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Depois de algo como meia hora de conversa com a Drica, cabeça em meu colo, sem parar de chorar, ela me relata que estava passando por problemas de socialização com os colegas da faculdade; ela sentia que eles a rejeitavam; ela não conseguia se inserir. Pensamentos ruins rondavam a sua cabeça e, além disso, todos os dias ela via um carro preto a seguindo, enquanto ela andava na rua, ou estava no ônibus.

Contou algumas outras histórias das quais ela nunca tivera coragem de falar, ainda da época do cursinho. Era muita informação ao mesmo tempo, mas ela falava de uma perseguição de uma professora para com ela; ao que parece, essa mulher a tratava com carinhos demais, ao ponto de ela se incomodar com isso, e se afastar. Segundo ela, com isso, a mesma passou a destratá-la.

Isso tudo, somado ao assalto e a sensação de vulnerabilidade natural depois disso, fez com que ela perdesse o equilíbrio a ponto de pensar até em suicídio.



Algum tempo depois chegaram lá a Mônica com as filhas, depois a Mirelle. Percebi que a minha mãe tinha ligado pra elas enquanto conversávamos. A Drica tinha muita afinidade com a Mi, principalmente depois que a nossa prima fez um curso intensivo com ela de química para o vestibular.

Aproveitei que elas conversavam e fui tomar banho. Quando voltei, ainda troquei ideia com elas no portão, enquanto minha mãe estava com a Drica no quarto.

- Amanhã mesmo a gente tem que procurar um profissional, Gu. Não pode vacilar – me alertou a Mirelle.

- Vacilar foi só o que a gente fez com a Adriana, né, Gustavo? – lembrou a minha irmã gospel – esse tempo todo a gente sabia que ela precisava de uma ajuda, ela sempre foi muito tímida, nossa! Travada mesmo.

- É, eu sei. Mas é que aqui em casa é sempre tanta coisa, Mônica... – falei, enquanto a Mirelle concordava – Eu fico priorizando as ocorrências. A mãe, mesmo. Nossa... Três, quatro meses de internação por ano, isso aqui é uma loucura...

- É, mas se depender de mãe, você sabe – Mônica retorquiu – a gente não cuida mais de nada, só dela! Ela é outra que tem que se tratar, também. Essas dores de cabeça que ela tem, essas coisas todas, são de fundo emocional, mas ela não admite, não procura ajuda! Quem sobra é a gente, Mirelle!

- E eu não sei como é? – Mirelle jogou a bolsa no ombro e cruzou os braços – ou tu esqueceu que eu tenho uma doida também lá em casa? Minha mãe tá impossível, Mônica.

- Gente, eu não sei como é que a gente chegou à vida adulta, na verdade – eu refletia – com esse povo descompensado criando a gente...

- É só porque Deus protege os animais, meu filho! – Mirelle explicou – agora também aguente, viu? O psiquiatra de mãe já avisou que é daqui pra pior, porque vai ficando mais velha, mais doida, inventa mais coisa...

- Nossa, a gente tá fudido.

- Eu mesmo não! Se ela apertar muito o meu juízo, nem sei. Ai, eu acho que eu mando matar!

- Deus é mais, Mirelle! Tá repreendido! – Mônica exclamou e eu ri, a Mi era muito louca.

- Ah, minha filha, pego um travesseiro na hora que ela tiver dormindo, que nem naquela novela... kkkk! Até ela parar de se mexer! Depois digo que foi um acidente!

- Jesus!

- Kkk! Sim, Mi! Antes que vocês vão embora! Como a gente faz amanhã? Você liga?

- Vou pedir pra mãe ligar pro psiquiatra dela e conversar, e aí te ligo. Vai dar tudo certo, você vai ver. Ele é muito bom.

- Não, eu sei. Eu até acho bom ter acontecido isso. Como a Mônica disse: a gente precisava dar uma atenção a ela. Agora chegou a hora. Ela inicia o tratamento direitinho, melhora, continua os estudos delas, vai dar certo. Vai dar.



No outro dia, logo depois do almoço, fomos eu, a minha mãe e a Mônica, levar a Drica no Centro de Atenção Psicossocial, o CAPS. Fomos atendidos por uma assistente social, que fez uma entrevista conosco, depois nos encaminhou para uma outra sala de triagem. Era uma casa antiga, que foi reformada pela prefeitura para abrigar este órgão, tinha algumas paredes de pedra e esquadrias de madeira pintada. O ambiente todo era branco e marfim. Nos acomodamos nas cadeiras enfileiradas em frente a um grande balcão, de onde três mulheres gritavam nomes. Estava cheio, lotado. Alguns pacientes mostravam grande perturbação, outros eram calados, inertes. Tinha alguns com sinais de demência, babando, ou sem o controle dos movimentos, como tremores. Era opressor tudo aquilo. A Drica não levantava os olhos em momento algum.

Quando finalmente fomos atendidos, o psiquiatra nos crivou de perguntas. Questionou muito a minha mãe sobre detalhes do assalto, mas foi mais além. Queria saber sobre como tinha sido a gravidez da Drica e sua infância até os quatro, cinco anos. Bom, como a história não era nenhum conto de fadas, minha mãe não falou com facilidade, tentando segurar o choro.

- Então quer dizer que o seu marido a agredia, D. Estela?

- S-sim.

- Inclusive durante a gravidez.

- Isso.

Ele não parava de anotar.

- Ela nasceu de parto normal?

- Não. Cesária. Na verdade... a minha bolsa estourou. É... que... o pai dela tinha acabado de brigar comigo e tinha jogado em mim um objeto que acabou acertando a minha barriga – ela olhou pra baixo e apertou a bolsa, fechando os olhos.

- Meninos, vocês poderiam esperar lá fora? Gostaria de conversar a sós com a mãe de vocês.

Pra mim foi um alívio imenso, não queria reviver aquelas coisas. Depois ele conversou sozinho com a Drica e nos chamou.

