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- O nome completo da senhora, é Ana Ferreira...

- ...da Silva. Isso.

- Idade?

- 72 anos.

- O seu núcleo familiar é composto, então, além da senhora, do seu marido...

- Sim, e meu filho.

- Qual a idade dele?

- Ele tem... ai meu Senhor Jesus...

Rimos. Estávamos eu, a Solange, e esta senhora em sua sala de estar, localizada num bairro humilde de Camaçari.

Nesta manhã a Solange havia me ligado com aquele jeito sutil que lhe é característico, me alertando: "olha, filho, a gente vai ter que ir ali, viu? Tua equipe fez uma merda naquela implantação de esgoto que tu toma conta, é bom a gente ir logo, antes que gere uma reclamação formal!" Fomos lá. A praxe, nesses casos, é ir o engenheiro com a assistente social responsável pelo empreendimento, que repassa o cadastro da família, e eu vistorio pra verificar a procedência da reclamação.

De fato, nesse caso, os operários haviam falhado e acabou me passando despercebido. Tratava-se de uma obra de esgotamento sanitário neste bairro, em que eu era o responsável, e consistia em assentar a rede coletora com os PV's na rua e fazer as ligações das instalações dos esgotos das residências a esta rede. Ocorre que a casa desta senhora estava num nível muito mais alto que a rua. Então, alguma mente brilhante dentre os operários definiu que, em vez de ligarmos os tubos da pia e do banheiro e enterrá-los no espaço livre da casa, era melhor sair com eles de forma aérea, grudados e expostos na parede lateral até chegar na varanda, e, mais uma vez, em vez de fazer a caixa de esgoto enterrada, porque não deixá-la, tipo, à vista, com setenta centímetros de altura do chão? Eu não sabia se ria ou se chorava quando, chegando à casa desta mulher, encontrei-a sentada em cima desta caixa de concreto, observando o cair da tarde.

- Mas, como é que pode, dona Ana, não saber a idade do menino?

- Ah, minha filha, são três, e eu já tô velha, pra ficar lembrando assim, rápido. Vinte e sete! Faz vinte e oito final de ano.

- Ele trabalha?

- Ele estuda. Faz faculdade à noite e trabalha de mototáxi.

- Hum. Ótimo – A Solange preenchia a ficha – Bom, dona Ana, eu trouxe aqui o engenheiro responsável pela obra, o Dr. Gustavo – a velha me olhou, procurando o doutor – para ele dar uma olhadinha e ver o que a gente pode fazer pra melhorar aí, o serviço, e não comprometer a estética da sua casa.

Me dirigi ao fundos da casa e percorri a sua lateral, tirei fotos e fiz umas anotações. Seria relativamente fácil resolver o problema, levaria um ou dois dias.

Ouvi um barulho de moto na frente da casa e olhei. O rapaz estava estacionando na varanda, próximo à caixinha-tamburete da mãe. Na verdade só vi o vulto passar e adentrar a casa. Jaqueta preta e calça jeans, trajes típicos de motociclista mesmo. Estava de capacete. Terminei meu trabalho na parte externa enquanto ouvia a Solange conversando com eles na sala, depois fui até lá e chamei a colega para irmos, mas, ela estava apenas com a mulher. Nos despedimos e expliquei que iríamos refazer o serviço, para a velha ficar despreocupada, mas ela, resignada, nem se mostrou interessada em qualquer mudança.

Entramos no carro e estava explicando à Solange o problema. Por impulso, olhei de volta para o imóvel e vi a sombra do rosto do rapaz atrás do vidro da janela do quarto frontal, nos observando.



Que eu contei, nos meus últimos quinze dias em Camaçari, foram umas dezessete despedidas ao todo, então, vou apenas detalhar algumas delas.

Isso ocorreu porque consideramos que seria injusto, em apenas um ou dois lugares, me despedir, já que as nossas histórias se espalhavam pelos quatro cantos de Camaçari. E também porque tudo era motivo pra tomar uma cerveja.

Esse dia em específico estávamos no Peixotinho, eu, o Edu, a Gilda, a Solange e mais um punhado. Logo depois o Murilo chegou da faculdade e prosseguimos, testando a capacidade do nosso organismo de receber álcool. E de falar besteira.

- Vocês falam que homem sofre – a Gilda contribuía ao assunto da mesa de "quem é o sexo frágil" – mas eu quero ver vocês aguentarem parir, ou, não! Nem isso! – tomou um gole e levantou o dedo – Fazer decote!

- Aaaah, eu queria ver! – a Solange bateu palmas, esfuziante, e bêbada.

- Decote?? – o Murilo franziu a sobrancelha.

- Decote, pô – eu falei, e ele ainda não tinha se situado – raspar o xico!

Todo mundo riu. Não sei quem era mais lerdo, o Murilo ou o Diego.

- Raspar, não, querido, depilar... – a Gilda fez o gesto de arrancar os pelos na cera quente e fizemos cara feia – aí, tá vendo? Não aguentam nada...

- Ah, mas peraê – eu intervi – eu pretendo fazer a minha barba na cera quente, e aí? No rosto!

- Meu filho, você não vai aguentar... Olha, Sol, você acha?

- Com certeza não, Gil, esses meninos são tudo frouxo. E outra: rosto é uma coisa, ainda assim é melhor do que lá... no...

- No xibiu!! Aff, Sol, quanto pudor! Kkk! – Gilda sempre despudorada – Pois é, também acho! Tem áreas muito mais sensíveis, filho... exemplo: eu depilo o meu rabo sem problema, não dói tanto – tomou um gole, ponderando – ... o cu, não, não dói... afff, mas quando chega a hora do xibiu, nossa, mãe!

