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31 de dezembro de 2007.

Faltavam apenas quatro horas para o ano acabar e eu ainda não tinha tomado banho, feito a barba nem passado a roupa branca para usar na hora da virada.

Não fosse um ou outro parente que viesse me chamar, por mim eu ficava ali, deitado na grama, à beira da piscina, olhando preguiçosamente o céu do último dia do ano.

Estávamos todos numa casa de praia no litoral norte que havíamos alugado. Quase todo ano era a mesma coisa, a gente se juntava, arranjava um lugar, partilhávamos os custos e os problemas. Então, lá estávamos o pessoal da minha casa (a Mônica nunca ficava conosco, sempre junto com a família do marido), a Mirelle com o Maurício, Dani com o namorado, minha tia Malu, Clara e os dois filhos, meu tio também aparecia... Neste ano em especial a Rose também colou com a mãe e o psicopata do namorado – ela ainda não tinha conseguido terminar, receosa de virar um caso do Linha Direta.

Tínhamos chegado lá desde o dia 28, uma sexta. A ideia era espairecer um pouco, pois o Natal tinha sido meio down; a minha mãe de cama, a Drica ainda perturbada, a minha tia brigando com o meu tio, enfim. Eu tava querendo mesmo era que aquilo acabasse logo e a gente voltasse à rotina, às vezes nada melhor que isso.

Conferi o celular pra ver se tinha mais alguma mensagem de Feliz Ano Novo. Alguns colegas de faculdade, parentes distantes, etc. Não tinha nenhuma... por exemplo... do Murilo.

Nesses onze dias que se passaram desde a Noite Fatídica, a gente não teve qualquer contato. Eu, por resolução; ele, por ter coisa melhor pra fazer, decerto. Nos primeiros dias até nutri secretamente uma esperança de que ele se desse conta que eu estava estranho, algo distante, e viesse, aflito, perguntar o que eu tinha. Ha. Ha. Ha. O que consegui foi saber através do Edu que as vistorias com a estagiária vira-lata estavam mais frequentes do que nunca, e que ele estava muito bem, obrigado. Então, continuei a me afastar mesmo pra ver se me curava.



- Vem, gato, tira essa sunga, se arruma!

A Mirelle tinha se aproximado. De pé, ela me observava largado na grama com uma latinha na mão.

- Tô indo, Mi, só mais um pouquinho. Vou só observar as estrelas.

Ela olhou pro céu, desinteressada.

- Hum. Tá. São as mesmas de sempre. Elas não vão sair daí. Bora.

- Elas nem são as de hoje, né? Dizem que a gente olha o céu de quatro anos atrás, por causa da velocidade da luz, alguma coisa assim. Então, aquela estrela ali já pode até estar morta, e a gente aqui, olhando, sem saber, a luz que ela emitiu lá atrás.

- Tu ainda tá cheirado, é? A minha onda já passou há muito tempo.

O Maurício tinha levado um negócio que era tipo o genérico do lança perfume, um spray "anti-respingo" usado pelos serralheiros na soldagem de portões, que, segundo ele, dava onda. Nessa tarde a gente tava sem fazer nada e cheiramos o tal do produto, morrendo de medo de sair daquela experiência com os pulmões colados. Eu viajei legal, saí do corpo, a Mirelle deu crise de riso e o Maurício morgou. Clara ficou com cara de chapada, e a gente jogou o corpo dela na piscina, pra disfarçar, porque se nossas mães sequer desconfiassem, era caso de morte.

- Não, que nada. Tô só viajando mesmo.

- Quer que eu passe tua roupa?

- Não, caralho, já vou. Rapidinho.

- Ah, então vai se fuder. Não fico aí contigo porque eu já tô arrumada, não vou me deitar no mato. Tchau.



Nunca fui bom de observar constelações. Era uma confusão só. Com muita dificuldade distinguia as três-marias e o cruzeiro do sul. Me lembrei dos versos da Paula Toller:

Órion

Daqui se vê em pé

Dizem até que Artêmis o matou por amor

Mas eu não levo fé

Longe

Eu posso ser ninguém

Pois longe ser ninguém é ok

Novo chão velha constelação

Dá saudade de ouvir falar

Saudade de sentir

Saudade de te encontrar

Vai amanhecer

Aí que horas são?

Aqui faz tanto frio

Aí é verão

Vai amanhecer

Ah...eu tinha um vidão

Lua crescente

Daqui se vê um D

D de down, não leva a mal, por favor

Aqui tá zero grau

Dá preguiça de explicar

Saudade de sentir

Saudade de voltar



De novo veio aquela sensação esquisita de sentir saudade do que eu nunca tinha vivido. Além de tudo o que rondava a minha cabeça, passei a ter arroubos românticos agora, como se não bastasse. Aquele momento era um deles.

Não sei se foi essa coisa de festa de fim de ano, mas eu comecei a fantasiar se, naquele momento, não seria bom se eu estivesse abraçado com alguém. Amando. Olhando estrelas. Pensei se existe mesmo essa coisa de alma gêmea, aquela que você encontra em determinado ponto da sua vida e diz "ok, agora chega de perambular errante e sofrer, é você, cara". E a outra pessoa também sentiria isso, e tal.

Pensei em quem seria, caso existisse, essa pessoa. Eu já conhecia? Já tinha passado despercebido por mim, ou até percebido e se perdeu, ou está esperando a hora de acontecer? Será que eu ainda ia conhecê-la?

Será que ela estaria uma hora dessa olhando o mesmo céu e perguntando a mesma coisa aos astros?