Ele nos explicou que aquilo tinha sido apenas um primeiro contato e, por conta disso, não poderia dar um diagnóstico naquele momento, mas ressaltou que ela precisava de atenção redobrada e, além disso, iria começar um tratamento que incluía medicamentos. Enquanto ele falava, eu dirigi meu olhar para as suas anotações. Vi algumas coisas soltas, "criança retraída, observadora" "timidez excessiva" "personalidade esquizóide" "traumas uterinos característicos do perfil", etc. Chamou a assistente social.

- Quero que essa menina volte aqui na sexta-feira, e faça o tratamento com uma assistente social e uma psicoterapeuta. Todas as terças comigo, e todas as sextas com elas, durante o mínimo de três meses.

Nos despedimos e fomos nos encaminhando até a porta. Eu apertei a sua mão em agradecimento.

- Obrigado, doutor. A gente vai fazer o que está prescrito aqui pra ver se ela se livra logo do trauma desse assalto.

- Garoto – ele me reteve, enquanto elas se adiantavam – receio que sua irmã necessite de um acompanhamento mais cuidadoso, sim, mas não por conta desse episódio.

- Como assim, doutor?

- O assalto que você falou. Eu ainda não vou fechar um diagnóstico, como lhe falei, mas... pela minha experiência... receio que ela tenha algo que... não seja somente um trauma temporário.

Eu parei de respirar. O velho espalhou as mãos, como que tentando desanuviar a minha mente.

- Não vou fazer alarde sem necessidade. Só quero fazer alguns alertas: ela me confidenciou que já chegou a ir na cozinha de madrugada e pegar uma faca, mas, não teve coragem, até porque apareceu alguém – eu deixei o meu queixo cair, aterrorizado – então, é preciso redobrar a atenção. Não deixá-la sozinha, tirar instrumentos cortantes do alcance, bem como remédios, ou qualquer outra coisa que possa ser perigosa.

- Doutor...

- Pelo menos no início. Esses remédios costumam fazer efeito a partir de oito dias de uso, com pico aos quinze ou vinte e um dias. E, por favor, não abandonem o tratamento. Receio que ela tenha um transtorno mental que precisa ser investigado mais profundamente.

- O senhor acha que é o quê?

Ele deve ter visto a minha cara de pavor e hesitou.

- Vou me limitar por enquanto a pedir os cuidados. Não posso alarmá-lo à toa. Só não abandonem o tratamento.

Lá fora, as três conversavam animadamente com a psicoterapeuta, dando risadas, que estava descontraidamente pedindo à Drica para ser menos tímida, levantar a cabeça, soltar os cabelos, senão ia ser difícil arranjar namorado. Ela ficou bem mais confiante e eu também, já ria também no caminho, passamos na farmácia e compramos os três medicamentos prescritos. Dividi a conta com a Mônica.

Minha mãe teve a ideia de alugarmos alguns filmes, a Drica adorou, e fizemos isso. Muita comédia, o suficiente para animar qualquer velório.



Na quinta-feira eu estava no escritório tentando dar conta dos meus trabalhos e o Murilo me ligou, dizendo que a Valquíria o tinha destacado para uma missão em Feira de Santana naquela tarde: levar os meus projetos impressos para dar entrada na sede do banco.

- E tenho que te ver, meu broder, porque você precisa assinar as paradas aqui...

- Tem que me ver??

- QUERO te ver, porra! Menino difícil esse!

- Hahaha, agora sim! Vem, vem! A Valquíria me ligou, avisando que viria um carro trazer os projetos, só não sabia que era você! Que bom!

- É! Tô em Salvador, vim aqui pegar uma parte da documentação pra entregar aí. Caralho, velho, é muita coisa, né?

- É, uma putaria. Gente, mas se eu não me engano, Lilo, o prazo é hoje! A recepção de documento lá é só até cinco horas, pelo que eu saiba! Vai dar tempo?

- Tem que dar, velho, são três horas agora. Xô ir. Te ligo quando chegar!



Às quatro e vinte ele estacionou na lanchonete em frente ao banco, esbaforido. Eu já estava lá, tomando um suco, aguardando. O Bomba também estava.

- Olha só isso, Bomba – eu dizia enquanto assinava cerca de sessenta folhas de memoriais e trinta pranchas – o resultado das nossas noites mal dormidas...

- Não dormidas você quer dizer, né, Gu?

- É! Rss, ah, mas valeu a pena! – Lilo me olhava e eu sorri de volta pra ele – tomara que dê tudo certo com esse financiamento, a Valquíria tá super animada com essa expansão. Toma. Quem vai entregar lá na frente?

- Vou lá – o Bomba se adiantou – me esperem aqui, garotos.

Acompanhei a saída do Bomba com o olhar, suspirei e fitei o Murilo.

- Me conta, como é que você tá? – apertei a sua mão que estava pousada sobre a mesa.

- Indo, né? Aquela correria de sempre, contando pra chegar o fim do semestre...

- Rss, falta muito?

- Duas matérias e um resultado. Acho que final da semana que vem eu me livro. Dando tudo certo, aí sim – se esparramou na cadeira – quero comemorar meu aniversário caindo na cerveja, cara, relax...

- Isso mesmo. Hum, então vai fazer mesmo o niver?

- Sim, claro! Por isso que eu queria te ver. Se lembra que eu te falei?

- Falou, naquele dia. É no próximo sábado, sem ser esse, né?

- Isso. Você vai, né?

- Vamo ver. Poxa, e o presente hein? Que é que eu te dou?

Olha o mole que eu dei. Ele fez aquele sorriso safado e eu coloquei a mão na cara, rindo também.

- Fala sério, porra! Eu não tenho noção do presente, Lilo!

- Ah, cara... falando sério? Quero que você vá. Pronto, é o meu presente. Vou ficar sem graça também de ficar te pedindo.

- Ah, para com isso! Fala aí! Ah, já sei. Alguma ajuda na festa, quem sabe? Você quer fazer o que? Feijão?

- Não, quero churrasco. Já pedi até a casa da minha irmã emprestada, que lá tem uma varanda boa, dá pra espalhar umas mesas, tem churrasqueira... Pô, tá aí... pode ser uma ideia...