A Solange riu, com a mão na cara.

- Mas é isso mesmo, cara – Edu completou a baixaria – tem que fazer. Porque se raspar, arranha a gente – tomou um gole e olhou pra a Gilda – você mesmo, nem me venha hoje se não estiver de bigodinho de Hitler, viu, senão não vai ter meu corpo de novo!

A galera toda berrou e Gilda encheu o Edu de tapa, gritando: "aondeeee que você me aguenta, filho?! Eu sou muita areia pro seu Fiorino!"



- Gente, o que a gente faz pra o Gustavinho não ir embora, hein?

A Gilda levantou o assunto depois de conversarmos sobre um bocado de coisa. De repente me dei conta que estava indo. Que não ia, por exemplo, ver o Murilo pelo menos uma vez por dia todo dia. Instintivamente olhei pra ele e me pareceu que ele pensava a mesma coisa, pois ele me olhava, e desviou o rosto pra baixo, enfiando a cara no copo.

- Você que é a mangangona, pô – Edu espetou – faz uma proposta milionária aí!

- Ô gente, eu não posso, já expliquei pra ele... a nossa estrutura de salários é muito apertadinha, se eu acatasse a proposta deles de receber o piso de engenheiro, por exemplo, eles iam receber mais que a diretora Valquíria. Isso ia causar uma reação em cadeia de todos os funcionários...

- Relaxa, pô – eu apertei a sua mão – eu entendi direitinho. Vi que boa vontade não faltou da parte de vocês.

- E a gente tentou, Gu, até contatar a regional para rever isso, mas... enfim. Não deu.

- Tudo bem.

- Ah, mas ficaaaa...

- Kkkk!

- Fica aí, a gente rasga essa rescisão e finge que nada aconteceu! Pronto! – Gilda era louca.

- Não, porra, tá doida?

- Olha, a gente combina uma carga horária menor, faz um acordo interno, aí você continua com os seus projetos extras, tira folga quando precisar... hein?

Parei um pouco. Pensei.

- Não dá, Gil, por outro lado a necessidade de vocês é enorme! Eu, aqui, o dia todo, às vezes saio sete, oito da noite, porque não dou conta! Imagine? Seria injusto.

- Ah, não...

- Mas, relaxa. A gente continua amigo, é o que importa.

Ela parou, tomou um gole e me fitou.

- Mas tu vai fazer uma falta, menino... ah, se vai!

Do canto do olho percebi que o Murilo me olhava.



Enfiei o carro na minha varanda e desci. O Murilo vinha logo atrás em sua moto, e a Gil e a Sol, no carro da primeira. Edu ficou pela rua.

Foi muito louco, às três da manhã, vê-las chegando, quase cantando pneu, com o som do carro em volume alto, as duas super bêbadas. Aliás, todo mundo. O carro tocava Legião Urbana. Gil desceu do carro e apontou pra mim, gritando "Gu, olha isso, é pra ti! Olha! 'Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou... mas tenho muito tempo... temos todo o tempo do mundo!!'" Entrou no carro, aumentou o volume e saiu novamente, me abraçando. Renato Russo cantava e nós acompanhamos: "Então me abraça forte, e diz mais uma vez que já estamos... distantes... de tudo..."

- Nosso tempo junto foi maravilhoso, Gu, muito obrigado...

Ainda continuávamos abraçados.

- Foi, não, está sendo, Gil... – ela estava com os olhos marejados – olha o homem aí cantando: "temos nosso próprio tempoooo!"

A Sol quis se juntar a nós e nos enlaçou. Puxei o Murilo e fizemos uma rodinha de abraço, pulando e gritando no meio da rua.

- O que foi escondido é o que se escondeu! E o que foi prometido ninguém prometeu! Nem foi tempo perdidooooo!

O Di saiu na porta da rua de cueca samba canção, de cara inchada, e assustado. Zoião estava logo atrás. Ficaram brancos ao ver a cena, todo mundo berrando, rindo, chorando. Corri até eles e os abracei.

- Somos tão joooooooovens!!! Tão Jooooveeeens!!

- Que desgraça é essa, velho? Kkkkkkkk! Ó lá, a diretora tá loucona! Kkkkk!

- Tão jooooveeeens!

A gente pulou junto, os três, e o Di falava em como é que ia ficar essa república sem a confusão noturna que eu provocava. E percebi que eu ia sentir falta deles também, inclusive do Zoião folgado que roubava minha comida, desarrumava a casa e deixava de pagar as contas.

A Gil gargalhou e apontou pro Di:

- Di! Você tá só de cuecaaa! Olha o pinto dele balançando, gente!!! Kkkkkkk!

Todo mundo riu e ele instintivamente botou a mão na frente, vermelho.

- Que porra é essa, Gil? Fiquei com vergonha agora, hahaha!

- Larga de besteira e vai buscar alguma coisa nessa casa pra a gente beber!

- O que? Quer um suco, uma água!

- Porra nenhuma! Quero áaalcooolllll!!!!!!

- Kkkkk!

- Fica ai, gata, vai não...

A Gil me abraçava, se despedindo. Quatro da manhã.

- Não posso, meu amor... Minha mãe tá só em casa, eu fico preocupada. E depois, eu vou dormir aonde aí, hein? Kkkk! Só tem as camas de vocês! – eu pisquei o olho pra ela, que me devolveu com um tapa leve na cara – ah, descarado!

Os meninos protestaram, gritaram, enquanto ela entrava no carro, dava partida e sumia na rua, ziguezagueando e cantando pneu. A Solange chegou na varanda, fechando o zíper da calça. Estava no banheiro quando a Gil partiu.