Por incrível que pareça, apesar de todo o meu sentimento e toda aquela confusão, eu não conseguia imaginar o Murilo sendo essa pessoa. Ele era muito tosco pra ser um príncipe encantado, e também nem dei beijo nele pra saber se estava ainda na versão Sapo.

As paixõezinhas platônicas, não sei. O Dan? Adoraria, admiro tanto ele... Mais alguém? Não.

Teria que contar com a possibilidade de ainda não haver conhecido este ser.



2008 seria o ano mais intenso da minha vida.

Em 2008 eu conseguiria me entregar, não sem reservas, ao Amor, tendo sensações indescritíveis e inimagináveis; conhecendo o meu corpo e descobrindo o prazer sexual com outro homem; explorando cada vez mais a minha capacidade de amar, e percebendo que eu poderia ser amado intensamente.

Em 2008 a Morte bateria na porta da minha casa e levaria uma das pessoas mais queridas pra mim, me rasgando e me fazendo experimentar a temida dor da perda.

Ainda ali, descobriria mais sobre meus amigos; trabalharia até o limite e conquistaria muito além do que poderia imaginar; passaria por problemas que eu sequer ousaria imaginar; enfim, chegaria ao outro 31 de dezembro um outro Gustavo.

Mas eu não tinha como saber disso tudo ali, olhando as estrelas. Então, me limitei a fazer uns pedidos bobos, de que o próximo ano fosse bom pra todo mundo, que a Drica melhorasse, que eu esquecesse o Murilo, que a minha mãe ficasse boa e conseguisse trabalhar e que tudo o mais corresse bem.

Bom, gostei muito quando estouramos o champanhe, comemos e fomos dormir. Dali pra frente só teríamos que arrumar as coisas, voltar à rotina e parar de tentar animar um ao outro e dizer que tudo se realizaria "no ano que vai nascer".

Obrigação ridícula essa de ser feliz nas festas de fim de ano.



O engarrafamento na saída do litoral foi monstruoso.

Depois de arrumarmos as coisas, conseguimos pegar a estrada às quatro e meia da tarde. Decorridas duas horas, conseguimos avançar apenas vinte quilômetros. Já estávamos exaustos.

No meu carro, além de mim, a Drica, a minha mãe, a vó Liza e a minha tia Malu.

Às oito da noite, acessamos a BR-324 e conseguimos avançar um pouco mais.

Às oito e meia, a minha mãe se queixou de dor de cabeça.

Às nove, estávamos quase chegando em Feira, faltando apenas uns vinte minutos.

A rodovia estava cheia, apesar de não estar mais congestionada.

Às nove e vinte e cinco, entramos na cidade, as passageiras deram graças a Deus e retiraram os seus cintos de segurança.

Às nove e meia, eu distraidamente fui trocar a faixa do MP3 do carro, que estava a noventa por hora. Não enxerguei um retenção na via que tinha logo à frente.

A minha mãe gritou quando eu tentei frear e atingimos o obstáculo. O carro saiu do chão com o impacto, os pneus giraram no ar até tocarem o chão violentamente depois de alguns segundos, causando um estrago. Perdi o controle da direção e o mesmo rodopiou na via até parar.


Botei a mão no meu pescoço, que estava doendo. Ouvi uns gemidos atrás, e fui conferir. A minha mãe gritava, assustada, a minha tia Malu havia batido a cabeça no vidro e gemia de dor. A Drica parecia não ter sofrido nada.

Mas a minha vó estava com o pescoço estranhamente virado pra trás, boca e olhos abertos, inconsciente. Todo mundo se desesperou, tentando reanimá-la.



01 de janeiro de 2008

23:30h

- Quantos anos a sua avó, tem?

- Ela tem setenta e seis. Por favor, me diga como ela está. Nunca vi a minha avó gritar daquele jeito!

- Olha, a gente fez uma radiografia, perceba. Não é pra menos. Ela quebrou a coluna. Houve uma fratura, mais precisamente na vértebra T7, havendo ainda uma compressão do corpo vertebral, o disco que...

- Ai, gente o que é isso?

- Muita dor. É de fato muito complicado, principalmente devido à idade. O usual seria encaminharmos imediatamente para uma cirurgia, mas a sua avó está numa faixa etária perigosa para este tipo de intervenção. Ela poderia não resistir.

- E agora?

- Bom, não nos resta muita coisa a fazer. Haverá um acompanhamento da evolução do trauma. Ela ficará com os movimentos limitados, e esperaremos que o próprio corpo dela reaja, calcificando o local da fratura. Como foi este acidente?

- Eu... estava dirigindo e acabei passando por uma obra na pista, fizeram tipo um quebra-molas, eu tava em velocidade alta, não consegui segurar.

- Ela estava sem cinto de segurança?

- Creio que sim. Acho que o corpo dela deve ter batido no teto do carro...

- Sim, daí a compressão.

- ...e, enfim, foi isso.

- Bom. Ela ficará internada e vamos acompanhar. E... talvez ela precise se acostumar com a ideia de viver na cadeira de rodas.



Tive que repetir as explicações do médico várias vezes depois, pois o pessoal, assim que soube, foi direto pro hospital. A minha vó estava sendo medicada intensamente, mas não conseguiu dormir, me dava dó de ver aquela aparência frágil no leito, tomando soro e remédio na veia. Ela era uma pessoa tão enérgica, dura na queda mesmo, que fiquei agoniado só de vê-la ali, deitada. Poucas vezes na vida tinha visto aquela senhora sequer deitar na cama durante o dia, mesmo que para um pequeno repouso. Ela não parava, sempre fazendo alguma coisa, e cobrando da gente aquele mesmo ritmo. Cansava de dizer que éramos muito preguiçosos.