- É, porque você vai ter um gasto grande com comida pra aquele povo todo... a gente podia pensar num formato assim, da galera dar a cerveja, sei lá...

- Vou pensar nisso. É uma ideia, mas eu só não quero que os meninos pensem que eu tô explorando...

- Que nada, relaxa. Todo mundo broder. E, no final das contas, é o povo mesmo que vai consumir mesmo, haha! Fica na tua.

Rimos e nos olhamos. Eu tava adorando ele ali, conversando comigo no meio de uma tarde de trabalho, em Feira, no meu cenário... Parecia antes, que a gente dava umas escapulidas pra lanchar (e o povo dizendo que a gente tava em pleno ato de sodomia, quem me dera).

Fiz menção de lhe falar alguma coisa, que estava com receio de falar. Como que por adivinhação, ele perguntou novamente:

- Mas, você vai, né?

- Lilo, é isso... Eu não sei se é apropriad...

- Não, Gustavo, pôooo! Aquilo ainda?

- Murilo, não me entenda mal. Eu geralmente não tenho besteira com essas coisas, mas... eu sei lá como é que estão as coisas com a tua família, se eu vou ficar à vontade depois de tudo... talvez eu não indo, sei lá, não tenha climão, e a festa role de forma...

- Ah, cara, nada a ver. Nada a ver isso. Ó, eu tô fazendo de tudo pra dar tudo certo, quero reunir as pessoas que eu realmente gosto. Se você não for, vai ficar faltando pelo menos uma pessoa – eu senti meu rosto aquecer e reprimi um sorriso – e, pô, o aniversário é meu, né? Eu tenho o direito de ter quem eu gosto à minha volta.

Ele apoiou os braços nas suas pernas abertas e juntou as mãos, se aproximando e olhando pra mim. Queria uma resposta. Eu fui abrindo um sorriso condescendente, e ele foi abrindo um sorriso de satisfação. Peguei meu copo de suco, ainda rindo, enquanto ele comemorava, batendo palma.

- Ó, relaxa, vai dar tudo certo. Antes de vir aqui te convidar, por exemplo: eu já conversei com a Priscila, já expliquei a ela que eu vou dar uma festa, e que você é meu amigo, e tal. Que eu tinha que te convidar.

Meu sorriso desvaneceu e eu me limitei a olhar fixamente para o copo que eu pousei novamente na mesa.

- Eu fui convencendo a ela, né, pô, pedindo com jeito, pra não ter problema de ela não aceitar...

Eu cerrei os lábios e abri as narinas, puxando o ar.

- Aí ela aceitou de boa, disse que você podia ir, não tinha problema nenhum. Pronto, agora...

- Ah, ela aceitou de boa! Autorizou a minha entrada! Foi convencida de que eu tinha que ser convidado! Huu! Que bom.

- Para. Pera. Você não entendeu. Pera.

- Manda ela pegar a sua varanda – tirei a minha carteira no bolso da calça – a sua churrasqueira – abri a carteira e tirei dez reais – as mesas, as cadeiras – amassei o dinheiro e joguei na mesa – e enfiar NO CU!



O Bomba não entendeu nada ao retornar à lanchonete de onde eu saía em disparada, todo feliz por ter conseguido entregar os documentos. O Murilo vinha logo atrás, me gritando.

- Você é todo ignorante, né velho? Volta aqui, idiota!

- Murilo, ah, vai se foder! Eu, hein? Eu lá preciso de autorização pra entrar em qualquer lugar que fosse!

- O que foi, gente?

- Ainda mais autorização de Priscila? Quem é Priscila? Me poupe!

- Eu falei errado, somente! Eu só queria prevenir que alguma coi...

- Foi exatamente isso o que você falou! Bomba, ele acabou de me dizer que "pediu", "convenceu", "explicou"...

- O quê?

- A festa dele!

- Eu tava convidando ele pra o meu aniversário, Bomba, aí...

- Ah, pô! É, vai ter!

- É, eu tô sabendo, Bomba! E você? Precisou de autorização da Priscila pra entrar?

- Como assim?

- Para de falar merda, velho! Eu só falei com ele, Bomba, que eu primeiro falei com a Priscila, por causa de umas coisas aí, que o Gustavo iria, pra não ter problema lá na hora...

- Que tipo de problema, Murilo?

- Tá vendo aí? O problema sou eu, Bomba! Murilo, fique tranquilo, sua festa vai correr muito bem. Era exatamente por isso que eu tava com receio de ir. Primeiro que a festa é na varanda da sua irmã, aquele doce de pessoa. Segundo que já rolou muita confusão com meu nome. Pronto, não tem discussão!

- É, Murilo. Aí você deu mole.

- Mole o quê, Bomba, até você? Por causa disso mesmo que eu conversei com ela, eu já expliquei isso pra ele! Eu quero ele lá, e eu quero que dê tudo certo! Porra! Vai ficar sempre assim esse clima? Ela é... minha noiva, ele é... meu amigo, e aí? Uma hora vai ter que conviver todo mundo em paz! Você não faria isso por mim, não?

O Bomba olhava de um lado pro outro.

- É, Gu... não sei.

- Não sabe o quê? Você ia gostar de ser convidado pra um lugar que as pessoas têm que ser convencidas a te engolir? Imagine você lá num ambiente desse? Ia se sentir bem?

Nós dois olhávamos pra o Bomba, esperando uma resposta.

- Ó, eu vou pegar uma coxinha que eu tô morrendo de fome. Vocês já lancharam, né? – entrou correndo na lanchonete.

Me virei e peguei o meu cigarro. Acendi e traguei, evitando olhar pra ele. Ele pegou o cigarro em seu bolso, acendeu e tragou. Suspirou.

- É foda... é de foder.

- Murilo, olha: vamos conversar direito – passei a mão que estava segurando o cigarro pela testa, e suspirei – não quero criar nenhum caso com isso, não. Na verdade, não tem problema nenhum em eu não ir, eu não ligo pra isso. Eu tô indo lá sempre agora, com esses projetos, a gente dá uma saída, fazemos uma comemoração alternativa... pronto.

