, querida... e você, tá boa?

- Melhor não poderia! Feriadão, praia, tudo de bom, né?

- Ah, com certeza...

- Eita, esses três juntos, hein? – ela nos contemplou, com aquele olhar avaliador – não pode dar em boa coisa...

- Sempre dá em boa coisa, Priscila, nunca foi diferente... – o Edu retorquiu.

- Sei, sei... rss. Daqui a pouco o Murilo se junta e aí pronto, tô lenhada!

- Perceba que estávamos lá na outra mesa... ele que foi nos chamar... – o Daniel lembrou.

- Haha, tô brincando... os amigos dele são meus amigos também.

- Hum, que bom...

Conversamos algumas amenidades, até que me levantei.

- Gente, o papo tá bom, mas eu vou andar um pouco, tá?

Os meninos levantaram logo em seguida.

- Vamo sim! Adoro andar pela praia também!

- Ô! Demais!

Deixamos os dois lá.



- Quer dizer que tu ia largar a gente lá, é, Gu? – Daniel estava me batendo.

- Rssss, aaah... eu não percorri duzentos quilômetros pra ficar gastando a minha tarde de sol olhando pra aquela cara de cu da Priscila, né, por favor! Aqui tá bem melhor, não? Só nós três!

- Com certeza, brow!

Agarrei os dois, um em cada braço, e rimos, lembrando da Priscila e do Murilo.

- Cê reparou como ele fica agoniado? Haha, caaara... doido pra dar um perdido nela e ficar aqui!

- É, mas... é a noiva dele, ele tem que dar atenção, né, Edu? Ele que se foda, kkk! – o Daniel riu.

- Gente, mas... Dan? – eu perguntei – porque você tá assim com o Murilo? Vocês dois são tão coligados...

- Ah, deixa ele lá. Nunca fui muito com a cara da Priscila... e também a gente tá meio assim, depois de umas histórias aí.

Franzi o cenho. O Edu explicou:

- Eles discutiram, o Murilo foi meio cavalo com o Dan.

- Ah, poxa... que chato...

- É, pô. Eu achava que era amigo dele, né, a ponto de poder dar uns conselhos, mas ele vem com quatro pedras na mão...

- É sobre o caso dele com a estagiária ainda?

Eu já tinha conversado sobre isso com o Edu pelo msn, então já sabia de algumas coisas. O Dan era contra essa história, inclusive porque conhecia a fama da vira-lata. O Edu também não curtia muito o caso, mas, o Murilo sempre achava que todos eram contra ele.

- Gu, essa menina que o Murilo tá pegando aí... Véi, eu conheço uns caras que conhecem ela... A menina é piriguete de carteirinha, puta, puta, puta... O cara tá todo empolgado aí, se achando, porque tá pegando, e que ela tá envolvida também...

- Olha, cara, eu já conversei com ele – o Edu completou – assim como o Daniel, mas eu não sou de insistir não. Ele já diz que eu implico com ele, então, pronto. Deixo lá. Às vezes o melhor jeito é deixar o cara se foder mesmo... aí eu vou lá e digo: "não falei? Eu avisei." Adoro fazer isso, inclusive, hahaha.

- Miserável! Kkk! Mas é isso, Gu: o Murilo não quer ouvir ninguém. Bicho, tem dois meninos lá da república que conhecem ela, cara... me contaram umas histórias, sabe? Ela é piriguete, pô, descarada toda. Primeiro que é casada. Quando ele me disse quem era, pff.. Liguei logo pros meninos pra tirar a dúvida, não deu outra: ela dá um corno seguro no marido, é da banda voou mesmo.

- Sim, mas... – eu estava tentando ser apenas o amigo, o colega, nem de longe interessado na matéria em questão – porque pra ele seria tão ruim isso? Desde que eu conheço o Murilo que sei dessas histórias dele, de pegar as piri, de comer mulher casada...

- É, mas é que dessa vez ele tá bem envolvido.

- Envolvido, como, Edu? Ah, sim, cê me falou, que ele disse que tava até achando que tava apaixonado, e tudo...

- Isso. Ele tá empolgado.

- Me liga direto, Gu dizendo que tal dia eles foram pra tal lugar, e foi massa, e que isso e aquilo... Pô, velho, me senti na obrigação de falar com ele que...

- Mas, pera: o receio de vocês é que ele, o que?

- Cara, ele tá querendo terminar com a Priscila. E ele disse que ela quer terminar com o marido.

Meu queixo caiu, meu olho arregalou.

- Fecha a boca. É isso, sacou? Tá doido. Disse que tá gostando mesmo, e ela também, e...

- E o marido nessa história toda? Anda por onde?

- Tá viajando. Muuuuu....

- Huuum... Kkkk! Tadinho. Tá, então, cada um vai se separar do seu cônjuge e vão assumir o relacionamento, é isso?

- É.

- Ele me falou a mesma coisa, na última longa conversa que a gente teve, e eu disse o que eu achava. Mas, ressaltei: você deve saber o que está fazendo, então. Você é adulto. – o Edu cerrou os lábios – só isso. Ponto.

- É...

- Pô, velho – o Edu completou – já tínhamos tido diversas discussões anteriormente, eu dizendo a ele pra ir com calma, "vai curtindo, pô, não tá ai comendo a mulher direto, qual o problema?" Mas ele insiste, eu não vou ficar me desgastando com quem não quer na verdade ouvir conselho. Já tinha discutido com o Daniel, então...

- Só porque eu falei que a paixão dele não era flor que se cheire. Caara, ele se estressou. Tomou as dores dela, disse que o povo fala demais, que ela não era nada disso que ele pensava, que eu gostava muito de julgar os outros, e que eu não tinha nada a ver com a vida dele.

- Nossa!

- Disse: então, tá. Pra que que você me ligou mesmo? Ele disse: "porque eu pensei que você fosse meu amigo, que ia me apoiar" falei: "apoio, sim, quando eu acredito. Né porque é meu amigo que eu vou ficar dizendo amém pra tudo. É só a minha opinião". Desde então a gente tá meio assim.

- É, Dan, o Murilo sempre foi cabeça dura.

- Não é que eu morra de amores pela Priscila não, cara, nem acho que esse relacionamento dele seja bom, nem nada. Mas de qualquer forma, é uma história que o cara tem, seis anos já, vai abandonar isso por uma pessoa que acabou de conhecer, e com essas histórias ainda, sei lá. Só quis mostrar pra ele que de repente poderia não valer a pena. Mas...

- É. Enfim...

O Daniel me examinava.

- Vocês não conversam sobre isso, não, Gu?

- Eu e ele? Não. Na verdade, a gente nem conversa. Eu perdi muito o contato com o Murilo desde... enfim, desde dezembro, eu tô com aqueles problemas que vocês já sabem, então eu não tenho o mesmo contato que mantenho com você e o Edu, por exemplo. A gente aqui sempre se fala por telefone, msn... com ele não. E o Murilo nunca foi de se abrir pra mim sobre os casos dele, nem sei porque.