Por isso mesmo que quando chegamos em casa, eu, a Drica e a minha mãe, sentimos um vazio enorme. Sentamos na sala e ficamos meio perdidos, esperando a sua ordem, que não viria, de tomarmos banho, arrumarmos a cama e irmos dormir, que já estava tarde.

Abaixei o rosto e cocei a minha cabeça, desolado e exausto. Eu tava me sentindo uma merda.

Não faltou no hospital gente da família que me reprimisse, dizendo que eu deveria ter dirigido com mais cuidado, que eu era muito distraído, que podia ter matado a minha avó, etc e tal. Engraçado que ninguém se dispôs a ajudar ou ficar lá caso precisasse. De qualquer forma o sentimento de culpa foi inevitável. Dormi na sala mesmo.



Logo que ela saiu do hospital, havia uma lista de providências a serem tomadas: tinha que comprar cadeira de rodas, aparador, fraldas geriátricas, um colchão que evitasse as tais escaras, que são as inflamações decorrentes do repouso excessivo (acho que é isso), enfim... A despesa aumentou demais, e eu não estava preparado pra isso. Liguei pra a Mônica.

- Eu nãaaaaao tenhooo dinheirooo não, Gustavo! Tá pensando o que? Eu não sou solteira não, tenho duas filhas, uma casa! Eu tô cheia de despesa, não tenho como!

- Mas nem pra dividir? A gente divide, eu só não tenho condição de arcar com...

- Ah, eu não sei, não. Sei não. Quanto deu isso aí?

- Tudo deu dois mil e novecentos re...

- Tá MALUCO? Tá doido? Enlouqueceu!

- São duas cadeiras de rodas, uma normal e outra com um buraco no assento pra ela cagar. Tem o colchão, uns artigos aqui também. O pior é um colete que o médico passou, esse não tem jeito, ela tem que usar e é sob encomenda. Um tal de colete de... Jewett. Pra acertar a coluna. Só isso aqui é novecentos e oitenta.

- Nossa...

- E só tem uma loja que faz isso aqui.

- Olha, deixa eu pensar. Eu tô ocupada agora, tô no trabalho. Mais tarde eu te ligo.

Como se houvesse tempo pra isso. Eu estava no balcão da loja, a moça olhava pra minha cara com o orçamento na mão querendo saber o que faríamos, e eu, só olhei pra ela de volta e dei de ombros.

Acabei improvisando algumas coisas, tendo que me virar sozinho. A Lenita foi lá me socorrer e passou no cartão de crédito dela o tal do colete e a cadeira de banho, que era mais barata, tudo deu mil e pouco. Comprei um forro mais adequado pro colchão de lá de casa, arranjei emprestada a outra cadeira de rodas na paróquia do bairro, pedi as fraldas a meu tio Mauro, enfim. Me senti melhor depois que tudo se ajeitou.



Os primeiros dias do ano transcorreram na rotina de cuidar da vó Liza, conversar com a Drica, e de vez em quando levar a minha mãe no pronto socorro, que estava em crise de dor. Eu e a Drica revezávamos nas tarefas com a minha avó, ela ficava incumbida de dar banho e tarefas mais íntimas, a minha mãe, quando estava boa, trocava as suas fraldas e fazia as refeições. Às terças, eu levava a Drica ao CAPS, para o tratamento, que agora era uma vez por semana. Invariavelmente aparecia lá em casa uma visita, que queria saber como ela estava, e recebíamos, repassando a história intermináveis vezes. Nos fins de semana era mais movimentado, com os parentes.

No meio disso tudo eu ainda tentava dar conta do trabalho, sobretudo durante a madrugada, que era mais tranquilo. Eu acabei atrasando a entrega de muita coisa, estava atolado, inclusive com a Valquíria. Prometi a ela que na próxima semana regularizaria meus débitos, e iria à Camaçari.



A Mirelle me chamou para um sorvete numa quarta à tarde, eu estava às voltas com um projeto pra terminar, mas ela insistiu muito, e eu fui.

- Me atualize aí, meu filho. Vovó, como é que tá?

- Tá legal. As dores diminuíram mais, mas, cê sabe né? Movimento zero, ainda.

- Ai, que barra. Nunca mais fui lá, preciso ir. A última vez eu saí logo, porque tava um climão, a tia Estela tava com uma cara horrível...

- Ah, foi. Meu pai tinha ido lá, enfim.

- Tio Luiz foi lá?

- Sim. Soube do caso da vó Liza e foi fazer uma visita. Mas, Mi, eu nunca vi um povo tão mal resolvido... Tanto tempo que ele e a minha mãe tão separados, até hoje não se falam direito, eu hein?

- Bom, pelo menos eles não brigam. Pior é lá em casa, que toda vez que pai aparece é um pega-pra-capar.

- Como se não bastassem os problemas que a gente já tem... Nossa... – tomei um pouco de sorvete, pensativo – a relação entre a minha mãe e minha vó mesmo, gente, o que é aquilo? Agora tá mais light porque ela tá doente... mas, não deixa de ser menos complicada.

- Eu vi, a tia Estela chorando lá, porque se a minha vó morresse ela ia ficar com remorso, porque nunca se aproximaram, porque isso e aquilo, affff...

- Pior que parece que nunca vão se acertar... Quando uma tá relax, legal, a outra tá atacada. Outro dia, um domingo, estávamos lá recebendo uma visita. Dona Conça, lembra?

- Sim.

