16
- Dan!!! Tá vivo???
- OOOOiii, poorraa... tô sim.. rsrss - a voz rouca de quem ainda estava deitado.
Era domingo à tarde, queria saber se ele estava bem.
- Tô beleza, sim, cara. Mas você perdeu, ouviu? A melhor parte da noite foi aquela banda, como eu te falei. Eles são muito bons.
- É, eu tô ligado. Fazer o que, né?
- E a Rose, tá bem?
- Tá, sim. Falei com ela mais cedo.
- Hum. Que bom.
Silêncio.
- Pô, cadê meus episódios de Cavaleiros do Zodíaco que eu pedi pra tu gravar, cara? Daqui a pouco tu viaja de novo pra Itaberaba e eu me lasco.
- Pow, véio, larguei lá! Mas eu tenho aqui o de "Death Note", você vai se ligar... O cara tem um caderno que ele vai anotando os nomes, e a pessoa vai morrendo, tá ligado? Aí...
Na semana seguinte em que eu consegui passar na prova prática da carteira de habilitação, o vendedor me ligou, dizendo que o meu carro estava lá, pronto para ser pego. Eita! O da Rose só chegaria na outra semana.
Liguei para o Maurício e para o meu instrutor da autoescola, marquei com todos. Seria assim: na sexta à tarde sairia de Camaçari, ia direto para a concessionária em Salvador, o Maurício sairia de Feira e levaria o meu instrutor também. Combinei um valor com ele para dirigir o carro pra mim até Feira, porque eu não me sentia seguro pra pegar estrada. No máximo eu podia ir levando e ele ao lado, me dando uns toques. Deixei pra resolver isso lá.
Mas o Maurício resolveu por mim.
- E aí, cara? - ele veio me abraçando - Ó, eu vou ter que voltar correndo pra Feira, só vim resolver tua parada mesmo aí. Carro novo, hein, malandro?
- Cadê ele? Kk, gente, que maluquice...rss. Quero vê-lo.
O vendedor se aproximou.
- Boa tarde, Gustavo. Ele ainda está no pátio, por enquanto vamos ali assinar uns papéis e te mostrar algumas coisas. O seu colega já fez o pagamento do kit Trail.
- Ah, beleza, Mau... - olhei em volta e senti falta de algo - Maurício... cadê o meu instrutor?
- Oi? - ele bateu a mão na testa - Êta porra! Esqueci!
- O quê??? Você é doido mas tem juízo, né? Fala aí, porra, onde que ele tá?
- É sério, pô. Tu me ligou aquela hora...
- Pois é, desgraça, eu te falei que o cara tava te esperando na saída da Presidente Dutra - coloquei a mão na cabeça e fiquei rodando pelo salão - eu não acredito numa desgraça dessa!
- Pô velho, foi mal, eu esqueci mesmo... Saí tão corrido lá da empresa... Me deu um branco...
Maurício tava com cara de bunda. Eu, sem saber o que fazer. Liguei pra o cara e ele não me atendeu. Depois ele me mandou uma mensagem: "Falta de consideração a sua, viu, broder. Fiquei duas horas esperando o seu colega passar e nada. Te ligo e caixa postal. Nada a ver isso. Até."
- Que merda, Maurício... ó pra cá, o cara tá puto com a minha cara.
- Pô... pior que eu vou ter que ir, tenho que estar lá na empresa daqui a uma hora, vou ter que correr! Não vou poder te esperar, cara...
Nesse momento, às quatro da tarde, comecei a me desesperar.
Maurício se foi e eu fiquei com o vendedor, que me mostrou os itens de garantia, o contrato, etc. O auxiliar trouxe o carro ao salão e eu o contemplei pela primeira vez. Era lindo. Quantas vezes fiquei fazendo a simulação pela internet de como ele ficaria, as cores, o kit instalado, eu tava realmente ansioso.
Sentei e observei o painel. O vendedor sentou ao lado e ficou me dando as orientações, explicando onde era cada coisa. Só não curti mais porque estava preocupado com alguns detalhes, tipo: como tirar aquele bicho de lá e chegar em Feira vivo, ileso.