- É, Dan, mas... deixa isso pra lá – o Edu aconselhou – o Murilo sempre foi assim, meninão, cabeça dura. Sempre que alguém vai criticar alguma coisa dele, mesmo que seja de forma construtiva, ele tende a achar que a pessoa tá implicando com ele, ou que tá torcendo contra... o cara tem essa personalidade. O Gustavo mesmo lembra das brigas da gente, porque eu falava qualquer coisa, ou porque discordava dele somente. Então...

- O que você acha, Gu? Que eu tava errado em contar pra ele?

Suspirei e fiquei em silêncio um tempo. Era muita informação.

- Olha, gente... eu até já comentei isso com o Edu, mas da última vez em que eu fui à Camaçari, de fato percebi que ele estava diferente mesmo. Envolvido, diria até... apaixonado – ai, que ruim admitir isso – bom, enfim, eu sempre gosto de ser um pouco advogado do diabo, porque...

- ...é a expressão apropriada, nesse caso... – o Dan colocou e rimos.

- ...rss, é, pode ser. Rss. Mas é que... sei lá... O que eu vi foi que ele realmente está envolvido, e eu nunca o vi desse jeito, por ninguém, ou até, por exemplo, pela Priscila. Será que de repente não seria de fato o caso de considerarmos que ele realmente encontrou a tal pessoa da vida dele? Ou pelo menos, alguém que o faça ter coragem de sair de certas inércias? – os meninos me olhavam, apenas – eu sei, eu sei, eu posso estar sendo romântico, mas...

- Não, não se trata de romantismo – o Edu falou – eu falei isso com o Dan no dia que ele me contou dessa discussão: quem somos nós pra dizer o que tá certo e o que tá errado? Não sei...

- Imaginem se fossem vocês, que se apaixonassem por alguém, e que essa pessoa não seja, assim, um anjo de candura ou alguém de reputação ilibada, mas que seja essa a que você quer?

- Hum...

- Só tô querendo dizer que: vocês se importariam mesmo com o resto? Ou arriscariam? Sei lá... de repente a vira-lata se apaixonou mesmo, a relação com o marido já estava por um fio, ou acabada, e se encontraram... Tudo é possível.

- Bom, nesse caso, ele teria razão, você acha.

- Não. Talvez. Ele não tem razão em ser grosso contigo, de maneira alguma. Acho que somos amigos e poderíamos, sim, dizer tudo ao outro. Ele poderia responder: "Dan, te agradeço pela atenção, mas, mesmo com todos esses fatores, eu quero arriscar, porque eu tô sentindo isso, e isso, e isso."

- É, velho, não sei. Olhando por esse ângulo...

- Só quis tentar entender, aquele ser...

- Rss... é... – o Dan se virou pro Edu – o Gustavo sempre querendo defender o Murilo, né, Edu?

- Não tem jeito, é o queridinho dele.

Dei na cabeça dos dois.

- Ah, idiotas! Falei tão bonito aqui! Enriqueci a discussão! Pra ouvir isso? Hahaha!

- É isso mesmo!

- Vixe, ó quem vem ali! Kkkk! Vamo mudar de assunto, porque o assunto chegou! kkkk!

O Murilo se aproximava, sozinho.

- Pô, velho, vocês andaram, hein? Pararam aqui porque?

- Pra contemplar a paisagem... – falei – e falar da vida alheia, que, como diz a Sol, emagrece!

- Kkk! Tá!

- Cadê a Priscila, aquela fofa?

- Ah, deixei em casa, ela queria descansar. E eu falei com ela que queria ficar com vocês um pouco.

- Hum...

Tinha mesmo um certo distanciamento entre o Murilo e o Dan, mas logo, logo se dissipou, quando a gente começou a conversar besteira e dar risada. Daniel quis tirar umas fotos, aí eu fiquei batendo enquanto eles faziam poses engraçadas, depois sérios, depois reflexivos, de perfil, ou imitando algum filme. Voltamos pra casa já tava tudo escuro.

À noite teve show na praça, uma banda nova chamada CochaBamba, rimos muito. O Daniel inventava uns passinhos, era a sensação. O clima tava tão bom que até dancei com a Priscila, não sem ouvir as piadinhas do Edu me abusando logo depois, lógico.

- Agora estão amiguinhos, né? Depois de brigarem tanto pelo cara...

- Hahah, vai se foder!

- Ó, tava pensando aqui, que coisa é a vida: vocês duas brigaram tanto, quase se pegam, aí vem uma terceira e pá! Leva o cara pra ela! Ó só!

- Vai se fodeeeeer! Kkk! Ridículo! Dan, bate aqui no Edu!



Os meninos até insistiram, e estava muito bom, mas eu quis voltar logo no domingo depois do almoço. Aquela proximidade com o Murilo e suas histórias não me deixavam legal, então optei mais uma vez pela distância. Nem fui na casa dele, pedi aos meninos pra lhe mandar um abraço e pronto.

Enquanto eu dirigia pela estrada de volta, tentava também digerir tudo aquilo.

A brincadeira do Edu foi boa, mas me doeu um pouco, por ser a expressão da verdade. Eu a Priscila, mesmo que inconscientemente, sempre nos vimos como rivais, mas a realidade é que nenhum dos dois havia tocado suficientemente o Murilo a ponto de fazê-lo tomar uma atitude, como agora estava acontecendo. A Priscila até então era a minha rival de estimação; enquanto estávamos eu e ela somente, era fácil, porque ela não era páreo para mim – ele mesmo me falou isso (de uma outra maneira menos pretensiosa), quando disse que sempre a deixava em segundo plano por minha causa. Confesso que fiquei até com pena dela, observando-a no dia anterior, com ele. Ela fazia de tudo para agradá-lo, para estar ao lado dele, ao longo daqueles anos todos. Pois, dentro de alguns dias, ele terminaria com ela.

Com a Aline, não. Era diferente. A partir dali, eu e ele de fato ficamos distantes, e não só física ou geograficamente; era uma distância emocional, nos desligamos um do outro. Nem mais brigávamos! Aquelas discussõezinhas bobas que terminavam em carinhos e abraços fraternos, talvez consequência de nossa confusão, não eram mais necessárias. Enfim, o fim. Sem começo.

Ultrapassei um caminhão em alta velocidade na faixa contínua sem perceber que havia uma viatura da Polícia Rodoviária Federal estacionada. Os policias soaram a sirene e eu terminei a manobra até parar no acostamento.

Fui um pouco lento para perceber o porquê deles demorarem tanto no auto de infração, puxando conversa e me perguntando "como eu queria fazer". Me limitei a responder que de fato estava errado, me desculpe, mas eu estava apenas esperando eles terminarem, me devolverem os documentos, para eu prosseguir o meu caminho. Só percebi que eles queriam propina mesmo quando um deles se irritou e me disse em voz alta que iria me aplicar uma outra multa, também gravíssima, por tentativa de fuga do local e não atendimento à autoridade de trânsito, ou algo assim. Fiquei chocado, mas nem assim me dobrei. "Bom, se na sua avaliação foi isso o que ocorreu, por favor, prossiga no seu trabalho, me aplique as multas e me deixe terminar a minha viagem."

Saí com catorze pontos na carteira e com (mais uma) dívida de quatrocentos reais, por duas multas gravíssimas, mas um pouco feliz por não ter me dobrado àquela extorsão mesquinha.