- Gil se mandou! – o Di falou com ela – não sei o que houve, do nada, ela deu na cabeça de ir embora. Ficou meio triste, sei lá...

- Ô gente, é que ela tá passando por uma barra... – a Sol estava revirando os olhos de tão bêbada – depois que o pai morreu, ela tá só com a mãe, que tá doente, enfim... Ela tá passando por uma situação muito... difiíiicil....

Todo mundo se olhou e caiu na risada, porque a Sol tava com dificuldade em falar. Ela tava, devido ao álcool, com uma embolação na voz que tornava inaudível sua fala, e a última palavra, difíiiicil, quase não saiu.

- Kkkk, êta porra! Tá difícil mesmo, né Sol!

- Puta que pariu! KKkkk!

- A mulher travou! – o Di nos abraçou.

A Sol encostou em nós, rindo. Depois arregalou o olho e gritou, abrindo os braços:

- Puta merda! A Gil me largou aqui! Como é que eu vou embora? Filha da puta!

Novo ataque de risos.



Solange desmaiou no bicama da sala e eu caí no meu quarto, deixando ver o mundo rodar. Ainda ouvi ao longe as vozes do Murilo e do Di, ao que parece, arrumando um pouco a bagunça. Depois despertei. No meio da minha sonolência, de repente lembrei dele ter falado comigo, algo como "vou me virar por aqui mesmo, na sala..."

Levantei e fui conferir. Os dois se espremiam na peça de 60x1,80. A Solange encostada na parede e o Murilo de costas pra ela, quase caindo. Me aproximei e peguei em seu ombro.

- Lilo, vai ficar aí mesmo?

Ele abriu os olhos, preguiçoso.

- Fazer o que, né?

- Vem pra o quarto, pô... a gente divide a cama, que é maior.

- Não, pô, relaxa. Não vou abusar. Fica apertado pra você.

- Hum. Então, tá.

Fui até o banheiro, fiz xixi e deitei na cama de novo. Depois levantei, peguei o meu colchão e fui até a sala. Coloquei ao lado do bicama, para que pudéssemos dividir os três o espaço.

A Solange abriu os olhos, se virando pra nós.

- Gente, o que é isso aí?

- Tô juntando as camas pra a gente dormir, senão vai ficar apertado pra vocês.

- Ai, Pai, se a minha mãe souber que eu dormi bêbada com dois caras, ela me mata...

Eu e o Murilo rimos.

- Se a tua mãe souber da tua vida, Sol – eu ajuntei – isso vai ser o mínimo! Kkk! E outra: relaxa que ninguém aqui tá com segundas intenções contigo...

- Fale por você, filho, fale por você – o Murilo reiterou e rimos de novo, porque a Sol estava grudada na parede, com medo de ser bulinada.

- Bom, aí é com vocês, ele que tá deitado no meio... – ri.

- Que putaria é essa aí, gente?! – a voz do Di ecoou pela casa, ele já estava deitado em seu quarto.

- Me salva, Di, pelo amor de Deus! – a Sol gritou.

- Vem pra cá, Sol, minha cama é de casal!

- Tô fodida! Kkkk!

- Genteee, vamo dormir! – eu peguei uma almofada do bicama – são quatro e meia, a gente tem que acordar seis e meia!

- Puta que pariu, duas horas de sono, vou envelhecer antes do tempo! Olha, Gustavo, ainda bem que tu tá indo embora, viu, porque esse negócio de vira e mexe estar perdendo noite, não dá certo! Vou ficar com a minha cara toda encarquilhada!

- Envelhecer antes do tempo..? Não entendi, Sol, acho que tá no tempo, já... – o Murilo soltou, a Solange começou a dar tapa nele e ele se escorou em mim, rindo.

- Ninguém diz que eu sou quarentona, querido, para o seu governo...Aliás, nem eu digo que tenho quarenta, na minha cabeça eu ainda tenho trinta e nove... – a gente riu muito. Tava uma balbúrdia aquele balaio de gato.

Aos poucos fomos pegando no sono.



Não sei se eu despertei porque a perna do Murilo estava em cima de mim, ou porque ele passou o braço e pousou na minha barriga. Só sei que instantaneamente eu perdi o sono. A sua mão começou a me alisar bem lentamente, abrindo e fechando, deslizando os dedos no meu abdômen. Arregalei o olho, mas não me mexi. Estava tudo escuro, não daria pra ver se ele estava acordado ou dormindo. Mas a sua respiração estava muito profunda, quase um ronco, um sono típico dos bêbados.

Decidi, de qualquer forma, ficar quietinho mesmo e fingir que estava dormindo. E curtir também, porque tava adorando aquela proximidade dos nossos corpos, sentir seu calor e o seu peso. Virei a cabeça e olhei pra ele, mas, tudo escuro, sem condições. Nossos rostos ficaram próximos e ficamos assim por um bom tempo.

Ele deu uma fungada forte e me puxou pra mais perto, e eu pousei meu braço em cima do dele. Que coisa boa... Mas ele virou e se afastou, ficando de barriga pra cima, acabando com a minha festa.

Depois de um tempo, virei de barriga pra baixo e abracei a almofada, tentando dormir.

Ele subiu em mim.

Encostou seu nariz em meu pescoço, deixou todo o seu peso cair sobre mim e empurrou o seu quadril pra frente, fazendo-me perceber que estava excitado. Senti o seu volume bem encaixado no meu bumbum.

- Vou mijar.

Levantou-se e foi até o banheiro. Fiquei estático.