- Bom, acho que agora é a hora de você ir, né? - o vendedor estava me apressando.
Eram seis e meia da tarde quando liguei o carro e manobrei para sair. No momento em que atravessei o portão da concessionária e olhei a rua, super cheia por conta do horário de pico, congelei, e o carro deu uma interrompida. Liguei de novo e enfrentei o tráfego, desajeitado.
Tinha um ônibus enorme atrás de mim, piscando o farol pra eu andar mais rápido. Minhas mãos já tinham liberado uns dois litros de suor, e eu era nesse momento um religioso convicto, orando mais do que mil freiras em dia de vigília. Quase bato no carro da frente e por isso deixei o carro morrer de novo. Liguei, o carro deu um salto e morreu novamente. O ônibus e os outros carros começaram a buzinar freneticamente. Os carros faziam a volta pelos lados e os motoristas olhavam pra a minha cara. Liguei o carro de novo. Tentei sair.
Eu estava desesperado. Desliguei o carro, abracei o volante e gritei, no meio do engarrafamento que tinha se formado em plena Avenida Bonocô.
No meio da roda de carros que se formou em volta do meu, eu consegui respirar e manter a calma pra sair. Afinal, ali só tinha eu mesmo. Chave, embreagem, marcha, aceleração etc. Rodei pela avenida ainda por uns dez minutos, acelerando e freando de forma a fazer meu instrutor Carlos perder a sua licença de professor. Encontrei um posto de gasolina.
- Completa, por favor.
Meu celular tocou. Era meu tio, o pai da Mi. Ele soube que eu ia pegar o carro e queria saber como iam as coisas. Contei pra ele.
- Você não vai conseguir chegar em Feira sozinho não, meu filho. Faz o seguinte. Você tá aí perto da saída da cidade, né?
- Isso.
- Eu estou aqui justamente na saída de Salvador. Vou junto com você até Feira, para lhe dar um apoio. É muita irresponsabilidade de vocês, ouviu? Vamo lá, pegue a BR, depois do segundo viaduto entre à direita e procure a Rua Tal.
- Tá.
O bom é que meu tio também não sabia dirigir, então não sabia qual a validade daquele descaminho. No estado em que me encontrava, porém, qualquer cara conhecida ou pessoa que quisesse morrer ao meu lado já era um apoio, psicológico, pelo menos.
Por incrível que pareça, dirigir na estrada foi mais tranquilo do que na cidade. O tráfego flui melhor.
Cheguei no local indicado e ele estava sentado em um barzinho com um colega, fumando tranquilamente. Ele se levantou e indicou um lugar para eu estacionar, pediu pra eu descer.
- Aff, que sufoco, viu, tio? Eu mato o Maurício amanhã.
- Senta aí e relaxa um pouco. Você vai precisar de serenidade pra irmos. - chamou o garçom - Porque, afinal de contas, você já sabe dirigir, não é verdade? - virou-se para o garçom - traga um duplo pra ele aqui.
- Hum? Whisky? - o meu tio sempre tinha um jeito peculiar de resolver as coisas.
O garçom trouxe a bebida. Meu tio pegou o copo e arrastou até a mim.
- Só esse, para relaxar e abrir a sua mente. Tem algum posto da polícia rodoviária no caminho?
- Tem sim, em Simões Filho. E eu tou sem habilitação, porque ainda não fui lá em Feira pegar.
- Então... - coçou a barba, pensativo. Tomou uma decisão. - é...
- E...
Ele me olhava e eu esperava uma decisão. Que foi:
- Vamos rezar para não sermos parados. Tim-tim.
- Tim-tim - tomei o whisky em três goladas.
Ele aguardou.
- Agora seria bom um copo de cerveja porque está muito calor. - sugeriu.
- É, porque esse whisky esquentou tudo aqui por dentro.
Ficamos lá, conversamos um pouco - a base da terapia relaxante dele incluía também um bate-papo. Depois do segundo copo, ele não me deixou beber mais, porque, segundo ele, era meu tio e tinha a obrigação de zelar por mim e pela nossa viagem. Pegamos a estrada.