Não sei se esse episódio, as conversas sobre o Murilo, mas, o fim de semana que tinha sido bom terminou para mim com um gosto de melancolia.



11 de março de 2008.

Naquela tarde de terça-feira eu me encontrava na recepção apinhada do CAPS, tentando a todo custo ter pelo menos cinco minutos de conversa com o psiquiatra que atendera à minha irmã em dezembro. A confusão instalada naquele ambiente se somava à minha própria, e à minha tensão em me deparar com uma situação tão nova quanto terrível para mim: a minha irmã estava transtornada e eu não sabia o que fazer.

Expliquei à atendente que o caso era urgente, e não se tratava de uma consulta, que eu precisava apenas falar com o médico, já que a Drica estava na faculdade. Duas horas de espera depois, consegui entrar na sala dele, acompanhado da psicoterapeuta. Nos sentamos e eu comecei a falar.

- Eu conversei por telefone com alguém daqui na semana passada, que me aconselhou a vir hoje, porque o médico estaria atendendo...

- Foi comigo que você falou – a profissional se virou para o médico - Doutor, eu não sei se o senhor se lembra da menina que veio aqui em dezembro, aqui a ficha dela. Ficamos de reavaliar e acompanhar o caso, mas o senhor lembra que o mês de janeiro aqui foi complicado.

- É... – eu interrompi – tentamos por três vezes vir aqui, mas...

- Não deu para priorizarmos o atendimento à sua irmã. Acontece que tivemos a saída de alguns profissionais daqui, e além disso, além de muitas ocorrências no hospital colônia, então tivemos que realmente nos desdobrar.

O médico apenas lia a ficha, sem nada dizer. Depois de um tempo, ele me perguntou:

- Filho, depois disso, vocês não voltaram mais aqui?

- Então... depois que viemos aqui em dezembro, e o senhor passou aqueles remédios junto com a terapia, iniciamos o tratamento. Ela tomava direitinho a medicação e de fato foi melhorando sensivelmente, apesar de alguns efeitos colaterais desagradáveis...

- Quais foram?

- Ela dizia que sentia como se tivesse apertando a cabeça, algumas dores no pescoço também, além da sonolência excessiva. Mas tomava os remédios sem reclamar.

- Hum – ele não parava de anotar, e aquilo me deixava apreensivo – e parou porque motivo?

- Bom, é que... além de não conseguirmos as consultas aqui, ela começou a querer diminuir a medicação, por conta dos efeitos que eu já falei e também porque ela estava se sentindo bem melhor, mais confiante, mais ativa, também não tinha mais resquício do trauma daquele assalto, então... eu... decidimos ir diminuindo até parar.

- E como foi a reação dela?

- No início correu tudo bem. Até porque, eu nem citei antes, mas a minha mãe estava em crise de dor, e a minha avó sofreu um acidente que acabou fraturando a coluna, então ficamos eu e ela se dividindo nos afazeres.

- Só são vocês dois de filhos?

- Não, tem uma irmã mais velha, mas não mora mais com a gente. Ela é casada, tem duas filhas, trabalha no banco, então não pode ajudar muito, assim. Bom, em janeiro, até o início de fevereiro, ela tava ótima, conseguimos retomar a rotina normal. Ela voltou pra a faculdade e, algumas semanas depois, foi apresentando de novo aquele comportamento estranho, falando novamente em perseguição, em...

- Delírios persecutórios e ideias suicidas?

- É.

- Doutor – a psicoterapeuta interrompeu – ele me disse que a levou numa psicóloga particular, fizeram umas três sessões, então antes de entrarmos aqui eu conversei com ela por telefone, porque o Gustavo me disse que ela tinha algumas anotações. Eu fiz um apanhado e coloquei aí na ficha dela também.

- É, eu tô vendo aqui. Estou lendo. Gustavo, como ela está hoje? Qual a situação?

- Na semana passada ela piorou. Se recusou a ir à faculdade. Não foi na quinta nem na sexta. Chorou o final de semana inteiro e ficamos tentando acalmá-la, na verdade eu não sabia muito o que fazer, só queria chegar a essa terça-feira para vir aqui... No domingo à noite ela parou de falar comigo. Me disse que eu sabia de tudo o que estava acontecendo com ela e não fazia nada, falou algumas coisas sem sentido...

- Tipo...

- Tipo... que ela estava sendo alvo de uma conspiração na faculdade, que ninguém gostava dela lá, e que eles estavam tentando acabar com ela, e que eu só podia estar fazendo parte disso tudo, porque não queria ajudar...

- Não queria ajudar? Mas você não estava ao lado dela o tempo todo?

- Sim. Mas ela insistia que eu tinha que ir na faculdade junto com ela, chamar a classe toda e dizer que parassem com aquele plano de vingança contra ela, que já tínhamos descoberto tudo. Uma coisa totalmente maluca, doutor, porque eu tentava convencê-la de que ela podia estar errada, só uma impressão, mas quanto mais eu tentava amenizar, mais ela acreditava que eu só podia estar fazendo parte da... conspiração. Ai, nem acredito que estou tendo esse diálogo, tudo parece tão doido...

- Não se preocupe com isso. Quero só que você me diga o que está ocorrendo.

- Bom, nesse dia ela dormiu na sala porque disse que era perigoso dormir no lugar de sempre. Eu não consegui pregar o olho, doutor, com medo. Ela não dormia! Andava pela casa o tempo todo, olhando pelas frestas das janelas. A minha mãe na segunda-feira conseguiu convencê-la a tomar um Rivotril, para acalmá-la, e ela ficou mais serena. Mas desde então não fala mais comigo e se recusa a tomar os remédios, porque disse que "eles" querem é isso mesmo, que ela fique dopada.

- Hum. Ela se alimenta?

- Não. Desde domingo que ela não come praticamente nada.

- Ela já tentou agredir a você ou à sua mãe?

- Não, não. O máximo que ela faz é aumentar a voz quando está nervosa, e hoje pela manhã apontou o dedo pra mim, somente. Doutor, o que é isso? Ainda é o trauma do assalto? Eu tô em pânico.

O médico olhou pra a psicoterapeuta e ela balançou a cabeça afirmativamente. Ele fez mais uma pausa, e continuou:

- Ela tem que idade?

- Ela tem só vinte anos – o "só" saiu sem eu querer. Sentia que estava prestes a desabar.

- Gustavo, eu não sei se o rapaz se lembra que eu lhe alertei na época que poderia ser algo maior que um simples trauma ou... enfim.

- Lembro, sim.

- Pois bem. Tivemos essa suspeita por conta das conversas que tivemos, com a Adriana, com a mãe de vocês, relatos da gravidez e da infância da garota... Isso é comum e necessário para obtermos a visão geral.

- Sim...

- Então. No caso da sua irmã, agora, com o seu relato, o da psicóloga, não nos resta dúvida de que ela, de fato, é portadora de uma doença mental muito grave, que não é decorrente de um assalto ou de uma briga, de nada.

- O que o senhor quer dizer com isso, doutor?

- A sua irmã tem esquizofrenia.



Essa palavra, que havia ouvido tão poucas vezes ao longo da vida e sem nunca dar importância, ecoava na minha cabeça enquanto eu recebia as explicações dos profissionais naquela sala.