Foi uma correria quando percebemos que já eram quase sete da manhã. A Sol procurava os brincos e os sapatos, o Murilo lavava o rosto e catava as roupas, eu ainda tinha esperança de mais cinco minutos de sono... uma confusão. Depois que eles saíram (o Murilo levou a Sol sem capacete mesmo) eu fui até o banheiro, tentando juntar os cacos pra ir trabalhar.



O Murilo passou na sala da Engenharia no final da manhã, eu estava desligando a ligação com a Solange, rindo ainda.

- Lilo, a Solange tá fazendo a maior resenha lá no escritório, hahaha, contando que a Gilda largou ela lá no meio de quatro caras, para ser abatida!

- E ela, tá inteira?

- Ah! Disse que chegou pontualmente às sete e meia da manhã, já fez três relatórios e uma vistoria! Kkk!

- Solange é madeira de dar em doido! Kkk! Quero ver alguém derrubar aquela ali!

Observei-o.

- E você, tá inteiro?

- Que inteiro, o quê? – ele se espreguiçou – tô um bagaço, velho... aquela dormida ali foi foda... rsss.

- É, muito apertado, desconfortável... E ainda bem que eu coloquei o colchão junto, né? Imagine se fosse só o bicama... rsss.

- Ah, não sei, não.

- Como assim?

- Não era pra você ter se enfiado lá no meio da gente não, pô! Se tivesse ficado no seu quarto, eu ia ver se dava um jeito de comer a Solange naquele bicama... hehehe.

Desfiz lentamente o meu sorriso. Parei e tentei fingir uma naturalidade, mas senti que meu rosto tinha ficado vermelho.

- Ah, poxa... nem passou isso pela minha cabeça... Porque você não me falou?

- Ah, quando eu vi você já tinha colocado o colchão, aí pensei: "fodeu". Enfim, deixa pra lá.

Abaixei a cabeça, rodei um pouco pela sala como se procurasse alguma coisa. Virei pra ele.

- E quem te disse que a Solange ia cair na tua? Ali né fácil assim não, filho, tá pensando o que? Ainda por cima que ela conhece a tua noiva e tudo... sei lá, por isso que eu nem maldei...

- Você não conhece mulher quando tá bêbada. Eu sei que a Sol é meio difícil, o povo diz até que ela é frígida, ou então sapatão, porque a gente nunca vê com ninguém, né? Mas, por isso mesmo! Queria testar, pra ver se ela é essa pedra mesmo, hahaha!

- E você é o gostoso irresistível que vai dar conta de todas as desassistidas, né? Tá bom!

- Êtaa! Eu não falei isso não! Só que mulher bêbada é mais fácil quando...

- Ó Murilo, eu vou cuidar na vida, tá? Que eu tou cheio de coisa pra fazer.

"Ódio" me definia naquele momento.



- Gente, a ideia de nos reunirmos aqui neste almoço é...

- Comer!

- Cala a boca, palhaço!

- Kkkkk!

- É nos reunirmos para dar um tchau pro nosso colega, Gustavo, que está nos deixando...

O Lúcio pediu a palavra para falar de mim e acabou fazendo um discurso. Estávamos num almoço na zona rural neste dia, pensamos em inicialmente juntar apenas os mais próximos que trabalhavam no Galpão, mas, à medida que as pessoas iam sabendo que haveria uma despedida com galinha caipira, foram se convidando e o resultado foi que o lugar ficou pequeno para os vinte e cinco colegas que ali estavam. Depois soubemos que quem não foi ficou amuado porque não havia sido chamado, num surto murilístico que os fizeram se sentir deixados de lado.

Depois de irresponsavelmente tomarmos algumas cervejas em horário de almoço e quando à comida chegou à mesa, o Lúcio teve essa ideia de discurso. Todo mundo reclamou e até eu achei exagero, mas ele explicou que se o almoço era despedida, não fazia sentido só comer e ir embora; me chamou para ficar em pé ao seu lado, enquanto ele falava. Me senti meio desconcertado, até porque nunca fui muito com a cara dele, mas fui relaxando. Disse que eu era uma pessoa que ele aprendeu a admirar, que era um ser humano raro, e que tinha conhecido poucas pessoas como eu, que estavam sempre pra cima, fazendo brincadeiras, de alto astral, e isso acabava fazendo a diferença... Ressaltou a minha humildade, o meu jeito de tratar as pessoas, eu fui ficando surpreso de ver aquela demonstração inesperada de carinho.

- Agora que eu falei – ele me puxou pelo braço – o Gustavo vai ficar aqui em pé e eu vou fazer a proposta de cada um que está sentado à mesa, vir, um por um – eu ainda fiz menção de protestar, mas ele impediu – e dizer o que acha deste nosso colega!

O pessoal bateu palmas, aprovando a ideia. E assim foi. Eu, em pé, às vezes cruzava os braços, colocava as mãos nos bolsos, visivelmente constrangido, porque eu não sou muito bom de receber elogios. Mas acabou ficando divertido, no final das contas, porque a gente se zoava muito.

- Êta, Walter, segura o choro!

O pessoal encarnou no pobre do meu colega cinquentão, porque desde que ele soube que eu estava indo embora, toda vez que alguém tocava no assunto, ele ficava de olhos marejados, sensível que era. Não foi diferente. Começou a falar, embargou a voz, nos abraçamos, a galera bateu palmas e ele voltou pra a mesa.

O Edu estava meio sem jeito de falar, mas dessa vez foi o povo mesmo que, gritando, o ajudou. Nos chamavam de "a dupla dinâmica", porque de fato éramos inseparáveis, e tínhamos personalidades muito parecidas; aquele jeito de fazer escárnio de todo mundo, de brincar com tudo, já era a nossa marca registrada na empresa. Nos abraçamos enquanto ele falava, mas ele alertou que não ia se alongar, porque quando ele começava a chorar não tinha como parar.