- Você não liga, mas eu ligo, Gustavo. Seria importante pra mim. Mas...

- Imagina se não dá certo isso? Sei lá, acontece alguma coisa, acaba estragando a sua festa. Aí é que vai ficar ruim.

- Bom, tá na hora de ir – o Bomba já tinha voltado – tenho que voltar, ainda tenho aula hoje.

Puxei-o pelo braço.

- Mas você me entendeu? – ele apenas me olhava – acho que seria melhor assim.

- Bom, eu te convidei. Queria que você tivesse. Não deu, tudo bem – se virou pra o Bomba – Bomba, não vou fazer mais festa não.

- Porque, caralho?

- Quero não. Muito gasto, e.. perdi a graça. Pronto.

- Murilo, pelo amor de Deus.

Recomeçamos a ladainha. Depois de uns dez minutos de conversa mole, daquelas que não vão pra frente nem pra trás, falei com ele que iria, talvez.

- Tenho só que ver algumas coisas, Murilo.

- Que coisas?

- Eu nem te falei, mas é que eu tô com umas situações lá em casa, chatas, enfim. Preciso ver isso pra ver se vai dar pra ir. Mas não deixa de fazer a tua festa não, pô...

- Ó, velho, quero ver se você não vai...

- Pronto. Vou fazer de tudo pra ir.

Ele me olhou, desconfiado.

- A gente vai se falando, então?

- Sim. Sim, sim.



Cheguei em casa na sexta à tarde, depois do escritório, e encontrei a minha mãe chorando no quarto. Meu coração quase parou. Eu vivia sobressaltado nos últimos dias.

- Que foi? Cadê a Drica?

- Foi para a casa da Mônica.

Ela me contou que, depois da sessão de terapia da tarde, em que a Mônica tinha as levado, na hora de deixá-las em casa, a Adriana, do nada, pediu pra ficar uns dias na casa dela. A minha mãe quis saber por que, afinal de contas tinha até pedido licença da escola pra ficar com ela o dia todo, mas a Drica não quis explicar. Disse só que queria ficar uns dias lá.

- Porque a Drica não quis ficar aqui, Gustavo? Hum? Ela nem gosta daquele marido da Mônica nem nada? O que está se passando na cabeça daquela menina?

- Não sei, mãe. Não sei explicar. A Drica nem é muito ligada da Mônica, é mais agarrada na gente...

Liguei pra lá e conversei com a Drica. Ela disse que estava tudo bem, mas queria se afastar um pouco de casa, na tentativa de diminuir a sensação de estar sendo observada e perseguida. Senti que tinha algo no ar, mas, não insisti. Perguntei se o clima lá tava bom (a gente não ia muito com a cara do meu cunhado mau-caráter, achávamos que ele não tratava bem nem a minha irmã nem as filhas) e ela disse que sim, tava boba até com a simpatia dele. Mandei ela tomar cuidado com essa bondade toda e ela riu.

O fim de semana passou e nos limitamos a ir visitá-la. Ficávamos lá um pouco, ela sempre muito sonolenta e calada; jogávamos um pouco de conversa fora, falando mal dos membros da família ausentes, etc. Antes de ir embora, a minha mãe invariavelmente perguntava à Drica se ela tinha certeza de que não queria voltar, nem se ela comprasse uma pipoca e alugasse tal filme, mas ela não se mostrava disposta. No caminho de volta a D. Estela chorava, eu tentava minimizar dizendo que era bom pra ela, mas não tinha jeito.

- Só mãe é que sabe, Gustavo. Ela estando lá em casa eu coloco o colchão do lado, fico vigiando... Gente, eu não tô dormindo mais, preocupada... Mônica tem as filhas pra cuidar, o trabalho no banco, não tem como dar conta disso...

- Não fica assim. Isso tudo vai passar. Enxuga esse rosto, toma. Vamos esperar, mãe, pelo menos os remédios fazerem efeito. Quem sabe.



O Daniel me ligou no domingo à noite. Estava em Itaberaba, queria saber de mim, nunca mais tínhamos nos falado.

- Quando é que você vem aqui, hein, Dan?

- Pô, brow... eu tava indo nessa sexta próxima, né, pra o aniversário do Murilo, mas ele me ligou dizendo que não vai ter mais festa... aí, não sei. Se você tiver por aí, a gente pode...

- Como é? Não vai ter mais? Porque?

- Não sei, Gu. Ele me disse que desanimou, não é todo mundo que vai poder ir, disse até que você também não iria.

- Eu fiquei de ver, na verdade.

- Mas, porque não ir?

- Ah... eu tô com uns problemas aqui em casa, então só posso resolver quando realmente estiver mais próximo... hoje ainda é domingo, daqui pra sexta eu veria, né?

- É coisa grave?

- É... não sei. Lembra daquele assalto? Pois então, a Drica ainda tá muito mexida com isso, enfim. Tá meio mal. E também pra te dizer a verdade, eu não sei como seria isso. Você lembra daquela confusão toda, né Dan? Não sei se seria uma boa ideia.

- Eu sei, ele me falou que você tava enrolando ele. Bom, de qualquer forma, ele já desistiu, então... a gente pode marcar alguma outra coisa, posso ir pra Feira...



A casa estava realmente vazia sem a Adriana, e olhe que era um ovo. Percebi isso quando fui até a sala ligar para o Murilo do telefone fixo.

- Você falou, falou aí, mas não conseguiu até agora explicar porque desistiu! Tava tão empolgado com esse evento, Lilo...

- Gustavo, você mesmo falou que não viria. Sei lá, não sei se vai dar certo isso.

- Confirme, meu filho, as pessoas que irão. Eu tenho certeza que vai bombar!

- Hum. Não. Vamos deixar para uma próxima.

Suspirei e tentei pensar rápido, tomar uma decisão. Falei:

- Poxa... agora que eu tinha resolvido minhas parada aqui... tava até combinando com o Dan e tudo..

- Você vem??

- Iria, né!

- Você viria?

- Ah, eu falei contigo que ia ver, não foi? Então, acho que dá pra ir, sim. Seria no sábado?

- É... seria...