- Mas, doutor, isso não é possível... a minha irmã nunca teve na...

- A esquizofrenia é uma doença mental, na verdade é considerada a mais grave delas. Ela se manifesta entre os quinze e os vinte e cinco anos, geralmente, e até então é praticamente impossível para a família detectar qualquer coisa nesse sentido, porque os sintomas são confundidos como meras questões de personalidade: a criança esquizofrênica geralmente é tímida, muito observadora, retraída, tem dificuldade para fazer amizades no colégio, entre as outras crianças... Isso de fato não significa muita coisa, afinal de contas temos muitas crianças tímidas, mas, sem esse distúrbio.

- Uma gravidez complicada geralmente está associada a esses casos, Gustavo – a psicoterapeuta complementou – bem como situações de estresse na primeira infância, dentro de casa.

As brigas com o meu pai por conta do álcool. As agressões que a minha mãe sofreu ainda grávida. A tijolada que a minha mãe levou na barriga, e que culminou no parto da Drica.

Sentia o meu coração na boca. Minhas mãos teimavam em tremer.

- Existem estudos mais avançados nos Estados Unidos que relacionam a causa desta doença com a vida intrauterina, o que eu achei muito interessante, viu doutor, porque isso pode ajudar a identificar cada vez mais rápido a doença.

Levantei da cadeira. Suava e tinha dificuldade em respirar.

- Gente... a minha irmã não tem isso, não.

Eles se olharam, compadecidos.

- Olha, Gustavo, vamos iniciar o tratamento com ela o quanto antes. Traga ela aqui na quinta-feira, vamos atendê-la logo, acolhê-la aqui, vamos dar prioridade nesse assunto, você vai ver. Ela vai ficar controlada.

- Ela vai ficar boa?

- A esquizofrenia não tem cura – botei a mão na boca e ele se apressou em continuar - mas tem tratamento.

- Ela vai viver uma vida normal?

Eles se olharam novamente, aquilo me amedrontava.

- Olha, nós temos hoje muita novidade nesse campo. Algumas drogas muito potentes surgiram na última década, e, combinado com a terapia constante, geralmente a gente consegue controlar os surtos, diminuir a intensidade deles, evitar os suicídios decorrentes do...

- Ela não vai ter uma vida normal?

- Alguns conseguem trabalhar em algumas coisas, dependendo do... Olha... vamos avaliar... né? Não vamos sentenciar nada, por enquanto... vamos vendo, acompanhando.

- A faculdade, por exemplo? Ela não vai conseguir fazer? Ela não consegue se formar, ter uma profissão, ter...

A minha voz embargou e eu não consegui continuar. Tava na cara que eles não estavam querendo me dizer a verdade. Coloquei as duas mãos na cabeça e fechei os olhos, eu não podia chorar ali. A psicoterapeuta se levantou e agarrou os meus ombros.

- Meu filho, se acalme. Ela a partir de agora está em boas mãos. Nós lidamos com isso aqui todos os dias, então sabemos o quanto é difícil para um familiar aceitar que um ente seu tenha essa doença tão ruim. Mas, tenha fé.

- Doutora, eu não consigo acreditar que a minha irmã... ah, sei lá... nossa. Nossa! Não...

- Sente aqui. Onde está a sua outra irmã? Ligue para ela, compartilhe isso com a sua mãe. Vou pegar um copo d'água pra você.

Ela saiu da sala e eu tentei ligar pra a Mônica, mas ela não atendia. Liguei para a minha mãe. Ela me disse que a Drica chegou muito nervosa da faculdade, e estava bastante agitada.

- Doutor, a minha mãe me disse que ela está bastante agitada. Parece que brigou com alguns colegas da faculdade, não sei bem.

O médico pegou o seu receituário.

- Vou passar uma medicação que ela tem que começar a tomar hoje mesmo. Tudo indica que ela está iniciando um surto, e nesse caso, temos que agir rápido – ele não parava de anotar – porque, os surtos costumam ser muito devastadores, inclusive para a mente dela. Ouça bem, meu filho: faça ela tomar esta medicação, e traga-a aqui na quinta-feira para avaliarmos direito.

- Doutor, eu...

- Faça o possível para que ela não entre em surto. O esquizofrênico tem uma mente dividida, entre o que é real, e o que é imaginário, ele não consegue distinguir. O que temos que evitar é que ela perca o contato com o real, porque, dependendo da gravidade do surto, ela não consegue mais voltar. Desculpe estar lhe assustando, percebo que você está muito tenso, mas é que preciso avisar para que você saiba o que fazer.

- Eu não sei se eu consigo...

- Consegue. Isso aqui é um ansiolítico, para que a cabeça dela serene, ela descanse, relaxe. Esse outro aqui é para...

Ele foi me explicando, e eu tentando não entrar em pânico. Quando aquilo tudo começou para que eu pudesse voltar no tempo? Que horas eu iria acordar, descobrir que era um pesadelo, contar pra o pessoal lá de casa e a gente começaria a rir?

Entrei no carro ofegante. Apertei o volante com toda a força, desejando muito que tudo aquilo fosse um diagnóstico errado, ou que eu chegasse em casa e encontrasse todos na mesa, normalmente.

Eu não estava o mínimo preparado para aquilo.



A Adriana perdeu o contato com a realidade nessa mesma noite.

Assim que eu entrei em casa, ouvi as vozes dela e da minha mãe, que tentava acalmá-la. Ela viu que eu tinha chegado e irrompeu pela sala.

Tomei um susto somente pela aparência da minha irmã. Os cabelos estavam desgrenhados, a postura corporal totalmente rígida; a sua cabeça se mantinha sempre meio baixa, os olhos esquadrinhavam todo o ambiente, ela nos fitava por baixo, ameaçadoramente. Aquela não era a Drica. Tentei controlar meu pânico.

- Onde é que você estava, hein? Diz! Aposto que estava com eles. O que eles te disseram? O que é que vocês combinaram?

- Drica. Se acalma. Eu tô aqui pra te ajudar. Eu sou teu irmão. Olha pra mim.

- Se afaste. Eu descobri tudo. Tudo. Tudo. Tudo. E descobri porque eu sou esperta, vocês não vão conseguir, OUVIU? Avise pra ela que vocês não vão conseguir.

A minha mãe tentava conter o choro logo atrás. A Adriana andava de um lado pro outro da casa, olhando pelas janelas e fechando-as. A sua voz estava completamente diferente. Rouca, mais grossa, em tudo parecia de fato que era outra pessoa naquele corpo.

- Você veio com quem, hein? Me diz, Gustavo!

Ela foi até o quarto e bateu a porta. A minha mãe correu até mim, me abraçou e eu percebi que ela estava tremendo, assim como eu.

- Gustavo, a sua irmã tá com alguma coisa ruim! Ela chegou da faculdade dizendo que ia na delegacia, que queria dar uma queixa da professora do cursinho dela! Que loucura isso! Meu Deus... O que o médico disse?

- Mãe, el...

- Ah, sabia! – a Drica tinha voltado à sala e nem percebemos – você estava no médico, né? Aquele que disse que eu era louca! Ele é outro! Foi comprado? Faz parte do grupo que está querendo...