O Murilo se levantou e me encarou, meio sem jeito. Naquele caso haviam muitas coisas envolvidas, pois ainda tinha a fofoca a nosso respeito.

Todo mundo se calou, descansou os talheres e aguardou. Olhos atentos a qualquer detalhe.

- Eu... gostei muito de ter conhecido essa pessoa, esse cara – nos olhamos e eu tentei não expressar nada – um colega... muito legal... enfim – as pessoas caladas, observando – e... eu queria dizer que eu torço muito por ele e que ele tem um amigo aqui.

Eu respondi um "obrigado" quase formal, apertamos as mãos somente, bateram palmas e ele voltou à mesa.

- Caraaaa – o Bigorna estava com a palavra – eu quando cheguei logo aqui, eu podia jurar que esse bicho era viado, véi! – eu arregalei o olho e observei a reação das pessoas, igualmente surpresas e sem jeito, pelo colega ter trazido esse assunto da agenda oculta à tona tão descaradamente.

- Rafa, filho da pu...

- Espeeere! Ele tem esse jeito dele, assim, essas brincadeiras, e tal... Mas aí, quando a gente percebe que o cara tem namorada até no brega – a galera explodiu em risada – esse é macho mesmo... e é um cara gente boa dema... – eu fui me aproximando e apertei a bunda dele - Páaara, porra, esse bicho é viado, véi!

Foram muitas risadas, muitos depoimentos profundos e tocantes, alguns formais devidos à pouca aproximação entre alguns colegas, mas o saldo foi deveras positivo. Saí com uma sensação indescritível, de ser querido, de ter cativado pessoas maravilhosas as quais admiro e sou fã. É muito bom passar pelos lugares e colecionar momentos bons, sair com a vida estando melhor do que quando entrou.



- Onde será a despedida hoje à noite?

Tínhamos voltado ao galpão. O Murilo estava sentado no banco do carona do meu carro, enquanto as pessoas que estavam atrás iam descendo, para voltarmos a trabalhar.

- Não sei, Murilo. A gente não tá com um check-list na mão, que vai ticando, não. – Abaixei o corta-sol do meu carro para me olhar no espelho, tinha uma espinha me incomodando – a gente sai daqui, lembra de algum lugar, ou alguém liga... é assim.

Ele me olhava, mas eu não o olhava. Espremi a espinha.

- Hum. É, hoje eu tenho uma aula importante, não vou poder colar com vocês.

- Relaxa, pô. Não é sempre que a gente tem que ficar agarrado, não. Eu, hein? Rss.

- Né ficar agarrado, não... é que você já tá indo, né.

- Mas tem despedida ainda amanhã e sexta. Se não puder, também não é o fim do mundo, eu não tô indo pra outro planeta. Rss – fechei o espelho e o olhei.

Ele me olhava, confuso. Deu de ombros.

- Tá. Então, tá.

- Vamos trabalhar? – peguei meu celular e catei meus pertences no banco de trás do carro, ele fez menção de falar mais alguma coisa, mas desceu também. Tranquei e me dirigi até a minha sala.

- Eu não tô entendendo você! – parei no meio do caminho e me virei para ouvi-lo terminar de falar, ele estava encostado no carro ainda, terminando seu cigarro – a gente não combinou que ia fazer de tudo pra aproveitar esses últimos dias?

Voltei para ele, parei em sua frente e suspirei. Estava sendo amargo por conta da raiva que ainda sentia, e de novo tentava ficar a uma distância segura. Peguei o cigarro da sua mão e dei uma tragada.

- É... eu sei. Mas, é que você tem muitas obrigações, Murilo. A faculdade, por exemplo. Não pode ficar matando aula a semana toda, né? Como eu te falei – dei outra tragada e entreguei a ele – eu não tô indo morar em Vênus ou em Marte, mas em Feira de Santana, a uma hora daqui.

- Tudo bem. Só não entendi porque naquele dia lá que a gente tomou uma com a Gilda, você me fez jurar que eu ia ficar colado contigo até você ir – ah, olha eu, bêbado, me entregando – então... tô só justificando.

- Relaxa. Na sexta a gente sai e faz o último bota-fora. Vai pra a tua aula.

Entrei na minha sala e suspirei: "Ele é hétero. Idiota."



Já tinha feito a minha "despedida formal" nesta quinta-feira; mandei um e-mail corporativo convidando a todos para bebericarem e petiscarem num bar conhecido e comportado da cidade, confirmei horário e uma quantidade boa compareceu. Tiramos fotos, relembramos momentos, mas no final da noite estavam sempre os mesmos de sempre: eu, Edu, Bomba, Diego, Bigorna, Solange. Resolvemos fechar a conta naquele bar chique e esticar em algum boteco mais, assim, do nosso baixo nível.

Quando fui pegar o carro para irmos, o Bomba veio atrás de mim e me chamou.

- Gu! Vem cá!

- Que foi?

Ele segurava um papel.

- Lembra no dia da despedida do Daniel? No início do ano?

- Qual das?

- Aqui mesmo, nesse bar? Ficamos só nós, também...

- Sim, sim! Claro!

- É que eu queria te dar isso aqui – me entregou o papel e fiz menção de abrir, mas ele me deteve – não, não abre agora. Abre quando não estiver comigo – rimos – eu tenho vergonha. É que esse texto que tá aí é exatamente o que falou naquele dia, sobre o que acontece quando a gente se afasta dos amigos, como a vida nos leva pra caminhos distantes, e a gente pode acabar se esquecendo... Aí quando eu li, eu achei uma semelhança enorme, e agora que cê tá indo, enfim.