A técnica dele deu supercerto. Pouco mais de uma hora depois, estávamos entrando na cidade de Feira, não sem antes ameaçar alguns condutores que ousaram estar em nosso caminho e voar sobre um quebra-mola na entrada. Paramos em outro barzinho que ele adora, e aí eu pude beber um pouquinho mais, porque já estava próximo de casa. Descobri que tava morto de fome. Comi, bebi, e deixei meu tio, que queria ficar por lá mesmo, disse que depois ia no bordel de Marizete pegar alguma puta.
Cheguei em casa por volta de onze da noite, minha mãe estava na porta esperando, de touca na cabeça, parecendo uma assaltante. Quando me avistou, gritou minha vó e a Drica, que saíram em mangas de camisa, curiosas. Foi uma gritaria só.
- Uau, é lindo! Puta merda!
- É quatro portas!
- Preto, né?
- Preto o que, burra? É cinza.
- É preto, gente...
Entramos todos no carro para dar uma volta. Minha mãe soltou o cabelo e gritou a vizinha, D. Clotilde, que estava de bob na janela espiando a movimentação.
- Olha, D. Clotilde, o carro que Gustavo comprou! Quatro portas!
A coroa gritou da janela: "Deus ajude meu filho lhe dê saúde pra gozar desse carro, amém!"
- Tchau!
- Ela quer o que? Que eu goze nesse carro?
- Vai, doido! - minha mãe me deu um tapa - é esse povo antigo que tem esse dizeres malucos... A gozar do carro, do bem que você comprou! Kkkk! Ai, ai.. Vagabunda véa ordinária! Tu viu, puta? Secou a gente aí dessa janela esses anos todos! Invejosa, olho grosso! - minha vó deu um tapa na cabeça dela do banco de trás - ah, é isso mesmo! Tu não se lembra não, Gustavo, quando eu quebrava o pau com teu pai aqui por causa da cachaça dele? Ela subia no pé de goiaba do quintal pra ver! Pois tome, agora temos carro e tudo! U-huuu, vamos rodar!
Minha mãe tinha razão. D. Clotilde ficava o dia inteiro daquela janela olhando a vida de todo mundo, os olhares de reprovação. Não podia ver ninguém passar na rua e começava a puxar papo, sempre da vida alheia, algo que ela soube, e tal. Regozijava-se com o insucesso alheio, era a inveja encarnada.
Dei a volta no bairro, enquanto o povo gritava enlouquecido. Depois voltamos pra casa. Precisava descansar.
A agonia agora era colocar o carro na garagem. O portão grande nunca era usado, deu trabalho para abri-lo. O problema era que minha rua é muito estreita, tem uns quatro metros de largura somente, e tem um poste logo na direção do portão.
As três ficaram em volta gritando as coordenadas, eu ia e voltava tentando acertar. Olhei pra trás atentando para o muro, quando eu ouvi o barulho da lateral do carro adentrando o poste. Pá!
- Aí, que merda! - desci, o poste tinha entrado na lateral. Amassou um pouquinho.
Voltei, fiz a manobra de novo, atentando para o poste, e aí ouvi o barulho do para-choque no muro.
Pronto, duas batidas no primeiro dia.
Meia hora depois, o carro estava estacionado, e eu, deitado, puto comigo. Só eu mesmo. Atravessar os cento e dez quilômetros da BR-324 sem nenhuma ocorrência e bater duas vezes na porta de casa.
D. Clotilde olhava da janela, com um sorriso discreto triunfante.
O fim de semana foi todo assim: ia na casa do povo, mostrava o carro, rodava com o pessoal, tomava uma cerveja e ia visitar outro pessoal. Mirele deu tanto grito que quase perco meu tímpano; Rose não via a hora de ir buscar o dela.
Só peguei estrada para Camaçari na terça à tarde, pois fiquei resolvendo o licenciamento no DETRAN. Aproveitei e peguei minha carteira de habilitação também.
Coloquei o CD "Sim", de Vanessa, e fui, dessa vez mais relaxado. A viagem foi relativamente tranquila.