- Drica, para!! Para! Me ouve!

- Ouvir o que? As suas mentiras? Sabe porque eu quis ficar na casa da Mônica daquela vez? Porque a voz me disse que você é o informante infiltrado aqui dentro, que repassa tudo da minha vida pra eles! Eu tinha que me afastar! Onde é que estão as escutas? É pelo celular? Hein?

- Drica, minha filha, pelo amor de Deus! Vem cá!

- E você também minha mãe? Está com o Gustavo ou está comigo, hein? – agora ela gritava, descontrolada - eu não posso acreditar que até você, que é minha mãe...

A minha mãe correu e a abraçou. Ela começou a chorar, e a mãe foi a arrastando até o bicama da sala. Ela deitou a cabeça da Drica em seu colo e lhe alisou os cabelos, enquanto ela chorava desesperadamente, como um animal ferido.

- Mãe, não deixa, mãe, não deixa... me protege, por favor! Eu não aguento mais isso...

- Calma, filha, calma, pelo amor de Deus!

Me aproximei para tentar abraçá-la, mas ela me repeliu.

- Tira ele daqui, mãe! Tira ele daqui! Não deixa, ele quer me destruir! Esse monstro!

- Ele vai sair filha, calma... eu tô aqui – a minha mãe fez um sinal pra eu me afastar, e eu obedeci. Me encostei na parede contrária, me apertando, tentando conter meu tremor. Estava paralisado pelo medo, não sabia o que fazer, não sabia o que aconteceria a partir dali. As duas choravam no bicama, a minha irmã alto, convulsivamente, e minha mãe baixinho. A minha avó, presa à cadeira de rodas, chamava pelos nossos nomes no quarto, desesperada.



A Mirelle chegou lá cerca de uma hora depois. Conversou um pouco com ela, e tentou fazê-la entender que aquilo tudo não passava de um delírio, mas em vão. Só consegui me aproximar dela depois de prometer que a levaria à delegacia para que ela prestasse queixa.

A Adriana acreditava que a sua professora do cursinho estava apaixonada por ela, pois sempre se mostrava carinhosa demais, e quando viu que não era correspondida, decidiu armar um plano de vingança contra ela. Segundo esse delírio, essa professora, mesmo decorrido um ano e depois dela já ter saído de lá, havia conseguido convencer a todos da sua turma na faculdade que ela era lésbica, e a mim também, e queríamos mostrar a todo mundo isso, e fazer algo contra ela, talvez matá-la. Por isso que em todos os lugares onde ela ia era seguida por um carro preto, que era da mulher, e eu ajudava dizendo sempre onde a Drica se encontrava. Segundo a Drica, eu sempre ria de satisfação quando saíamos e o carro a seguia, mostrando que de fato eu fazia parte do "plano". Todos mancomunados, eu, a professora, e os professores e alunos da faculdade.

Naquela tarde, enquanto eu conversava com os médicos no CAPS, a Drica havia armado uma confusão em plena sala de aula, pois, segundo ela, todos na sala a olhavam e riam. Soubemos que isso tinha acontecido porque uma colega dela ligou e nos contou tudo. A Drica chorava e gritava coisas sem sentido com os colegas, alguns tentavam ajudar e outros riam, escarnecendo dela. A aula tinha sido cancelada, e a turma ficou tão agitada que o colegiado tinha sido acionado.

Foram quase três horas de conversa tentando convencer a minha irmã que aquilo não fazia sentido, mas, em vão. Por volta de quatro da manhã a minha mãe convenceu-a a tomar um Rivotril, foi quando ela conseguiu adormecer.



12 de março de 2008.

A Adriana acordou por volta de onze horas. Eu estava na cozinha, ela veio até mim.

- Gustavo, é melhor você confessar tudo. Confesse.

Tudo começaria de novo. Meus nervos estavam à flor da pele.

- Drica, pelo amor de Deus...

- Confesse, Gustavo! Eu não aguento mais isso!

- Para com isso, Drica! Para!

Abracei-a e ela começou a chorar convulsivamente no meu ombro. Eu repetia que era seu irmão e a adorava, que nunca ia lhe fazer mal algum.

- Eu não aguento mais. Eu vou acabar com a minha vida, eu vou me matar! Eu quero morrer pra parar de pensar! Minha cabeça não para de... as vozes...

- Drica, deixa eu te ajudar! Olha pra você, está só o pele e osso, para de se destruir! Olha, eu consegui um médico pra hoje ainda, deixa eu te levar lá...

Ela se afastou, andando pra trás.

- Eu não vou permitir que você consiga isso, Gustavo! – era assustador o modo como ela me olhava, e como os olhos percorriam nervosamente o ambiente – Isso o que vocês querem! Os remédios pra me controlarem!

- Drica, vem cá.

- Não! Não!

Ela correu e eu fui atrás. Gritei pela minha mãe, que estava com a minha avó no quarto, para me ajudar, mas em vão. A Drica havia se trancado no quarto.

- O que foi, Gustavo?

- A Drica acordou já agitada e agora tá aqui trancada! Drica! Adriana! – Batia na porta repetidamente – Abre aqui! Mãe, ela disse que quer se matar!

A minha mãe se desesperou e me empurrou pro lado, e começou a forçar a porta. A Drica nada respondia. A minha mãe alternava entre palavras de ordem, de carinho, de convencimento, mas nada adiantava.

Eu senti que começava a passar mal. Minhas pernas fraquejaram, eu fui ao meu quarto e deitei na cama. Senti tudo rodar. Ouvi a minha mãe ligando pra a Mônica e entendi que ela estava a caminho.

Não sei o tempo exato em que fiquei deitado, mas estranhei o fato de não conseguir me levantar. Minhas pernas não se mexiam, e nem sentia as mesmas ao tocá-las. O tremor já era constante e minha voz também não saiu quando eu tentei gritar a minha mãe.

Uma vez só a Drica gritou para a deixarmos em paz, depois disso só o silêncio.

Lembrei que os remédios estavam todos guardados no quarto dela. Eu sabia o que tinha que ser feito, mas não conseguia agir. Fiquei paralisado.

Até que ouvi a minha irmã mais velha entrar em casa, conversar com a minha mãe e esmurrar a porta do quarto, gritando palavras mais severas com a Adriana.

- Adriana, é melhor você abrir essa porta, ouviu? Abra agora! Responda agora!

A Mônica correu até o meu quarto.

- Gustavo, vem cá! O que tá acontecendo contigo?

- Não sei, eu...

- Vem! Pelo amor de Deus, não é hora!

Ela me ajudou a levantar e eu finalmente me recompus. A minha mãe deu a volta pela casa pra tentar forçar a janela, eu e a Mônica tentando fazer com que ela respondesse algo.

- Eu vou ter que arrombar. Sai daí, Mônica. Se afasta, vó.

- Cuidado, meu filho! – a minha avó estava na cadeira de rodas, desesperada, chorando.

Andei pra trás e chutei a porta. Bati com o ombro mais duas vezes até que algumas partes da fechadura voassem. Mais um empurrão e a porta arregaçou.