"- Assim que eu me instalar lá, vocês vão me visitar.

- Claro, com certeza...

Fiquei pensativo.

- Que foi? – ele veio pra perto de mim.

- Sei lá, Dan... Essa vida é meio louca. Sabe esse dia de hoje? Estamos eu, você, Edu, Diego, Di, Zóio, Rafa, Yuri...

- Muito legal, né...

- Esse dia nunca mais vai acontecer.

- Nada do que foi será...rss.

- É. E num sentido mais amplo, sei lá, lá no futuro, você vai se ocupar, eu também, teremos nossas famílias, nossos filhos, a gente vai ficar cada vez mais distante...

Os outros já prestavam atenção em nosso diálogo. Daniel completou:

- E aí, um dia, a gente vai vasculhar a bagunça e encontrar uma foto nossa, do passado...

- É... e um dos filhos vai perguntar: quem é esse, pai? E você responde: ah, filho, esse foi um grande amigo do seu pai... mas na verdade isso não vai significar nada para o seu filho...

Di comentou:

- A gente pode estar sendo um pouco pessimista... O importante mesmo é a gente viver o hoje, cara. Hoje, por exemplo, estamos todos aqui, é isso o que importa. A gente nunca sabe o que vai ser das nossas vidas."


- Sério? Eu ainda lembro daquela nossa conversa. Naquela noite eu realmente tava com medo do Dan esquecer da gente, agora sou eu que tô indo, rss.

- É. – hesitou – Não esquece da gente não, bicho. Pô, você é um amigão que eu fiz aqui nessa empresa. Lembra que estamos aqui sempre.

Nos abraçamos. Fiquei tocado com o meu amigo. O Bomba era assim, do meu tamanho, mas era todo pocado, braços e pernas enormes. Era um ex-malhado-quase-gordo, motivo do seu apelido.

Entrei no carro e abri o papel, enquanto esperava o Edu sair do bar.

Era um texto do Fernando Pessoa, intitulado "Um Dia A Maioria De Nós Irá Separar-Se", que transcrevo aqui:


"Um dia a maioria de nós irá separar-se.

Sentiremos saudades de todas as conversas atiradas fora,

das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos,

dos tantos risos e momentos que partilhámos.

Saudades até dos momentos de lágrimas, da angústia,

das vésperas dos fins-de-semana, dos finais de ano, enfim...

do companheirismo vivido.

Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre.

Hoje já não tenho tanta certeza disso.

Em breve cada um vai para seu lado,

seja pelo destino ou por algum desentendimento,

segue a sua vida.

Talvez continuemos a encontrar-nos, quem sabe...

nas cartas que trocaremos.

Podemos falar ao telefone e dizer algumas tolices...

Aí, os dias vão passar, meses... anos...

até este contacto se tornar cada vez mais raro.

Vamo-nos perder no tempo...

Um dia os nossos filhos verão as nossas fotografias e perguntarão:

Quem são aquelas pessoas?

Diremos... que eram nossos amigos e... isso vai doer tanto!

- Foram meus amigos, foi com eles que vivi tantos bons anos da minha vida!

A saudade vai apertar bem dentro do peito.

Vai dar vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente...

Quando o nosso grupo estiver incompleto...

reunir-nos-emos para um último adeus a um amigo.

E, entre lágrimas, abraçar-nos-emos.

Então, faremos promessas de nos encontrarmos mais vezes daquele dia em diante.

Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver

a sua vida isolada do passado.

E perder-nos-emos no tempo...

Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo:

não deixes que a vida passe em branco,

e que pequenas adversidades sejam a causa de grandes tempestades...

Eu poderia suportar, embora não sem dor,

que tivessem morrido todos os meus amores,

mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!"


Primeiro me impressionei com a semelhança do que eu tinha falado naquele dia sem mesmo conhecer o escrito. Depois fiquei emocionado com o texto, pois expôs e traduziu em palavras o meu próprio medo, o medo da solidão inerente ao ser humano.

O Edu entrou no carro.

- Que cara é essa?

Suspirei.

- Não, tô só viajando aqui.

Dei a partida no carro, o Bomba nos seguia e o Diego também, cada um em sua moto. Ainda tinha o Bigorna e a Solange, no carro atrás, completando o comboio.

- Sabe, o Bomba me deu um texto aqui de despedida que, poxa... me tocou.

- Ah, esse povo também, vou te contar, viu? O Bomba mesmo, só tem tamanho!

- Tamanho lateral, você quer dizer, né? Rsss. – eu já esperava a reação do Edu, que sempre procurava tratar as coisas com uma racionalidade e até uma certa frieza, deixando a emoção de lado. – mas o texto é muito bonito, e tem tudo a ver com o que acontece na vida mesmo...

- É sobre o que?

- Fala do afastamento natural dos amigos ao longo da vida, e tal... essa coisa da gente se perder...

- É, mas é como você disse, né, Gustavo... É natural isso acontecer, na medida em que cada um tem que viver sua vida.

- Eu sei, mas, sei lá...

- Isso acontece com todo mundo.

O Edu estava sério, de cara fechada, acho que um pouco de intolerância com as emoções alheias.

- Mas eu não pretendo me afastar não, Edu. Tudo bem que eu vou morar em outra cidade, mas eu pretendo voltar semp...

- Que nada! Isso aí não. Pode acontecer no início, e tal. Mas sempre se afasta, pô. Nem venha com essa.

- Ué, porque? Pode sim acontecer de...