- Conversa vai, conversa vem, a dona Conça disse que a filha casou há pouco e estava doida pra ter filho. Você acredita que a minha avó falou pra ela bem assim: "Ela é doida. Filho é uma desgraça na vida da pessoa."

- Hãa!

- E ainda emendou: "Filha mulher principalmente."

- Isso na frente da tia Estela?

- Sim, e na minha frente, da Drica, e da dona Conça.

- Gente... que situação...

- Nossa, eu não sabia onde colocar a cara. Minha mãe saiu do quarto discretamente e depois eu a vi chorando no outro quarto. Sabe... mas é uma rejeição... quando a minha avó tá legal com ela, ela também destrata, sei lá... e ficamos no meio disso, sem saber o que fazer...

- A vó Liza reclama muito que a tia Estela é sentimental demais, eu vejo sempre ela falando isso.

- Bom, eu também acho que a minha mãe é molenga, carente, ansiosa... esses últimos dias, mesmo, eu que sei. Minha mãe só fazia chorar, pô! Chorava mais do que vó, que tava com dor na coluna!

- Kkk! E eu não conheço a peça?

- Enfim...

Terminamos o nosso sorvete. Eu e Mirelle nos permitíamos sempre sair um pouco e refrescar as nossas mentes, só nós dois, falando sobre nossa família. Eu e ela sempre tentávamos cuidar de tudo, ela lá na casa dela e eu na minha, então meio que nos ajudávamos também.

Mas eu senti que ela estava, nesse dia, precisando conversar mais sobre si, e percebi isso por conta dos suspiros, e dos olhares perdidos no meio da conversa.

- Mi... o que foi?

- Ai...

- É por causa do Maurício?

- É... e não é... nem sei.

- É o casamento, né?

A Mirelle estava de casamento marcado pra dali a dois meses.

- É.

- Tá na dúvida?

- Não, queeee? Eu amo o Maurício. A gente já tem, nessa brincadeira, dez anos de namoro, né? Tá na hora!

- Sim, e qual é o pó?

- Dinheiro!

Resumo da ópera: a Mirelle estava a dois meses do casório e tinha um catatau de coisa pra resolver, e pouca grana.

- Pela tradição é a família da noiva que arca com todos os custos, né, Gu?

- É aí que tu se fode. O tio Mauro, diz o que?

- Ah, da última vez que nos falamos ele disse que vai ajeitar, mas ele vem falando isso há muito tempo, não dá mais pra esperar!

- Olha, e eu não quero te desanimar, não, mas... eu tive que sair de Camaçari uma noite dessas porque ele tava precisando de grana, viu?

- Tu emprestou a ele?

- Sim. Mil conto.

- Afff!

- Mi, ele não vai ter. Tá endividado.

- Eu não quero pedir ao Maurício, não, Gu. Queria fazer as coisas do meu jeito, sabe... e o pai dele já acha que eu não sou pra o filho dele, porque eles têm dinheiro, né? De repente até acham que eu sou interesseira, sei lá. O pai dele comprou o apartamento que a gente vai morar, mobiliou a casa toda, bancou a nossa lua de mel inteirinha... ainda propôs a meu pai que a gente fizesse a festa, e eles dividissem os custos!

- Vixe!

- Como eu vi que ia dar merda, inventei que não tava afim de festa, que só queria a cerimônia mesmo. Aí agora vou eu e peço a ele dinheiro pra o casamento! Não, eu não quero. Prefiro adiar.

- Tu já fez as contas?

- Ô, meu filho, só o que eu faço! – ela tirou da bolsa um calhamaço cheio de anotações, com uma caneta pendurada pelo bocal – eu já fiz e refiz essas contas, já bati tanta perna procurando o melhor preço de cada coisa...

- Pô, Mi, mas, sabe? O preço não deve ser o fator preponderante... tem que ser o que você mais gostou...

Ela pegou o meu copo do sorvete e olhou o fundo.

- O que é que tinha nesse sorvete teu? Maconha? Tá doido é? Não acabei de te falar que eu tô sem um real?

- Mi, presta atenção: é o seu casamento, com a pessoa que você ama! Tem que ser do seu jeito! Você vai gastar dinheiro de qualquer forma! Mil, cinco mil, não sei, mas a gente vai ter que se virar! E que tenha que ser bom, porra!

- Sim, e a parte que eu vendo meu cu, entra aonde? Porque eu não tô vendo outro jeito, tu tá aí viajando já no casamento dos sonhos!

- Guarda pelo menos essa virgindade aí pra a lua de mel. Vamos pensar em uma solução.

- Ai, desculpa te jogar mais isso, mas é que eu tava abafada...

- Ah, vai se fuder, Mi, que com a gente não tem essa. Sabe de uma? Vamo levantar! – bati palma – bora, bora! Se mexer! Tá com os endereços das lojas aí?



Estávamos no carro, Mirelle me olhava sem entender nada.

- Qual o primeiro passo? Igreja?

- S-sim. Acho que sim... Gustavo, o que é que a gente vai fazer lá?

- Você disse que já estava quase perdendo a reserva do dia por falta de pagamento. Vamo lá resolver.

A reserva da igreja era algo em torno de duzentos reais. Pagamos com o dinheiro que ela tinha na mão, guardado junto com o calhamaço de papeis.



- Pronto, metade do dinheiro que eu tinha pra o casamento todo tu deu na mão do filho da puta do padre.

- Então, já temos a igreja, né? Agora é o que, decoração?

- Gente, o que é que tu tá fazendo?

- Vamo lá, porra.



- Então, como eu estava explicando pro seu marido...