A Mônica e a minha mãe correram pra dentro, a minha avó foi puxando a cadeira pra entrar, e eu me afastei, com medo, me encostando na parede, massageando o meu ombro.

Não queria ver o que estava lá dentro.



A Adriana estava rígida, com as mãos cruzadas e os olhos pro alto. Balbuciava coisas sem sentido e sem parar. Tentaram de todo jeito chamá-la atenção, mas ela só respondeu quando a minha avó chegou perto e tocou a sua mão.

- Vó, eu não quero morrer, vó... me ajuda, vó...

- Minha filha, a gente tá aqui pra isso. Olha pra mim. A sua vó só quer o seu bem. Reaja. A Mônica tá aqui, ela te leva no médico, se você não quiser ir com o Gustavo. Mas, vá...

- Não... não... – ela soluçava novamente.

A Mônica tinha conseguido uma consulta com uma psiquiatra particular, pois o do CAPS só estaria disponível no dia seguinte. Mas a Drica se recusava a atender-nos.

- Não vai ter jeito, Gustavo. Vamos ter que levar à força. Bora logo.

Aquele suplício não ia terminar. Pegamos a nossa irmã caçula pelos braços e ela começou a se debater. Gritava com uma voz que me arrepiava, me olhava com ódio extremo.

- Me soltaaaa! Me soltaa! Vocês não têm o direito! Me soltaa! Paraaa, Mônica!! Paara! Mãe! Me ajudaaa! Me ajuda! Alguém me ajuda! Socorro!!

Tivemos que nos juntar, eu, a minha mãe e a Mônica, e arrastá-la, aos berros, pela casa, até fazê-la entrar no meu carro. Os vizinhos já se ajuntavam para ver o que ocorria. Ela tentava se soltar, cravava as unhas no meu pescoço e rosto, foi um custo para colocá-la sentada no banco de trás. Eu entrei no carro e a Mônica e a minha mãe atrás, segurando-a. Ela aquietou quando a Mônica ameaçou que iria lhe dar uma surra.

O trajeto mais longo que eu já percorri foi esse, de casa até o consultório. Cada sinal vermelho, cruzamento, era esperado que ela tentasse sair do carro. Mas ela foi calada. E assim ficou, na recepção, enquanto aguardávamos atendimento.

Observei-a. Ela estava inerte, olhos rígidos em um ponto invisível do espaço. Ela estava com o mesmo vestido do dia anterior, os cabelos desarrumados e olheiras profundas. Estava também com um odor desagradável. A minha vontade era de cuidá-la, convencê-la com palavras de carinho, alimentá-la, ajudá-la a tomar um banho e colocar nela um vestido bem bonito. Só que ela tinha erguido uma muralha ao redor de si.

Assim que entramos todos no consultório e a médica conseguiu convencê-la a falar, ela repetiu a história da mulher que a perseguia.

A psiquiatra deu um sonoro murro na mesa que fez a Drica olhar pra ela, e gritou:

- Pois eu vou dar um jeito nessa mulher ordinária que está lhe perseguindo! – eu me assustei, a médica tinha uma cara de mais louca que qualquer paciente daquela recepção – tá vendo aqui esse quadro na parede atrás de mim, senhorita Adriana? Tá vendo? Estou lhe perguntando.

- Tô.

- Esse é meu marido. Ele é policial militar, coronel! Você vai me dar as informações e hoje mesmo eu passo pra ele, e aí você se prepare, porque ela vai pagar!

O primeiro pensamento que me ocorreu foi "tô fodido. Arranjei uma mais louca que a outra." A Adriana se empolgou e foi contando pra a médica onde ela poderia encontrar a tal mulher, onde era o cursinho, informações a serem repassada à polícia.

- Agora, é o seguinte, Adriana – a médica terminou de anotar algumas coisas – ele ai levar uns dias até que a investigação prossiga, você sabe como são as coisas, não sabe? Então. Enquanto isso, eu vou te passar alguns remédios, pra que você melhore um pouco...

A Drica primeiramente aceitou, depois levantou e me apontou o dedo.

- Ah, agora eu estou entendendo! Você contratou essa daí também, né? Quer me enrolar! Não vou tomar remédio nenhum!



Uma hora depois ainda estávamos no consultório, e a psiquiatra, depois de tentar convencê-la de todas as maneiras, nos chamou de lado.

- Olha, não adianta. Ela está em surto severo. Não ouve mais ninguém e não vai adiantar nenhuma conversa. O que vocês têm que fazer é: tomem aqui a receita, levem até a primeira farmácia e faça o cara dar essa injeção aqui. O nome é Haldol Decanoato. Pronto. Depois, ela tem que tomar esses comprimidos duas vezes por dia, não pode deixar de tomar.

- Doutora, como a gente vai conseguir...

- Depois da injeção, você vai ver. Ela vai ficar obediente, confie em mim.

- Tá. Tudo bem.

- Existem cinco tipos de esquizofrenia. Ela tem o tipo cinco, também chamada de paranoide. É assim mesmo. Teorias conspiratórias, uma viagem louca do cacete.

- Ahn?

- É. Ah, outra coisa. A injeção ela toma uma vez por semana, os comprimidos duas vezes por dia. Não estranhe se ela dormir demais, é assim mesmo. Pra sair do surto a mente precisa aquietar, que no momento está trabalhando a mil por hora, uma desgraça. E mente só descansa dormindo. Não tem jeito. Não estranhe também se ela apresentar tremores, babar de vez em quando, ou parecer que está longe, distante. É assim mesmo. É por conta dos remédios.

- Mas, doutora..

- No início é assim. Uma carga alta de medicamentos, depois a gente reduz e reavalia. Traga ela daqui a um mês pra a gente ver.

- Um mês? Como assim? A senhora não vai acompanhar..? E se no meio da noite ela... ou se acontecer alguma coisa, sei lá?

- Não vai acontecer, queridos, relaxem! Eu sei o que eu tô fazendo. Lido com esse povo há trinta anos! Agora, vão, vão! Levem ela e saiam daqui!

Estávamos tão abalados que nem reagimos, só seguimos as suas ordens.

O trajeto de volta foi igualmente tenso. Outra confusão foi armada na farmácia, para que conseguíssemos segurá-la e a enfermeira aplicar-lhe a injeção no braço. Ela gritava que odiava a gente, ou porque estávamos fazendo aquilo com ela, as pessoas formaram uma roda à nossa volta, funcionários vieram ajudar.

Algodões, embalagens de gaze, remédios começavam a cair das gôndolas. Uma cena dantesca.

Cerca de vinte segundos depois que a injeção havia sido aplicada, a Drica calou-se. A sua expressão facial mudou completamente, e o corpo relaxou.

Ficamos pasmos, olhando para ela, enquanto ela passava a mão pelos cabelos, arrumando-os, e respirava fundo, como que serenando. Era confuso para nós aquilo. Ela olhava em volta, mas não mais com os olhos injetados, mas com uma expressão calma. A minha mãe, de olhos arregalados, perguntou, hesitante:

- Vamos para casa, Drica?

- Vamos, sim.

Não foi mais preciso segurá-la enquanto a gente comprava os outros remédios, nem colocá-la no carro. Ela só nos seguia, inerte.