- Eu combinaria de ir logo na sexta com o Daniel, assim que ele aportasse em Feira, a gente já começava a comemoração, hahaha! Te ajudava também aí na arrumação, né?

- É... pode ser. Era uma boa.

- Ah, por falar nisso! Ó, vou contribuir com duas caixas de cerveja!

- Êta porra! Sério?

- Sim! Vamos molhar as palavras, Lilo... vamo ficar bêbooo!

- Kkkk! Safado! Agora que você vem me animar, né? Depois de me esculhambar todo...

- Ah, para de ser dramático! Vai logo arrumar essa festa! Quero comer e beber às suas custas!

- Kkk! Tá certo...

- E ainda vou mandar sua irmã lavar o meu prato! Hein?

- Tá bom... rss. Cara, você vem mesmo, né?

- Vou, pô. Quer dizer, se tiver festa, né? Bestão.

- Tá, eu vou ver. Eu vou ver, não, essa porra! Vai ter sim!

- Êeeeeee! U-huuu!

- Amanhã eu vejo os detalhes todos, vou te ligar viu? É que a gente pode esquecer de...

Pronto, o menino grande tinha voltado, eufórico, falando pelos cotovelos na velocidade do pensamento.

E eu... falei que iria, mas, só pra que ele se animasse e fizesse a festa que tanto falava. No fundo, a incerteza em mim continuava. Se a Drica não melhorasse, eu não sabia ainda como ia ser aquilo. Também não tinha certeza de como iria ser a recepção à minha pessoa, naquele ambiente inóspito.

Fui deitar pedindo ao universo que me desse a chance de ir e que corresse tudo bem.

Eu só queria estar perto dele no dia do seu aniversário.



A palavra que poderia resumir a semana que passou é angústia.

Eu conversava com a Mônica todos os dias, pedindo relatos do comportamento da Drica. Ela me falava coisas, às vezes boas, às vezes ruins, pois os pensamentos suicidas ainda não tinham sumido completamente. Ao mesmo tempo o telefone não parava, o Murilo, ou o Dan, ou o Edu, combinando detalhes da festa. A gente já aproveitava por antecedência.

Tarde de sexta. O Daniel já estaria a caminho, pois tínhamos combinado de ir naquela noite ainda.

Enquanto eu tomava coragem pra falar com a minha mãe que iria pra Camaçari e só voltava domingo, a Drica me ligou.

Estava super angustiada, chorou muito enquanto falava. Depois de muita conversa, ela me pediu para ir buscá-la na Mônica.

O Daniel me ligou, já estava na rodoviária de Feira e queria saber se me esperava lá mesmo ou ia pra casa.

- Dan... olha.

- Que foi?

- Eu acho que eu não vou poder ir hoje, cara.

- Pô, velho! Sério?

- É que surgiram umas coisas aqui, um imprevistos...

- Pô, brow, a galera tá aqui louca me ligando, pra a gente fazer a bagunça lá no Peixotinho...

-Ô, Dan. Não dá. Eu não consegui concluir um projeto aqui, e eu tenho que entregar.

- Gustavo... fala aí... Você vai mesmo?

- Pra a festa?

- Sim! Cara...

- Eu vou, pô. Vou, sim. Só preciso ficar aqui hoje à noite, mas amanhã já me resolvo e desço, antes de começar até.

- Bom. Então, tá. Olha, eu já tô na rodoviária mesmo, vou pegar o ônibus pra lá. Vou ver o povo da república, ver se o Murilo precisa de alguma coisa...

- Hum, é. Pode ser.

- Aí a gente se encontra lá, né? Amanhã?

- Sim. Explica ao Murilo. Amanhã eu tô aí.



A minha mãe ficou com outra cara, depois que eu entrei com a Drica e as suas sacolas em casa. A minha irmã, no entanto, era o desânimo em pessoa.

Fui no supermercado, comprei algumas comidas que ela gostava, aluguei uns filmes bons.

Fui ao meu guarda-roupa e pesquisei o figurino do outro dia. Roupa de churrasco.

Eu, a minha mãe e a Drica conversamos até mais tarde, tentando animá-la.

Fui até o quarto e respondi a mensagem do Dan, que dizia que lá estava ótimo e que o Murilo estava super ansioso.

Perguntei à Drica se estava tudo bem antes de dormir, ela me respondeu que sim. Me pediu que fizéssemos alguma coisa no sábado, para ela tentar se distrair.

Fiquei sem saber o que dizer.



As quatro da manhã acordei com a Adriana andando pela casa. Levantei e fui até ela, que estava de novo chorando, e a abracei.

Depois de muito insistir, ela me confidenciou o motivo de toda a sua angústia.

- Eu não paro de ouvir vozes. Eu não quero mais sair de casa. Tem uma pessoa que me persegue. De carro. Ela me olha e dá risada. Eu não aguento mais. Ela está lá fora, olhando pra mim.

Tremi da cabeça aos pés. Fui até a janela, hesitante, e olhei por trás da cortina. Não tinha ninguém.

- Drica, relaxa, você tá aqui dentro, protegida...

- Não sei. Não confio mais em ninguém. Por isso que eu não quis ficar aqui. Eu não tô conseguindo mais organizar meus pensamentos, eles me mandam eu me matar. Quero me matar.

Abracei-a somente, e assim esperei que ela dormisse.



Às dez da manhã do sábado eu já tinha conseguido uma psicóloga pra a Drica, amiga de uma colega da minha mãe, que aceitou atender em sua casa mesmo, visto a urgência. Ela me falou que estava melhor, e fomos pra casa.

O Daniel me ligou logo depois da uma da tarde.

- Brow! Enrolado! Não vem, né? Kkk!

Demorei muito pra responder.

- Dan, eu não vou.



Silêncio.

- Sério? Cara, tu já falou com ele?

- Ainda não.

- Ó, pô, ainda tá cedo, se tu sair daí agora e chegar aqui duas horas, tá de boa. A galera ainda tá chegando mesmo. Comparando com o casamento da Gil, tá ótimo chegar duas horas. Kkk!