- Acontece nada – ele mordia os lábios e não me encarava – no início a gente se fala todo dia, e tal, aí você vem, ou a gente vai, depois se afasta. Então é balela ficar dizendo que vai ficar junto sempre e...

O Edu colocou as mãos no rosto e no início eu pensei que ele tava coçando o olho. Mas eu tomei um susto mesmo quando ouvi os seus soluços, bem altos. Olhei pra ele e estava tremendo, escondendo a cara, mas chorando copiosamente.

- Edu!

- Para! Cala a boca! Não quero conversa não!

Tirei uma das mãos do volante e peguei no braço dele, mas me repeliu. O carro ziguezagueou um pouco, e resolvi estacionar. Olhei pra ele

- Isso é história! É história, pô! É claro que a gente vai se separar! Aai...

Ele gritava, num choro desesperado. Às vezes esmurrava o porta-luvas do carro e berrava "porra!", como se revoltado consigo mesmo por ter se descontrolado, ou pelos rumos que a vida tomava.

O Bomba parou ao meu lado com a sua moto.

- Parou porquê? Ah, meu Deus!

O Diego parou do lado do Edu com a sua moto.

- Que foi, brow? Vixe!

O carro atrás estacionou e a Solange desceu esbaforida.

- Pera, gente, sai do meio! Que merda! – o Edu gritava e sacudia as mãos, num gesto repelente. Ele estava com o rosto ensopado e vermelho, eu não sabia o que fazer

A Solange colocou a cara dentro do carro.

- Jesus, Gustavo, o que foi que houve? Genteee, meu Deus!

- Para, gente, de fazer enxame! – gritei – vão pra lá! Não tá vendo que o menino tá mal? – o Edu estava de cabeça baixa e ainda chorava, ofegante, soluçando – Afasta aí um pouco, na moral. Deixa eu conversar com ele.

- Vamos, gente, vamos ficar aqui atrás um pouco – o Bomba chamou.

Eu olhei pro meu amigo já quase irmão que se desmanchava em lágrimas e soluços, e tentei falar alguma coisa.

- Não fala nada, tá, Gustavo? Não fala nada, que é pior. Você vai se afastar mesmo, pô, é isso o que eu tô dizendo. Não fala nada. Pera que passa.

Ele voltou a chorar e eu apenas alisei as suas costas de leve. Ainda bem que ele me desobrigou de falar, porque eu nem sabia o que dizer ali, tava meio sem ação. Nesse ponto, além de todos os outros, somos muito parecidos, meio tapados, escondendo emoções com piadas e outros subterfúgios. Eu, por exemplo, estava destroçado em pensar que na próxima segunda não faria um ramal pro Edu e a gente não se reuniria no pé da mangueira em frente ao galpão, pra dizer um ao outro como foi o fim de semana, entre outras bobagens. Mas só fazia tentar afastar esses pensamentos quando eles vinham, querendo racionalizar e dizer a mim mesmo que era tudo besteira. Acho ruim isso, a gente deve deixar sim as emoções nos perpassarem, isso é vida acontecendo.

Dentro do carro mesmo tentei abraçá-lo, meio desajeitado, porque estávamos sentados e ele de cabeça baixa. Encostei nele e não falei nada.

Aos poucos o seu choro foi ficando silencioso, ele levantou a cabeça e com a camisa enxugou o nariz e os olhos. Olhou pra mim. Escutamos as vozes dos meninos, que estavam encostados no porta-malas do carro.

- Edu é problema, véi, quando tem esses ataque de choro, é foda... – o Bomba tava cochichando.

- É mermo? Eu não sabia que o bicho era assim não... – O Didi tava surpreso.

- É, pô, teve uma vez que a gente tava falando umas merda lá no bar, aí o bicho do nada... pfff. O povo fez uma roda pensando que ele tava passando mal e tudo...

- Puta que pariu... – a voz do Bigorna.

Eu e o Edu nos olhamos e eu reprimi um sorriso.

- Era bom a gente procurar um chá pra dar pra ele, gente... – a Solange sugeriu.

Ouvi uns barulhos de risadas presas pelo nariz.

- É, Sol, a gente vai lá no Peixotinho e pede um chá de erva-doce...

- Não idiota, tô falando pra a gente ir pra casa mesmo...

- Ou então a gente vai no brega e pede às puta lá: "me veja um chá de camomila, por favor, filha..." kkkk!

- Ah, mas vocês são bobos, viu? Vou te contar, não sei como eu ando com esse povo...

Eu e o Edu escutamos a conversa toda e dessa vez rimos muito.

- Que capacidade de falar merda, cara... – o Edu ria e se enxugava.

- Tem certeza que tu vai sentir falta disso? Kkkk! Olhe...

A Solange apareceu na janela do carro.

- E aí, filho, tá melhor? Quer que te abane?

- Não relaxa, pô. Já tô melhor.

- Que papelão, hein? – o Bigorna encostou do meu lado – Tem vergonha não? Dando esses piti no meio da rua?

- Vai tomar no rabo, Bigorna!

- Já tá melhor! Pronto! A gente vai pra onde?

Olhei pro Edu e ele disse:

- Vamo lá na Feiticeira.



A Solange estava super animada em entrar no brega com a gente, toda hora fazia uma piada do tipo: "vou aproveitar e fazer um extra aqui, se rolar uma grana", ou "quero ver o strip, viu meninos, quero aprender!", "amanhã vou dizer que estive fazendo um trabalho social de inclusão com as meninas daqui, hahaha".