Em casa levei-a pela mão até o quarto, ela se sentou.

- Drica, quer um suco com bolacha?

- Quero.

- Suco de quê?

- Goiaba.

- Quer bolacha doce ou salgada?

- Bolacha recheada.

Fui à cozinha, preparei o suco e levei ao quarto. Enquanto isso, a Mônica e a minha mãe anotavam os horários dos remédios conforme a receita.

- Mãe, a médica maluca lá lembrou que ela não pode de jeito nenhum deixar de tomar os remédios. Tem dois aqui que são só pra conter o efeito colateral da injeção, viu?

- Verdade.

A Mônica levantou.

- Tenho que voltar pro banco. Qualquer coisa me liguem. Nossa, quatro da tarde! O gerente vai me matar. Nem sei que horas chego em casa hoje...

Nos despedimos e eu voltei ao quarto com a merenda. Ela estava sentada, na mesma posição que a deixei.

- Toma.

- Mecanicamente, ela tomou o suco e comeu os biscoitos. Antes de terminar, entregamos dois comprimidos a ela. Fiquei tenso de ela recusar e recomeçar o horror, mas ela obedientemente os pegou e ingeriu.

- Vamo agora tomar um banho, minha filha, pra você descansar.

Ela tomou banho, deitou e dormiu imediatamente.

Eu, a minha mãe e a minha avó suspiramos.



O meu celular tocou, era uma arquiteta amiga minha, Tereza, com quem estava desenvolvendo um projeto. Eu não havia atendido ninguém naquele dia, e havia marcado com ela por duas vezes. Conversamos e eu marquei de passar no seu escritório dentro de meia hora.

- Mãe, eu vou sair, resolver um negócio de trabalho. Qualquer coisa me liga, tá?

Nem nos meus piores pesadelos, muito menos nas minhas previsões sempre pessimistas de futuro, poderia imaginar que aquilo pudesse estar acontecendo com a minha irmã, na minha família, comigo.

A minha cabeça estava a mil, enquanto dirigia tentava colocar as ideias em ordem e me concentrar na reunião de trabalho que teria mais à frente. Mas estava muito distraído.

Só percebi que havia um motociclista que me cruzava em velocidade alta quando eu peguei uma entrada à direita.

Ele me cruzou e eu não tive reflexo pra parar. Até freei, mas não evitou a colisão violenta. A sua cabeça sem capacete se chocou no para-brisa, espalhando sangue, o seu corpo e a moto voaram, atingindo e jogando longe seis churrasqueiras que estavam em exposição na loja da esquina.



A porta do meu carro se abriu e eu fui empurrado pra fora pela multidão que estava ao redor, furiosa pelo atropelamento. Eu fiquei em choque quando vi a quantidade de sangue, não conseguia ver o homem, pois tinha juntado muita gente em volta. Foi criada uma confusão sem tamanho naquela esquina, pois alguns pessoas queriam me bater, me puxavam pela roupa, e gritavam que eu era um assassino, irresponsável e que eu merecia morrer, enquanto outros tentavam conter, e me defendiam. Eu só fazia me proteger, aterrorizado, com cara de choro, mas sem nenhuma atitude, imprensado contra o meu carro.

Só quando a polícia chegou que a multidão foi dispersada. O policial teve que ter muita paciência, pois eu estava em choque e não conseguia articular as palavras direito. Algumas pessoas, inclusive o dono da loja, esclareceram melhor o que havia acontecido. Eu pedi desculpas e disse que podia ter tido alguma distração, mas o próprio policial me defendeu.

- Você está com algum problema de raciocínio, rapaz, porque não fez nada de errado. Observe a sua seta, ainda está ligada. Você sinalizou, entrou, e a moto lhe cortou pela direita, o que é proibido.

Alguns estavam acudindo o motociclista, que estava consciente, deitado no passeio onde caíra. Achei que aquele cara estar vivo, e ainda falando, fosse inexplicável, visto o tamanho do choque. Ele começou a gritar que não teve culpa, tentou se defender, mas o policial foi impiedoso com ele.

- Cale a boca que você tá todo errado. Cruzou pela direita, sem capacete, numa moto sem freio, sem placa, sem buzina, sem condição nenhuma de uso!

- Essa moto nem é minha, doutor! Eu peguei emprestado ela pra fazer uma viagem ali! Como é que eu fico agora, quem é que vai pagar meu prejuízo?

O policial me olhou e riu.

- Pode isso? – se virou pro rapaz – se o cara ali quiser, é você que tem que pagar o prejuízo seu e dele, lá! Tá vendo o carro? Foi culpa sua, você que tem que pagar o conserto!

Colocaram o motociclista sentado e eu fui até ele. Ele não queria me olhar, mas eu o chamei.

- Ei, como é o seu nome?

- Moisés.

- Cara, cê sabe que não foi culpa minha, né? Vamo resolver isso de forma amigável. Eu não quero dar queixa nem nada.

O rapaz começou a chorar, abaixou a cabeça.

- Ei... você tá bem? Tá sentindo o que?

- Minha cara tá toda arrombada, né, véi? Ó pra aqui. Porra...

- Calma. Calma.

Ele me olhou. Era jovem, negro, franzino, bigode pintado de louro num rosto coberto de cicatrizes e marcas de uma vida de privação, que o faziam envelhecer bastante. Num instante me conectei a um sentimento de compaixão profunda por aquele rapaz, talvez por já estar sensibilizado.

- Véi, eu tava indo ver meu filho que nasceu... – cruzou os braços e chorou – pedi a moto do meu patrão na oficina pra ver o menino, ele liberou, pra eu voltar logo, mas agora ele vai me botar pra fora, véi, tô fudido, tô fudido.

- Calma, cara. Poxa.

Ele tinha ferido o rosto, o braço e uma das pernas. O ferimento do braço era o pior. Mas não parecia ter quebrado nada.

- Cê tem que ir no médico. Tem que ver o que houve.

- Que médico o que, maluco? Não tenho dez conto na mão aqui, que médico?

Alguém tentava pôr a moto pra funcionar, analisava os danos. Pedi ao policial que não formalizasse ocorrência, ele não gostou nada da ideia, mas aceitou. Uma outra pessoa se prontificou a guardar a moto até que ele voltasse, e eu o coloquei no carro e o levei até uma farmácia. Ele não quis de jeito nenhum ir ao hospital, repetiu que estava legal e que tinha sido só ferimentos de corte.

A enfermeira fez os curativos e eu paguei. Comprei ainda analgésicos, antibióticos, gaze e algodão, e o entreguei.

- Veja aí se com isso você melhora, então, Moisés. O certo seria você ir ao médico. Ele te dá um atestado, você fica em casa...

- Que atestado? Eu não sou registrado, não. O cara vai é me botar pra fora.

Olhei pra ele. Ele continuou.

- Pô, maluco... valeu, cara. Tu é legal. Por isso que Deus te dá as coisa. Tô até sem graça aí, maluco...

- Relaxa, pô.

- Ó, véi, eu não vou lhe mentir, não. Eu não tenho como te pagar esses amassado não, cara. Ainda mais agora que o cara vai me botar pra fora, e...