- Rss, é, mas dessa vez não vai dar mesmo. Ele tá aí perto de tu?

- Tá dentro de casa, foi se arrumar, eu acho – ouvi a voz dele ao fundo, enquanto o meu coração apertava e ficava do tamanho de uma noz – Murilo! Murilo! Gustavo.

Ele pegou o fone, rindo.

- Caaara, cadê você, hein? Kkkk, eu fiz uma aposta aqui, que você não ia chegar no horário! Eu conheeço o meu gado...

- Lilo, parabéns!!

- Ah, brigado... rsss. Mas eu quero pessoalmente isso. Cê tá aonde?

- Eu... tô em casa, em Feira.

- Poooorra! Vai sair daí que horas, hein? Quer ver que nem tomou banho?

- É isso, o que eu queria te dizer... Não vai dar pra eu ir, Lilo. É que...

A minha garganta travou e eu só pude ouvir o silêncio do outro lado.

- Fala sério, porra...

- É que... na verdade, não é nem questão de trabalho nem nada. É uma coisa complicada, um problema familiar que eu tô passando.

- Poxa... sério, broder?

- Eu não tinha te falado nada antes, porque... enfim, acho que... vergonha, também eu sou... um pouco fechado pra isso. A minha irmã está doente, ela tá num processo traumático, acho que por conta do assalto que ela sofreu... e, enfim, logo hoje ela acordou péssima, eu não vou conseguir ir...

- Hum...

- ...embora eu esteja morrendo de vontade.

- Sei.

- Lilo? Não fica pensando que...

- Não, relaxa. Se é por problema de saúde, de família, eu tenho que entender, né, bicho? Família não tem jeito. É só... porque eu tava esperando já que você aparecesse mesmo, né?

- É, e eu já tinha até arrumado as minhas coisas, e tudo.

- Hum... – a voz falhada, de quem chora.

Meu peito tava cheio, transbordando.

- Murilo, mas deixa eu te falar. Acho que a distância física, nesse momento, não pode impedir de eu te dizer que eu te... te gosto muito, te admiro muito, que você se tornou uma pessoa, pra mim, muito, muito especial. Queria muito estar aí pra te dizer isso num abraço, mas...

A voz de quem tentava engolir o choro era perceptível.

- Pô, bicho, eu estava esperando aqui pra te falar que... eu queria aproveitar o momento de hoje pra te dizer que... você é uma das pessoas mais importantes da minha vida. Você foi uma das pessoas, quer dizer, você foi a pessoa que mais fez diferença na minha vida, que me faz mudar, querer ser melhor, que... nesse último ano, me fez...

Ficamos em silêncio. Ouvi-lo fungar, mas não tinha certeza se era choro.

- Desculpa...

- Não, não... Você deve ter as suas razões.

- Feliz aniversário. Meus parabéns. Tudo de bom, tudo de bom.

- Brigado.

Apertei o botão vermelho do celular e me apoiei na parede. Queria respirar, a lágrima queria cair. Botei a mão no peito. Eu tinha uma faca cravada ao desligar o telefone.



A sensação ruim foi diminuindo com o passar do sábado. Assisti um filme com a Drica e com a minha mãe, a Mirelle esteve lá, o que animou bastante, fomos na esquina tomar sorvete, mas voltamos logo, porque a minha irmã estava desconfortável em ficar na rua.

No meio da tarde recebi uma mensagem do Daniel: "Cara, bicho tá pegando..." Eu entendi então que a festa já tava pegando fogo, o que seria bom, se o meu menino grande estivesse se divertindo, eu ficava mais aliviado.

À noite me ligaram. Por volta de dez, onze. Estavam no Peixotinho, um barulho, não entendi nada do que falavam. Só vi que estavam, sim, muito bêbados, o telefone passava de mão em mão, alguém proferia algo ininteligível e eu fingia que entendia, dando risada.



Dan me ligou logo no início da tarde, no domingo. Tinha acabado de chegar na rodoviária, eu estava ainda terminando meu almoço. Queria sair comigo. Eu estava com a Mirelle e a Rose em casa, falei com ele que topava se fosse algo mais rápido e perto, e ele não se opôs.

Quando ele apareceu no portão, as meninas gritaram. Daniel estava um bagaço! Cabelos desgrenhados, a cara inchada e duas olheiras enormes, a roupa toda amassada.

- Gente, veio da guerra? – Rose arregalou o olho.

- É, foi quase isso! Rsss! Tô praticamente sem dormir, meninas... – respondeu ele, abrindo o portão e entrando – mas, tô aqui, querendo saber pra onde a gente vai! Hehehe!

Mirelle saiu correndo pra encontrá-lo na porta.

- Gente, é essa Miséria que vai sair do lado da gente, é? Daniel, meu filho, o que é isso? Olha pra esse pé, gente? Tá podre!

De fato, ele calçava havaianas, e os pés estavam pretos. Ele argumentou que ficou na rua direto com os meninos, não deu tempo nem de se trocar nem de tomar banho. Aí começou uma algazarra na frente de casa, ele corria atrás das meninas querendo abraçar, e elas se saíam. "Sai, tô cheirosinha, não encosta, não!" Mirelle puxou Daniel pra uma torneira de jardim próxima, chamou a Drica, que já estava por perto dando risada também (ela adorava as palhaçadas da Mi) e pediu uma escova ou uma bucha.

- AAAAAi, vai arrancar meu pé! Carai!

Mirelle esfregava os pés do Dan embaixo da torneira.

- Vai sair assim comigo não, meu filho! Não mesmo! Chega o outro pé! Eu toda gatinha, e tu com esse pé pôde! Deus é mais! Pega a toalha!

Só assim pudemos dar uma saidinha. Falei com a Drica que voltava logo.



Depois de conversarmos muita bobagem, para não perder o costume nem a tradição, o Daniel tocou no assunto do aniversário, enquanto as meninas batiam papo entre elas.

- Brow, tu recebeu minha mensagem ontem de tarde?

- Ah, recebi, sim. Rss. O bicho pegou, né? Eu sabia que ia bombar...