Solange, Edu, Bigorna, Otávio, Diego e uns meninos do Galpão me aguardavam no Peixotinho, eu já cheguei buzinando, por volta de sete da noite. Foi uma festa. Queriam saber o que tinha de acessório, o que não tinha... "Mas você não disse que tinha comprado um carro zero?", foi o que o Diego perguntou, e era de fato, a pergunta que tinha dominado o fim de semana. Expliquei de novo que fui eu mesmo que já tinha batizado o carro.
A gente ficou bebendo e depois rodamos por mais uns três bares. Os meninos não queriam que eu dirigisse, mas eu não dei a chave a ninguém, todo mundo ia morrer junto. Uma zoação.
Perto de meia noite eu estava indo deixar o Edu em casa, quando meu celular tocou; era o Murilo.
- Não sei se você faz essa questão toda, mas eu quero ver seu carro...
- Ah, você tá aonde? Claroo, abestalhado!
- Eu tô aqui no ponto do ônibus da faculdade. Cheguei agora.
- Passo aí.
Ele estava lá, esperando, escorado num poste, com o caderno na mão. Encostei e sorri pra ele. Ele veio andando até o meu lado do carro e tentou abrir a maçaneta da porta do motorista.
- Abre aí, vai pra lá.
- Oi? Não, seu banco é esse aqui, ó. O do carona.
- Que porra nenhuma. Vou dirigindo. Vai pra lá.
- Que nada! Venha logo pra cá. Tá achando o quê? Que vai mandar assim, é? Se tiver com medo, vá pra casa de busu!
Ele enfiou a mão pela janela, destravou a porta por dentro e abriu. Sentou na ponta do meu banco, me afastando um pouco.
- Você, hein? Gente ruim, puta que pariu... - me fitava com aqueles olhos verdes - não vai deixar eu dirigir seu carro não, né? Queria só ver como é, pô... Porra... - botou a mão no volante.
- Bom, pedindo assim... pedindo e não mandando, eu deixo sim, com certeza. Dirija pra mim que eu estou cansado - pulei pro banco do carona.
- Ah, palhaço... - ajeitou o banco e os retrovisores - olha pra isso, o carro todo desajustado, não dá pra ver nada aqui...
- O carro está ajustado, sim, pra mim, né? Ah, olha isso, vai tirar tudo do lugar, poxa...
- Relaxa aí, pô.
Rodamos um pouco pela cidade, ele queria "amaciar o motor".
- E aí, quer ir pra onde?
- Ah, sei lá... você chegou da facu agora... já comeu?
- Não. Vamo ali no hambúrguer então.
Sentamos e fizemos nosso pedido.
- Você só pediu um misto? - ele me perguntou.
- É, eu comi mais cedo com o povo.
- Ah... Quem é que tava?
- Todo mundo. Foi massa.
- Todo mundo quem?
- Ah, Solange, Edu, Diego, Bomba, Bigorna, Otávio, o Márcio... xô ver... acho que só.
- E nem me falou nada - ele levanta as sobrancelhas e torce os lábios, olha pra baixo. Isso já é a sua marca-registrada-de-chantagem-emocional - é isso mesmo, tenho que me acostumar... a ser relegado a...
- GENTE! Foi a Solange que organizou, só me ligaram dizendo que tavam no Peixotinho... - abri a boca, fazendo menção de dizer algo, estava procurando outro argumento - sim, e sua aula? O combinado é que época de aula você não sai de noite!
- Se você tivesse me falado eu faltava, né? Mas tudo bem, deixa pra lá.
- Larga de coisa, Murilo. Dá vontade de te bater, sabia?
- Tá. Tá bom. Você tá certo mesmo.
Tomei um gole de cerveja. Acendi o cigarro.
- Eu vou adivinhar que você pode faltar aula, agora, é?
- Não, você tá certo. Eu que tou errado.
Dei um tapa no ombro dele, bem forte.
- Paara com isso, Murilo, conversa direito com as pessoas!
- Ai, caralho! Isso dói! Vem cá, você se confia em quem hein? E se eu quisesse revidar? Eu te desmontava todo, cara!
- Eu pego uma faca.
- Aqui não tem, é hamburgueria. - pegou o cigarro da minha mão e arregalou o olho bem perto de mim - Você come hambúrguer de garfo e faca é? Ha, ha, ha!