- Não, hahaha, ele é meu primo!

- Ah, desculpe! Bom, como eu estava explicando, a decoração da igreja, incluindo a entrada, o caminho de flores, o altar, fica tudo por seiscentos e oitenta reais.

- Mas isso é preço de à vista, minha senhora?

- É, sim, querido. Se fosse à prazo, seria oitocentos e vinte! Mas a sua prima já veio tanto aqui, que resolvemos acatar a proposta dela, então...

Olhei pra a Mi. Ela realmente tava ralando muito pra conseguir encaixar a sua festa em seu orçamento, seja ele qual for. Peguei o papel do orçamento e analisei os itens.

- Mi, aqui está tudo o que você quer?

- Sim, quer dizer, atende.

- Na verdade, não – a atendente se intrometeu, pegando o papel na minha mão – desculpem, mas a sua prima gostou muito dessa proposta, a primeira, que tem os laços e o caminho até altar com as malhas esticadas nos bancos, e pétalas no chão. Isso...

- Essa proposta, à vista, ela fica por quanto?

- Gu...

- Ela fica por oitocentos e cinquenta.

- E pra fechar?

- Ah, rss... aí você me deixa sem...

- Oitocentos?

- Gu...

- Oitocentos não dá, querido...

- Lembre-se que é à vista. Assinamos o contrato, amanhã passo aqui e deixo o total e pronto.

- Olha...

- Oitocentos.

A mulher me olhou. Mirelle nem falava mais nada, perdida.

- Tá bom. Fechado.

- Isso!

- Só um momento que eu vou pegar os dados dela para fazermos o contrato.

A mulher saiu e a Mirelle começou a me dar tapa, prestes a entrar em colapso nervoso.

- Mirelle, caralho, confia em mim! A gente vai arranjar o dinheiro pra tudo, relaxa!



Fomos à loja onde ela alugaria o vestido. Ela provou e ficou linda no que tinha escolhido. Oitocentos reais. Assinamos o contrato para pagamento à vista também.

Passamos ainda na gráfica, encomendamos os convites do jeito que ela tinha pensado. As alianças, o Mauricio já tinha providenciado, e fomos apenas fazer a prova. A tarde passou voando e voltamos a sentar em outra sorveteria.

- Bom, agora, minha dívida tá em mil e oitocentos reais. E meu cu não vale um décimo disso.

- Vamos arredondar para dois mil. Agora deixa eu te explicar...

Eu conhecia um dono de loja de material de construção, por conta das obras que eu acompanhava, que também era agiota nas horas vagas. Ele não gostava de ser chamado assim, porque dizia que se sentia um monstro, quando na verdade o que ele fazia era um trabalho de caridade, solidariedade até, segundo ele.

- Solidariedade a sete por cento.

- Afff!

- Mas não tem jeito, cara. Eu não tenho como te ajudar diretamente com dinheiro, mas eu posso te ajudar pagando as prestações. Vamos pedir umas folhas de cheque pro tio Mauro, dividimos em três vezes e vamos pagando, metade minha metade sua. Vai ficar melhor.

- É...

- Eu tinha até um valor considerável pra receber de um projeto grande que eu fiz no finzinho do ano passado, mas a papelada necessária atrasou e eu acho que só recebo no fim do mês. Por segurança, a gente divide. Qualquer coisa, se o pagamento rolar, a gente paga a ele e fica livre.

- Ai, Gu...

- Relaxa. Confia em mim.

- E se a gente não pagar? Aff, sei lá! Quem é esse homem?

- O nome dele é seu Teixeira, mas o pessoal da área costuma chamá-lo de "seu Peixeira".

- Ai, Jesus, misericórdia!

- Kkkkk! Relaxa! Ele é meu broder, cara. Cansei de indicar meus clientes pra comprar na loja dele, ele me adora. E a gente vai conseguir pagar, ficando algo em torno de seiscentos por mês, trezentos pra cada fica tranquilo, né?

- Sim, fica. Verdade.

Bom, depois de convencê-la, ligamos pro tio Mauro, eu liguei pro seu Teixeira, acertei com ele pra pegar a grana no dia seguinte, assim que eu levasse as folhas do cheque borrachudo do meu tio. No outro dia fomos com toda a pose pagar tudo à vista nas lojas, a Mirelle começou a tirar onda, dizendo que queria isso e aquilo, e o povo "sim, senhora, a senhora vai ter o casamento dos sonhos".

- Kkkkkkkkk! Se eles soubessem que o noivo vai ficar viúvo se a noiva não pagar o agiota!

- Hahahaha! Vai ser tipo o casamento de "Kill Bill"! Seu Peixeira vai chegar lá na igreja dos Capuchinhos liquidando todo mundo!



Deixei uma Mirelle sorridente em casa.

- Gu, deixa eu te abraçar...

- Vem cá – nos abraçamos – boba foi você de não ter partilhado isso antes comigo, viu?

- Ah, eu te vi tão cheio de problemas, eu trazendo mais um... sei lá. Ai, eu te amo, gato, obrigado mesmo... Acho que hoje eu consigo dormir.

- Dorme, sim, acorda amanhã e vai trabalhar. Porque agora temos uma dívida! Hehe...

- Rsss, é. Mas eu tô tranquila. Dá pra pagar, sim. Com o dinheiro das aulas que eu dô, juntando uns bicos, dá.

- Isso. Agora pensa no teu casamento, curte essa fase, senão passa e aí não tem mais jeito.

- É. Agora, eu vou curtir, graças a meu irmãozinho querido do coração!

Me apertou de novo, depois nos despedimos e eu fui pra casa.