- Hum? Bombar o que? Eu falei que o bicho tava pegando, mas foi em outro sentido, pô!

- Como assim? Teve baixaria?

- Não. Não teve baixaria, não teve aniversariante, quase que não teve nem festa.

- Tô boiando.

- Simplesmente o Murilo deixou os convidados lá fora e se trancou no quarto.



- Me explica direito, Dan...

- Depois que ele falou contigo no celular, ele me devolveu e disse que ia tomar um banho, pra se arrumar e tal.

- Sim.

- A gente sentou numa mesa lá, eu o Edu, o Diego, Yuri, enfim, a galera. Ficamos conversando, e tal, me distraí até. Cara, quando eu dei por mim, foi quando o Edu perguntou por ele, já tinha mais de uma hora, e ele lá, não tinha saído do banho!

- Eu hein!

- Entrei lá, mas na verdade, ele estava trancado no quarto. Perguntei a uma moça que tava lá dentro e ela me falou que ele avisou que ia deitar, que não queria ser incomodado.

- O que??

- Éeee! Voltei pra a mesa e falei com os meninos. Cara, a gente ficou com uma cara de cu da porra, na mesa, todo mundo se olhando. Imagine aí, os convidado tudo lá e o dono da festa trancado?

- Ah... então, quer dizer que o bicho estar pegando, era isso...

- Claro! Quando te mandei a mensagem, já tinha ido lá no quarto, já tinha batido na porta, ele não tinha respondido nada! O Edu também foi, o Diego, só depois de muita insistência que ele respondeu que tava com dor de cabeça, que não ia sair, não.

- Meu Deus, Dan, será possível isso? E a Priscila, porque não foi lá?

- Ela não foi pra a festa dele, pô.

- Sério que ela não foi?

- Não. Quando a gente já tava indo embora, fim de tarde praticamente, voltamos lá e ele abriu a porta. Tava largado na cama, a cara super inchada, sei lá, parecendo que chorou... porra... situação do caralho. Aí a gente tentou animar, que a carne tava boa, que a cerveja tava gelada, que eu tinha vindo de longe pra o niver dele...

- Gente...

- Ele nem queria conversa no início. Depois foi levantando, sentou na cama, aí lavou a cara, mesmo assim resistente, botou uma roupa e saiu pra a varanda.

Eu não conseguia disfarçar minha surpresa.

- Depoooois que ele veio se animar, aí começamos a beber, quando a cerveja acabou fomos pro Peixotinho... mas isso já de noite.

- Meu. Deus. Do Céu.

Dan se virou pra as meninas.

- E vocês aí, que tanto conversam? Animadas...

- Ah, meu filho, nem queira saber! – Rose riu, enigmática.

- Olha só! Dá uma pista aí, Mirelle...

Elas se olharam e riram.

- Ah, xô ver... uma pista... vinte centímetros!

Rose se engasgou no gole da cerveja, rimos muito.

- E o Gu, porque tá com essa cara assustada?

- Daniel me contando umas coisas aqui...

- Ah, fala aí, Dan...

Ele sorveu um gole e foi fazendo pose de contador.

- Vocês já viram casamento sem lua de mel porque o noivo ficou com ciúme dos convidados?

- Não!

- E aniversário que aniversariante não aparece?

Elas se olharam.

- Gente, que eventos são esses que vocês estão indo? Menino, é bom selecionar, viu?

O Dan resumiu a história pra elas, que ficaram estupefatas. Virei pra ele e perguntei:

- Mas o que foi que aconteceu, Dan? Porque tu acha que ele fez isso?

O Daniel olhou pra a minha cara e respondeu:

- Não sei. Não tenho a mínima ideia.

Com uma feição que dizia justamente o contrário.



Eu estava deitado na minha cama, fim de noite de domingo, olhos esbugalhados. O sono não viria, eu já sabia disso. Minha cabeça estava cheia e eu não sabia o que fazer pra sossegar.

Ele tinha feito aquilo porque EU NÃO FUI?

No início, logo quando esse pensamento veio à tona, tentei espantar, porque achei que era muita pretensão minha acreditar nisso. Mas, passei a noite toda repassando os acontecimentos, e não via como não pensar que aquilo fosse, no mínimo, plausível.

Me virava de um lado pro outro.

Ai, estava sentindo uma dor, um pesar, insuportável. Sentia dali a tristeza do meu amigo/amor.

Muita coisa tava acontecendo e fugindo do meu controle racional. Aquele disse-me-disse, a minha paixão, as coisas com a minha irmã, ele...

Meu peito novamente começou a doer aquela dor que eu já conhecia. A dor de querer e não conseguir chorar.

Enfiei a cabeça no travesseiro e abafei um grito.



A segunda-feira passou, e a terça também, e eu só conseguia pensar no Murilo.
Tinha projeto para entregar à Valquíria na quinta, e nada de sair algo que preste.

As lembranças vinham a todo vapor.



O dia em que ele quis dormir na minha casa porque estava sozinho.

As vezes em que ele reclamava a minha atenção.

O notório ciúme dele comigo, a ponto de todo mundo reparar.

Aquele abraço do qual eu nunca esqueci, no meio da rua, de madrugada, quando ele rejeitou a companhia da noiva pra ficar comigo.

Todas as vezes em que ele preferia dormir num bicama duro, que não cabia nem as suas canelas, em vez de ir pra a sua casa e sua cama confortável.

O fim de semana que ele quis me levar.

O seu sorriso de satisfação toda vez que eu cuidava dele, fazendo comida, servindo sanduíche, dando comida na boca, arrumando seu cabelo, aquela felicidade em ser cuidado por mim em detalhes tão vulgares do dia a dia.

A curiosidade dele sobre mim.



Não, não tinha mais como eu fugir daquilo. Era uma realidade que insistia em se mostrar e que eu insistia em negar, em não ver. Até então eu já tinha plena consciência do meu sentimento, mas tinha também certeza de não ser correspondido. Era uma redoma que me mantinha confortável, afinal de contas, o amor platônico não exige nada de quem ama, apenas a passividade de esperar e sentir, sozinho.