- Pego um tijolo, uma cadeira... - me aproximei mais ainda dele.
- Quero só ver! Te dou uma gravata assim, ó - passou o braço pelo meu pescoço e me apertou - quero ver você sair!
- Paaara, Murilo! - dei uma pancada no saco dele, de propósito.
- Porraa! Caralhoo! - me soltou, e eu me ajeitei - já falei, velho, que brincadeira besta!
- Te falei que você não é essas coisa toda. Me dá o cigarro - enquanto ele se contorcia eu pegava o cigarro dele - tamanho não é documento.
Eu nem dei atenção a ele, que gosta de se fazer de coitado sempre. Mas o hambúrguer chegou, comemos e ele ficou de cara fechada pro meu lado. Aí eu decidi fazer o que ele queria.
Um cafuné.
- Tá doendo ainda?
Ele ficou calado. Lambuzou o sanduíche dele de ketchup e abriu o bocão.
- Hum?
Ele mastigou, me olhando de lado, depois virou o rosto.
- Vai falar comigo não. Desculpa. Desculpa, viu? Eu sei que dói mesmo. Mas é que eu fico com medo quando você brinca assim - comecei a dar corda, maquiavélico que sou - porque você é muito mais forte que eu, é mais alto, sei lá... Imagine se você me fere?
- Cara, eu não revido porque eu tenho pena, por isso que eu deixo você me bater... Se eu te pego de jeito, Gustavo, aí você vai ver o que é bom...
- Desculpa. Dói ainda? - alisei a coxa dele e fui subindo, depois me dei conta do que tava fazendo e parei. Ele abriu as pernas. A gente arregalou o olho.
- É o que? Vai pegar, é? Você é viado, né, cara? Fala.
Dessa vez fui eu que me virei. Que doideira que eu fiz.
- Não sou não, mas preferia, do que ser idiota igual a você. Eu aqui, preocupado... Ei, traz a conta ai!!! Quero ir embora. Já deu, né? Aliás, eu já tava indo pra casa, eeu hein.
- Rapaz... - ele juntou os dedos das duas mãos num ponto invisível do espaço - eu não posso dizer NADA, velho, que você se dói. Você me bate, fala tudo o que quer, me esculhamba junto com o Edu...
- Eu te esculhambo? Eu te esculhambo???
- É, basta vocês dois se juntarem que tudo o que eu falo vocês criticam...
- Euuu hein? Vai, maluco!
- É, sim. Faz isso tudo e eu relevo, porque eu gosto de você. Eu cheguei de Salvador e vim te procurar!
- Você vem todo dia esse horário, né? Não veio por causa de mim, não.
- Não tou falando de hoje, não.
- De que dia, então?
- Deixa pra lá.
- Hum. Tá. Eu não digo mais nada, então. Eu, hein... desde que a gente sentou que não conversa nada com nada! Que loucura isso...
- Tudo por que eu falei uma coisa: que você poderia ter lembrado de mim. Só por isso.
Suspirei. O carinha trouxe um papel de pão com o valor da conta. Peguei, olhei e me virei pra ele.
- O que eu mais queria era que você estivesse lá. Tá? - percebi que ele se esforçou em manter a aparência séria, prendendo os lábios, mas estava satisfeito em ouvir aquilo - Mas eu sei que você tá em aula, que não pode ficar perdendo por qualquer coisa, vou ficar chamando? Não sou mala, não. Não gosto de incomodar.
- Você não me incomoda, não, cara, muito pelo contrário... Pode ligar, sim, sempre que quiser, eu que vou saber se posso faltar aos meus compromissos ou não.
- Você tem namorada...
- Hum?
- Quer dizer, namorada, emprego, faculdade, família... sei lá.
- Já te disse: eu sei o que é melhor pra mim. Deixa que eu escolho.
Eu chamei o rapaz novamente e juntei o dinheiro da conta. Ele segurou o meu pulso.
- Vamo embora agora não, pô. A gente nem conversou direito nem nada.
- Mas a gente nem...
- Você nem me contou como foi lá na concessionária. Me ligou, falou por alto. Hum?
O rapaz da conta esperava, em pé, na nossa frente.