A Drica conversou comigo a respeito do seu tratamento no CAPS.

- Gu, eu já tô me sentindo bem melhor.

- Eu sei disso, Drica. Que bom. Tenho percebido que você está mais solta, mais leve nas últimas semanas...

- É, eu tô bem. Acho que eu consegui superar, sabe?

- Que bom.

- É por isso que eu queria parar de tomar esses remédios. Queria ter falado isso com o psiquiatra, mas tem três semanas já que a gente não consegue vaga, tá difícil.

O CAPS era muito bom, a instituição em si contava com profissionais muito experientes e competentes, talvez os melhores da cidade. Mas padecia do mal da maior parte dos órgãos públicos: a sobrecarga por conta da demanda excessiva. Fomos a três consultas consecutivas e não conseguimos atendimento, porque havia uma urgência em outro local, ou o profissional estava lotado, enfim, vários fatores. O resultado é que a Drica estava sem tratamento, contando só com os remédios mesmo.

- É ruim parar assim, sem orientação.

- Mas eles estão me fazendo mal, Gu. Eu fico sonolenta, sabe? Minha cabeça pesa, dói, não consigo fazer as coisas. Eu queria parar, sério. Quero voltar à faculdade, voltar a estudar, e com eles eu não vou conseguir. Inda mais temos que cuidar da vó Liza também.

- Você tá legal mesmo?

- Tô ótima! Me sinto bem, bem mesmo. Acho que foi bom ter acontecido isso, as sessões com a psicoterapeuta me ajudaram muito, sabe? Mas eu quero voltar à minha rotina.

- Tá. Então, tá. Vamos reduzindo as quantidades, né? Eu vou tentar falar com ele pelo telefone, relatar e ver o que ele acha. Se conseguirmos consulta pra a semana que vem, aí é bom porque ele já avalia o resultado, se foi bom ter parado ou não.

Hoje, parando pra pensar, é óbvio que se você começa um tratamento com remédios e melhora, é... por conta dos remédios. Tirá-los, portanto, seria algo meio que contraditório. Mas, quando você acaba abraçando mais do que consegue resolver, no entanto, você acaba tomando decisões insensatas, ou negligenciando algo importante que nunca poderia ter sido deixado de lado. Então, naqueles dias, eu não tive cabeça pra pensar que aquilo poderia deixar a vida da minha irmã em risco.

Resolvemos, assim, nessa conversa, que ela iria parar de tomar os remédios.

De todas as idiotices que fiz na vida – e olha que foram muitas – essa foi, de longe, a pior.



Na quarta-feira seguinte arrumei a minha sacola de roupas e fui à Camaçari. Planejei ficar algo em torno de dois a três dias, pois tinha muita coisa pra organizar, algumas entregas de projetos para a Valquíria, contratação de novos, e verificar o meu pagamento do projeto anterior. Liguei para o Edu e perguntei se podia ficar na casa dele.

A reunião com a Valquíria foi péssima.

Descobri que, por conta do montante do contrato, a matriz da empresa pedia uma série de documentos que eu ainda não tinha, pois a minha empresa era recém aberta. Liguei pra o meu contador, e me disse que levaria uns dois meses para providenciar, e a Valquíria me deu um prazo de quarenta dias depois disso pra efetuar pagamento.

- Resumo: só vejo a cor do dinheiro em abril? Val, eu não tenho como arcar com despesas até lá!

- Gustavo, desculpe, mas eu não posso fazer nada. Pense pelo lado bom. Assim que regularizado, você vai ter um contrato de valor considerável, uma renda muito boa... Encare isso como um investimento.

- Hum. Tá.

Se eu não morrer de fome até lá, né, puta?



Encontrei o Murilo no estacionamento, ao sair da reunião.

Me gritou, e eu parei, esperando-o se aproximar. Sabia que seria inevitável encontrá-lo, então, não foi muita surpresa. Havia me preparado internamente antes, já estava com problemas demais.

Sorri e nos abraçamos.

- E aí, cara? Como é que você tá? E esse sumiço todo, hein?

- Ah, verdade. Tô com uma situações aí.

- Sim, o Edu me falou. Poxa, cara, que barra.

- É. Mas tá tudo tranquilo, as coisas estão se organizando. Deixa eu te dar um abraço de feliz ano novo – nos abraçamos novamente.

- Ah, é verdade!

- Tudo de bom nesse ano, tá? Muita felicidade...

- Pra você também, pra nós todos. Que você tenha muita realização aí, cara...

- Tomara! Rss.

Nos soltamos e olhamos um pro outro.

- Você nem avisou que vinha.

- Você não entrou em contato também. Sempre encontro o Edu no msn, torpedo, etc.

- É, sabe como é. Não sou muito de ficar conectado, você sabe. E nossos celulares são de operadoras diferentes, né?

- É. Enfim. Também pensei que você estivesse na praia, você sempre tira férias em janeiro...

- Não, esse ano eu preferi ficar trabalhando. Não deu pra tirar. Ah, por falar nisso, você vai ficar hoje por aqui?

- Ah, não sei ainda... eu...

- Como não sabe? Já são cinco da tarde? Rss.

- É, tô vendo aí. Quer dizer, acho que vou ficar, sim. A Valquíria me passou umas coisas, eu tava resolvendo se ia fazer esse "investimento"... mas eu vou ficar.

- Rss, maluco, sempre desprogramado, né?

Eu sabia que ia ficar, claro. Só não queria que ele colasse, queria ficar quieto mesmo.

- Ó! Dorme lá em casa, pô.