Sentamos e pedimos bebidas. Cláudia Leite tava lá e ficou arrasada quando soube que estava indo embora, mas só de sacanagem falei que ia voltar pra buscá-la, os meninos morreram de rir.

O Murilo me mandou mensagem dizendo que tinha chegado na cidade, perguntando onde eu estava.

A minha raiva passou e deu lugar à vontade de ele estar ali, então rapidamente respondi dizendo que estávamos na Feiticeira.

Pagamos o strip com a mais experiente da casa, a Solange foi ao delírio de tanto rir. A moça até a chamou para concluir o show, fizemos toda a pressão, mas ela vacilou. Aí o Edu palhaço subiu no palco e fez a performance. Subiu no queijo e começou a rodopiar e fazer poses sensuais, e a Sol encorajava. O Edu me chamou e eu fui, dançamos ao som de Roxette. Edu gritou:

- Você consegue subir no ferro e fazer aquele rodopio que nem aquela mulher da novela?

- Hahaha, sei lá!! Vamos tentar!

- Não! Vou cair! Hahaha!

O povo da mesa gritava. Edu saiu do queijo e me deixou lá. Dei um impulso e pulei no ferro, rodopiando. Eu estava muito louco! A galera gritava, e eu continuei. Grudei as pernas e fiquei de cabeça pra baixo e soltei as mãos. Quando olhei pra a "plateia", vi um Murilo de olhos arregalados na entrada do salão, olhando.

- Uh, gostosooo! – ouvia as vozes dos meninos.

- Vamo lá, vamo lá!

Ri para ele, que balançou a cabeça, rindo também, meio tenso. Acho que ele tava sem acreditar.

Escorreguei até o chão e levantei de um pulo, sob os aplausos. Cantava "It Must Have Been Love" e rodava, roçava no mastro fazendo palhaçada. Virei para onde estava ele e estiquei o dedo, chamando-o. Ele, claro, não veio. O Bomba subiu, eu aproveitei e desci, tonto ainda. O Murilo se aproximou.

- Que porra é essa aí, velho? Vocês estão chapados, né? Rsss.

- Cala a boca e toma esse copo aí!

- Ó pro outro lá!

O Bomba abriu a calça e mostrou a cueca vermelha, a gente assoviou e gritou, mas os caras das outras mesas começaram a reclamar (eles queriam ver mulher, no caso) e aí ele desceu. Mas a confusão rolou até mais tarde, a Sol fez uma votação da melhor performance e o Edu ganhou. De fato, parecia um profissional, dizendo ele que aprendeu com a própria Flávia Alessandra.



Na sexta continuamos a maratona de forma incansável, paramos em uns três bares mais e por último, restou apenas na minha varanda eu, o Edu e o Murilo.

- Ai, gente, agora tá me dando medo... – eu segurava uma garrafa, encostado no carro. Tonto, bêbado e triste.

- Medo de que? - o Edu perguntou

- Sei lá... não quero que vocês saiam daqui...

Era umas seis horas da manhã de sábado, não tínhamos mais o que inventar para continuarmos juntos, e eu não queria deixá-los ir.

- Eu não quero dormir só... Vocês vão embora e a minha mudança vem à tarde... e aí, já era...

- Relaxa, pô. Eu sei que é foda – agora o Edu me consolava – mas você mesmo disse que não vamos sumir. Então, para!

- Eu sei... – bebi mais um gole da garrafa e olhei pro Murilo, que estava de frente pra mim – mas é que eu vou sentir muita saudade...

Ele também segurava uma garrafa e veio até mim, abrindo os braços. Eu o apertei, trazendo pro meu corpo, beijei o seu pescoço e alisei as suas costas, de uma forma um pouco mais ousada do que se aceitaria como abraço fraterno. Ele deve ter ficado confuso, pois ficou um pouco sem jeito quando inclusive me aconcheguei no seu cangote e o segurei pelos quadris. Ah, eu estava indo embora mesmo e estava bêbado... Juntamos o Edu conosco e fizemos um abraço triplo.

Dormimos no chão da sala.

Acordei às onze e estava sozinho, eles já tinham partido. O Zoião e o Di estavam fora nesse fim de semana, o que aumentou mais ainda a minha solidão.

Ainda pensei em chamar a Claudia Leite pra aproveitar que estava só em casa, fazer uma sacanagem... Mas, não estava no clima.

Levantei e terminei de arrumar algumas coisas que faltavam. Coloquei minhas roupas numa caixa, levaria o guarda-roupa, o rack do computador e a cama. Deixaria os cacarecos, que não aguentariam mais nenhuma viagem: a fruteira "inox", o tal do bicama, famoso, e a mesa capenga. Os meninos adoraram saber que ficariam com as relíquias.

Meu peito encheu de vontade de chorar, fiquei passeando sozinho pela casa e relembrando vários momentos. Com os meninos da casa, com o Murilo, as festas, as invasões na madrugada. Era a primeira vez que eu sentia um pesar tão profundo, nem tinha noção até ali do quão amigos eram aquelas pessoas que me cercavam. O medo de perdê-los de vista novamente me inundou, e eu pensei se era possível manter a palavra do que tínhamos combinado: seguir pela vida juntos o máximo possível, ou pelo menos manter a amizade, o companheirismo, o sentimento mesmo que de longe.



Escrevendo tudo isso que aconteceu, e fazendo um balanço de como estão cada um deles hoje, constatando que de fato a vida nos apartou a maioria, me lembro dos versos do Guimarães Rosa, tirados do conto "Nenhum, nenhuma", que diz:

"Será que você seria capaz de se esquecer de mim, e, assim mesmo, depois e depois, sem saber, sem querer, continuar gostando? Como é que a gente sabe?"


...

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