- O teu patrão vai te botar pra fora por causa daquela moto fodida? Que ano é aquela porra?

- Ali é uma CG, pô, acho que é de 91, 92, sei lá.

- Caralho... Porra, e cê não viu o cara olhando lá a moto não? Parece que o conserto nem vai ser caro assim.

- Sei não... se ele me quiser pra trampar lá ainda, eu vou ter que trabalhar lá só pra pagar o conserto. Não posso ficar sem trampo não.

- Quanto você recebe de salário lá?

- Duzentos e cinquenta por mês.

- Como?? Pra trabalhar a semana toda?

- E ainda dando graças a Deus, mano. Eu não tenho estudo não, cara, a única coisa que eu sei fazer da vida é consertar carro lá na oficina dele. É com essa grana que eu vou sustentar a minha família agora.

- Desculpe. Eu não quis te ofender.

Nos olhamos. A situação dele era parecida com a do meu pai, que não tinha estudo nenhum e lutava pra sobreviver. Lembrei que meu pai não sabia ainda da Drica. Pensei quantas pessoas trabalham o dia inteiro a semana toda pra ganhar duzentos reais, sem direito a férias, décimo terceiro, ou os cinco dias de licença paternidade para curtir o seu filho. Pensei se meu pai se importaria com a Drica. Achava que sim. Era a preferida dele.

Deixei o cara envolto em ataduras na porta da maternidade. Ele me agradeceu, pedimos desculpas e eu segui meu caminho.



Cheguei no escritório de Tereza perto de sete da noite.

Começamos a debater detalhes do projeto, mas a minha colega era uma pessoa bastante sensível. Já havíamos trabalhado juntos bastante antes, e eu adorava a sua pessoa. Era uma mulher extremamente educada, gentil, sempre pronta a ajudar e resplandecia uma paz muito grande. As únicas vezes que "brigávamos", de brincadeirinha, era quando ela tentava me arrastar para a igreja que ela frequentava. Ela era evangélica da Igreja Batista, e eu dizia que ela esquecesse a ideia de me converter, pois eu era do mundo.

- Gu... quer falar alguma coisa? Você tá bem?

Estávamos debruçados numa prancheta, eu olhava fixamente para o desenho sem nada ver. Não queria olhar pra ninguém. Não queria sair dali.

Calada, ela tirou a lapiseira da minha mão, me puxou pelo braço e foi me levando pelos fundos do escritório até a sua casa, que era contígua. Me colocou sentado no sofá da sua sala de estar. Pegou um copo d'água e me entregou.

Aos poucos fui contando a ela o ocorrido, ela prestava atenção e se condoía. Segurava a minha mão e falava palavras confortantes, a sua mãe inclusive participava da conversa.

- Sabe, Tê? Eu não sei mais se acredito nisso que você se agarra com tanto vigor.

- Você está se referindo à minha fé? Ao meu Deus?

- Sim. Sei lá. Não só isso. Qual o sentido disso tudo?

- Meu amor, você está abalado. Olha, tem fases na vida que realmente parece que tudo está de cabeça pra baixo. Família, profissional, finanças, amor... Mas é justamente nessas horas que a gente não pode perder a fé, não pode deixar de acreditar que Deus está conosco.

Eu só olhava pra ela. Há muito tempo que eu, criado na igreja católica, não conseguia mais acreditar em Deus. Não saía falando pra ninguém, nem mesmo chegava a duvidar da existência, mas me questionava se era aquilo mesmo. Com os últimos acontecimentos, eu de fato abandonei essa história de Deus Pai e comecei a praguejar contra essa crença. Mas, ali, naquela sala em que eu recebia conforto de duas pessoas tão adoráveis, eu não ia me alongar nesse assunto nem atacar a fé de ninguém. Apenas consenti, e ela continuou:

- Sabe quando você resolve fazer uma faxina na sua casa? Organizar as suas coisas, retirar o pó, a sujeira, jogar fora tudo o que é velho e que não serve mais... Isso é bom, não é?

- É. É bom.

- Mas, enquanto você está fazendo a faxina, como é que fica a sua casa? Tudo bagunçado, não é verdade? As coisas estão tudo fora de lugar, as gavetas espalhadas, a poeira sobe... Mas é justamente por isso, porque você está arrumando a sua casa, e depois que você terminar, aquilo vai estar um brinco, com certeza melhor do que antes. Acredite, então, Gu, que Deus está nesse momento fazendo uma faxina, jogando fora o que não serve mais pra você, arrumando suas gavetas, mas, nesse momento... está bagunçado. Entende? É necessário, por enquanto, essa fase, mas tenha certeza que Ele tem algo maravilhoso guardado para ti.

Achei a metáfora muito interessante, mas o que eu mais gostei mesmo foi de estar ali, naquele clima tranquilo, num lar de paz. Conversamos mais um pouco, até eu conseguir estar mais calmo.

- Tê, muito obrigado por tudo – nos abraçamos já na porta da sua casa, em frente ao meu carro – tenta ver com o cliente se a gente consegue postergar esse prazo, até eu me organizar.

- Não se preocupa com isso, não, Gu. Fica bem. Agora vai.

- Tá.

Quando me virei pra entrar no carro, só pra fechar esse dia, descobri que o tinha deixado aberto. Resultado: meus dois aparelhos de celular tinham sido levados. Ainda vimos com os vizinhos se tinham visto alguma coisa, mas parei, e resolvi que a minha cabeça não ia mais levar em conta aquilo. Amanhã veria outro aparelho, ou não compraria, ficaria sem celular. Estava exausto.



Cheguei em casa e a minha irmã dormia profundamente. A minha mãe contou que ela despertou, comeu mais alguma coisa, e até começou a assistir tevê, mas adormeceu novamente. Conversamos mais um pouco sobre aquilo tudo, mas a minha mãe logo se recolheu.

Tomei um banho demorado, apaguei as luzes e tranquei as portas. Antes de deitar, conferi se estava tudo bem no quarto onde dormiam a Drica e a minha mãe, e no da minha avó.

Entrei no quarto, deitei e uma sensação de pânico incontrolável me invadiu.

Lembrei de todas as lutas pelas quais já tinha passado na vida, desde a infância, as dificuldades financeiras, as relações complicadas. O quanto foi difícil me formar, às vezes saindo de casa só com o dinheiro do transporte, aguentar tudo aquilo até ali. O Murilo e o meu amor não correspondido. O que estava por vir.

Quando eu tinha catorze anos e meu pai saiu de casa, eu caí em prantos. Desde então, eu tinha uma dificuldade enorme em chorar. Passei onze anos, portanto, sem conseguir transformar minha emoção em lágrimas. Até ali.

Abafei o meu grito no travesseiro e deixei as lágrimas correrem, descontroladamente. Eu não queria que o dia nascesse, porque eu não sabia o que ele traria, e no final das contas sempre seria algo pior, porque parecia ser esse o meu destino.

O travesseiro ensopou e eu tinha dificuldade em respirar, na mesma medida da dificuldade em entender o porquê daquilo tudo estar me sacudindo sem que eu pedisse ou desse permissão. Sem que me fosse perguntado se eu aguentaria passar pela faxina de Deus.

Não me recordo em que momento adormeci.


...

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