- Nãaao, relaxa. Vou ficar no Edu.

- Olha... eu tô sozinho em casa, tá? O pessoal tá todo na praia.

Ele estava meio sem graça, pois eu havia comentado que não gostava da família dele. Mas, na verdade, eu não queria, àquela altura, aproximação desse tipo, o meu plano era me refazer. Lembrei também que em janeiro do ano passado foi por esse mesmo motivo que ele dormiria na república pela primeira vez, dando início ao processo de apagamento das lamparinas do meu juízo. Tanta coisa aconteceu nesse intervalo de tempo! E nada aconteceu nesse intervalo de tempo.

- Não, Murilo, relaxa. Já falei com o Edu, fico por lá mesmo.

- Que é que tem eu aí? – o Edu apareceu por trás, nem tinha percebido sua aproximação.

- Tava falando com ele que vou dormir na tua casa hoje, que era pra ele não se preocupar, porq...

- ...e eu tava falando com ele que eu tô sozinho em casa, Edu, pra ele ficar lá!

- Aaaah, pô, mas se o Murilo tá sozinho e você quiser fazer companhia, tudo bem! Relaxa! É até melhor pra você, porque hoje eu chego um pouco mais tarde e aí você não fica sozinho.

Olhei pra um e pra outro, fiz menção de dizer qualquer coisa, mas me calei.



O quarto do Murilo era a bagunça de sempre. Algumas roupas espalhadas, os livros empilhados num canto, a prancheta cheia de aparelhos eletrônicos esmiuçados, aguardando para serem analisados pelo futuro engenheiro mecânico.

- Olha, a casa tá vazia, mas eu vou colocar o colchão aqui mesmo no meu quarto, tudo bem?

- Tudo, sem problema. Se você tiver tem medo de dormir só, eu faço isso por você.

- Rss, né isso não, otário. É pra a gente ficar conversando mais – ele tirou a camisa e veio na minha direção, eu estava analisando a sua prancheta – isso aqui é uma comparação que eu tô fazendo, ó, entre esses dois aparelhos aqui. Essas placas foram fabricadas uma em 2002 e a outra em 2006, dizem que tem uma tecnologia diferente, eu quero identificar sozinho.

- Hum. Que massa. Você consegue já estudar esses equipamentos, assim?

- Tenho dificuldade. Mas eu pegos uns livros na biblioteca, pesquiso também no Google quando eu tô de bobeira lá na sala, pra ver se eu me inteiro mais.

- Muito bom isso. Esforçado. Rss.

- É. Quem sabe não viro um engenheiro assim que nem você, né?

- Hahaha. Quem sou eu, gente?

- Ah, você não para. Tá sempre com cliente, o pessoal gosta do seu trabalho, pelo que eu vejo... Outro dia o Diego tava falando que viaja nos desenhos que ele faz pra você.

- Ah, o Diego. É, fizemos trabalhos bons, sim.

- Então. Não posso me espelhar?

- Rss. Tá. Murilo, eu queria mesmo sabe o que?

- Diz.

- Uma toalha, o colchãozinho, o banheiro...



- Ó eu baixei o CD duplo do Red Hot, o nome é Stadium Arcadium, vamo ouvir?

- Eu já tô com o olho pêco aqui, então, se eu dormir no meio da música, não repara.

- Eita! Tá bom. Só essa então: "Dani California".

Ouvimos essa, a "Snow", "Charlie", e várias outras. Deu saudade das mais antigas e ouvimos também. "Californication", "Dosed"... No meio disso conversamos sobre as coisas da minha casa, a minha irmã, a minha vó, etc. Ele queria saber mais dos últimos acontecimentos.

- Pô, velho. Cê tá passando uma barra.

- Tô, sim. É uma fase difícil, enfim. Esperar passar. E você, como tá?

- Ah, eu tô bem – abriu um sorriso, o olhar ficou distante, como se estivesse lembrando de algumas coisas – tô... vivendo uma fase bem legal da minha vida mesmo, sabe?

- Hum.

- Esse ano, na verdade, começou bem pra mim. Tenho passado por momentos muito bons. Tô... feliz mesmo.

- Que bom – suspirei – que bom. Bem, acho que eu tô com muito sono agora.

- Você tá com uma expressão cansada, umas olheiras. Tá acabado.

- Obrigado.

- Rss, não, quero dizer. Natural, né?

- É. Trabalho acumulou também, dei duro esses últimos dias pra concluir.

- A vida às vezes tem uns pedaços ruins. Tem um filme, cara, que seria bom você assistir – se levantou e pegou um DVD, me mostrando a capa – é com o Will Smith, o nome é "À Procura da Felicidade". Tô dizendo porque eu assisti recentemente e me lembrei de você. O cara só se fode, velho, o filme todo, toda hora uma desgraça pior acontece, assim que nem contigo...

Eu cruzei os braços e semicerrei os olhos, como de costume quando ele fala merda, pra mostrar a minha impaciência.

- Não, quero dizer... assim: o cara tem uma vida difícil, sabe, mas no final tem uma lição boa, de que vale a pena algumas coisas – bocejei – assiste, é bom.

- Ok. Quem sabe. Vou ver. Não gosto muito de Will Smith não.

Até hoje eu não assisti o CARALHO desse filme.



Minha mãe ligou no outro dia de manhã.

- Gu, achei uma casa boa pra a gente alugar.