Os últimos acontecimentos me forçavam a enxergar que o Murilo podia, sim, sentir também algo por mim, tão ou mais forte do que o que eu nutria por ele.

E eu, sempre tão objetivo, tão prático e descolado, me tornei um covarde perante isso tudo. Nossa, quantas chances, quantas situações e oportunidades passaram por nós, se jogando na nossa frente, quase gritando para serem percebidas! O que custava um mínimo de ousadia, de loucura sincera, de verdade? O preço a pagar seria tão alto assim?

O preço a pagar...

Bom, caso todas essas conjecturas sejam inválidas, o que vai acontecer é... eu tomar um "não" bem no meio da minha cara, me recolher à minha insignificância e deixar tudo passar. Mas aí eu já saberia como lidar, afinal as cartas já estariam na mesa e eu trabalharia com certezas, e não com elucubrações que só faziam me azucrinar o juízo. Voltaria ao meu Plano A de deixá-lo em paz, mas até isso seria mais fácil pra mim.

Eu já estava cheio daquilo. Aquele sentimento me rondava há muito tempo exigindo ser descortinado, e eu tinha uma obrigação comigo mesmo de colocar isso pra fora. Não era mais admissível continuar.

Isso, sim, me deixou mais leve, e eu já sabia o que fazer.



19 de dezembro de 2007.

Nessa quarta-feira liguei para a Valquíria e informei que o projeto estaria pronto no dia seguinte, iria imprimir e levar. Ela assentiu e adorou a ideia, afinal cairia no mesmo dia da confraternização de fim de ano, o amigo oculto da empresa, ela fazia questão que eu participasse. Afinal, eu trabalhei lá até o mês de novembro, ora! Rss. Concordei e já comecei a me mexer.

Liguei para o Edu. Ele confirmou que iria ter a confraternização, mas que não poderia participar, pois teria um seminário na faculdade no mesmo horário.

- Pô, mas se quiser vir, tranquilo, você dorme lá em casa. Assim que eu chegar da facu eu te ligo. Não tem grilo.

- Ah, pô, relaxa. Eu, na verdade, acho que vou dormir lá no Murilo, ele vai também, né?

- Sim!

- Então, fica melhor. Já falei com ele, tá tudo certo.



Liguei pra o Murilo. Conversamos muito, ri, contei piada, perguntei se ele tava bem e disse que tava com saudade. Falamos da confraternização e eu falei que queria ir.

- Quero ir, por que a Valquíria me chamou e porque eu tô doido pra te ver.

- É?

- Quero te dar esse abraço que tá aqui guardado, quero comemorar seu aniversário, quero matar a saudade, pode?

- Rss, tá. Pode, sim.

- Vem cá, posso te pedir uma coisa?

- O que?

- O Edu me disse que não vai participar do negócio aí. Eu ia dormir lá, mas assim fica ruim. Eu posso dormir na tua casa?

- Claro, pô! Claro que sim!

- Eu queria também... assim... depois da confraternização... eu... queria conversar contigo.

- Comigo? É alguma coisa...

- Não, relaxa! Nada assim, sério. Só queria... te falar umas paradas. Pode ser depois que terminar, a gente vai...

- Tudo bem, a gente sempre estica mesmo, né? Rss, tranquilo, pô. Você chega que horas?

- Devo chegar no início da tarde, mas vou ter uma reunião com a Valquíria, aí só me libero no início da noite. Se você quiser eu passo em tua casa e te pego, aí a gente vai junto.

- Ah, por mim tá ótimo assim.



Fui no salão de beleza.

- Sabe qual é o problema mesmo desse cabelo, se é que ainda podemos chamar assim, Dona Ceiça?

- Kkk, diga, meu filho, qual é?

- É essa ondulação aqui, ó! Tá vendo? Viu?

- Aonde, menino? Tira a mão aí.

- Olha só. Eu parto no meio, esse lado fica certo, e o outro fica com uma onda, assim, ó lá!

- kkkk, ah, mas isso é do formato do cabelo! Você sempre teve isso porque sua mãe partia de lado sempre, agora que você tá partindo no meio!

- Ah, mas fica ruim! Fica uma ponta, parecendo uma antena, sei lá. Dá um jeito, aí! Mas não corta muito, não. Aquele mesmo esquema de sempre, deixa alto aqui e baixo dos lados.



Eu tinha uma calça nova mais alinhada que nem tinha usado muito, então ele nunca tinha visto. Era mais apertada do que as outras, um jeans escuro, mas com umas manchas mais claras. Faltava uma blusa. Fui no shopping ver alguma coisa. Tinha que ser mais jogadinha, fora de cogitação usar baby look e chegar lá todo apertado. Ia ficar parecendo a Lacraia. Imaginei entrar no bar e todo mundo evacuar, com medo da visão dantesca.

Comprei a blusa e fui pra casa. Enterrei a cabeça no projeto, virei a noite de quarta pra quinta para finalizar. Na manhã seguinte resolvi milhões de coisas antes de pegar a estrada, imprimi os desenhos, assinei e arrumei. Fui pra casa e tomei banho, peguei a minha sacola, fiz a barba a ponto de quase sair a epiderme, e joguei a minha roupa nova. Meu coração estava entre tranquilo e nervoso.

Tudo o que eu queria era aprender a me entregar pra aquele cara.

Me olhei no espelho e me perguntei se realmente estava preparado para o que estava por vir.


...


https://youtu.be/tcWvbOnc1o8


À noite sonhei contigo,

E não tava dormindo!

Justo ao contrário,

Estava bem desperto...

Sonhei que não fazia

O menor esforço,

Para que te entregasses.

Em ti, já estava imerso...

Que lindo que é sonhar

Sonhar não custa nada

Sonhar e nada mais

De olhos bem abertos

Que lindo que é sonhar

E não te custa nada mais que tempo...

Sofrer com tanta angústia

Por coisas tão pequenas

Gastar essa energia

Assim não vale à pena

Quem dera me livrar

Pra sempre de mim mesmo!

só me reencontrar

Lá no teu doce abismo...


PaulaToller - À Noite Sonhei Contigo

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