Tínhamos conversado muito a respeito disso ultimamente. A casa em que morávamos há muito não possuía condições de habitabilidade, além de ser muito pequena. Depois do acidente com a minha avó, então, ficou mais difícil, o banheiro era muito pequeno, não comportava a cadeira e o apoio das pernas, um horror. Só tinha dois quartos, o telhado estava prestes a cair na nossa cabeça. O imóvel, em geral, estava necessitando de reforma há muito tempo, mas não tínhamos a menor condição de levantar o montante considerável para fazê-la. Então, apesar de ser uma casa própria, a solução emergencial mais apropriada para o momento seria mesmo alugar algo melhor, até que tivéssemos condição de melhorar e voltar para a nossa casinha.

- É quatrocentos e cinquenta, mas vale a pena, Gu. Tem três quartos, é enorme, não tem degrau nem nada... Ah, tem três banheiros, fica melhor pros banhos de mãe. Tem área nos fundos e até um quartinho. E é aqui no mesmo bairro, não vamos ter problema de readaptação.

- Hum...

- A gente divide, fica duzentos e pouco pra cada. Ai, olha, vai ser bom. Mudar um pouco essa energia ruim que tá rondando a gente, sei lá...

- Verdade. Ó, mãe, aluga essa porra. Vai ser bom.

- Ai, que bom.

- Fim de semana a gente se muda.



Antes de eu pegar a estrada de volta, à tarde, conversei um pouco com o Edu, debaixo da mangueira em frente ao galpão, onde costumávamos matar o tempo na minha época de funcionário (fora do) padrão.

- kkkk! Mas o Murilo é muito sem noção mesmo... quer dizer que ele assistiu e lembrou de tu!

- Isso! Porque o cara só se fode... Aí ele teve um estalo e ó! Vou ajudar o Gustavo!

- Kkkk!

- Eu mereço, né? Kkkk! Eu devo merecer...

- Ainda bem que tu já conhece a peça rara.

Acendi um cigarro. Queria matar a minha curiosidade.

- Como é que ele tá, hein, Edu? Digo, ele com a estagiária, ainda tá rolando?

- Ô! Se tá. Eles estão bem entrosados, cara. Ele tá todo empolgadinho com ela.

- Ele me falou ontem que tava bem feliz. Mas fiquei na dúvida de qual seria o motivo. Afinal de contas, pelo que eu saiba, ele sempre tem esses casinhos, essas aventuras, né?

- É. Mas, pelo jeito, nesse caso, ele tá... envolvido mesmo. Ela também. Eles já despertaram até atenção de algumas pessoas, já tem alguns comentários aí.

- Ela sabe que ele tem noiva...?

- Sabe.

- Mas não ligou.

- Não. Até porque ela é casada, né?

- Ah... tá. Moderna, ela, não?

- Rss, é. Conversamos muito sobre isso ultimamente. Ele me disse que acha que está gostando dela, sei lá. Começou como putaria, mas, ele me disse que tá curtindo muito. E acha que ela também tá na vibe dele, enfim. Que nunca tinha sentido algo assim, por exemplo, pela Priscila.



Passei na sala do pessoal, me despedi dos amigos, e hesitei ao entrar na sala dele. Pensei até em nem falar, mas ponderei se não seria uma desfeita.

Coloquei a mão na fechadura, reticente. Olhei pelo vidro da porta pra ver se ele estava lá. Ele estava. Não podia me ver, do ângulo em que estava sua mesa, mas eu o via. Aline sentava em outra mesa, no outro canto da sala.

Como se não bastasse a pontada que senti ao ouvir as palavras do Edu, ainda presenciei uma troca de olhares entre eles, ali, no meio do expediente, que só fez comprovar o que meu amigo dissera.

Havia outras pessoas na sala também, concentradas em seus trabalhos, então eles aproveitaram e se olharam. Ele piscou o olho pra ela, que sorriu, tímida, mas retribuiu. A feição dele era de pura satisfação, o riso cheio de prazer de ser correspondido pelo seu affair. Senti, atrás daquele vidro, que ele a olhava com muita ternura, com paixão, algo que nunca tinha visto em seu rosto antes. Eles estavam conectados, tão ligados entre si, absortos em seu momento particular que nem notariam a presença de mais ninguém.

Recuei e pus a mão no peito, que doía. Não era necessário mesmo me despedir. Naquela cena tão simples, tão rápida e tão frugal, de dois jovens amantes envolvidos em pleno ambiente de trabalho, me veio uma mensagem nova que eu não contava em receber ali, no meio da tarde.

Talvez o Murilo não quisesse me mostrar nada, nem tivesse com receio de coisa alguma naquela Noite Fatídica, nem mesmo quisesse me magoar, me deixando de lado pra ficar com ela. Talvez apenas ele tivesse encontrado a pessoa que realmente o tocara, que o fizera esquecer de todo o resto do mundo, naquela noite, como ali naquele momento. Um encontro inevitável e avassalador. E eu, seria apenas um coadjuvante, o amigo que emprestara o carro, cenário do primeiro ato de amor.

Há de se reconhecer às vezes que não somos o centro do mundo, e que as pessoas não têm a obrigação de nos retribuir o sentimento, nem em forma, nem em intensidade. Entendi que talvez o Amor tenha chegado para ele, e que, olha só, não era eu. Não existiam, portanto, culpados. Era apenas mais uma história de desencontro.

Necessário é também saber perder.

Antes de partir, me tranquei no banheiro para lavar o meu rosto, que sentia estar ardendo. Me olhei ofegante no espelho, tentando me recompor. Se o plano era me curar daquele sentimento, então aquilo serviria muito para me convencer. Fitei a minha imagem, a imagem da derrota. Repeti em voz alta:

- Isso é bom pra mim. Isso deve ser bom pra mim.


...

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