- A gente desistiu de ir embora. Traz outra cerveja. Mas traz gelada, viu? Porque essa tava horrível. Tô de olho - o rapaz se virou e saiu, e eu me virei pra ele - então. Deixa eu te contar a PUTARIA que foi a minha saída com este veículo lá de Salvador...
Contei tudo como foi e ele se divertiu demais. Eu também ria muito só de lembrar o desespero que eu estava, aqueles motoristas olhando pra mim com cara de reprovação, a confusão, as buzinas. Ele logo assume um tom professoral e me dá dicas de como dirigir melhor, as balizas... Marcamos uma aula particular qualquer dia desses, ele disse que ia me deixar craque.
Atualizamos também os assuntos do trabalho. A empresa estava em franca expansão, então naquela época, além dos contratos de expansão das fábricas do Pólo, ela estava se inserindo também em obras públicas na cidade de Camaçari. Estava acontecendo muita novidade.
Eu falei um pouco dos meninos da minha sala, e da minha relação de proximidade cada vez maior com o Walter, o cinquentão que eu adorava.
- E pensar que a gente só se aproximou porque começamos a dividir o carro, né? - falei.
- É, mas é assim mesmo. Aquela funcionária que colocaram pra rodar comigo nas visitas da Qualidade, te falei, né?
- Sim, a Suzana.
- A gente conversa demais, cara, porque a gente acaba que fica o dia todo rodando, né? Aquele carro vira um divã. Sabemos da vida um do outro, e tal. Ela mesmo tá passando por uns problemas pessoais aí...
- Ela é casada, né?
- É, tem três filhos. Mas eu não vou te falar nada da vida dela não. É coisa pessoal.
- Quem te perguntou alguma coisa?
De vez em quando, claro, ele falava alguma merda, ou eu fazia alguma brincadeira que ele não gostava, e aí a gente parava e se olhava, rosnando. Mas o trato era não brigar mais, então ele falava: "vai começar, não, né?". Eu respondia "não, eu tou respirando e contando até dez, porque eu te adoro, e tal..."
Deixei-o em casa às duas.
Tive reunião pela manhã com a Valquíria e os outros engenheiros. Eu estava com uma obra em um dos bairros de Camaçari, pavimentação, esgotamento sanitário e drenagem de ruas. Por conta disso, o trabalho seria desenvolvido em conjunto com a Solange, que é assistente social e responsável pelo contato com a comunidade. Teria dali pra a frente um calendário de reuniões de esclarecimento, uma vez por semana, nas Associações de Moradores, ela introduzia os assuntos e eu tinha um momento pra falar da parte de engenharia e tirava as dúvidas do pessoal.
- Eu adorei, né. A Solange é massa, vai ser uma resenha só.
- Tô pensando já na cerveja depois da reunião. Me pega em casa, viu?
Rimos. Eu estava no pé da mangueira em frente ao galpão com o Edu, atualizando a conversa.
- Cadê o Murilo? - perguntei - a gente ficou de almoçar hoje...
- Ele deve demorar um pouco, porque foi levar a Suzana pra fazer uma medição um pouco longe aí. Eles geralmente voltam tarde.
- Hum.
- Mas aí a gente vai na frente e ele encontra com a gente lá.
- É. Melhor.
- Como é que tá a Clara, a tua prima?
- Tá beleza. Esse fim de semana passei lá, ela estava com a cara ótima. Acho que superou o Otávio. Poxa, eu tô agoniado. Acho que eu vou ter que ir em Feira hoje, pra mostrar um projeto a um cliente meu.
- Po. Não dá pra deixar isso pro fim de semana não, cara?
- Acho que não. Era pra ter mostrado nesse que passou, mas com essa confusão do carro acabei nem indo lá. Mas eu vou ver se dá pra desmarcar.
Nesse dia o Murilo nem apareceu pra almoçar com a gente, deve ter demorado mais que o normal na vistoria.
Chegou o fim do expediente e não consegui que o cliente desmarcasse. Era um saco ter que ir à Feira no meio da semana. Era uma quarta-feira, então ou eu dormiria lá e acordava cedo pra vir, ou fazia um bate-volta.
Antes de ir, entrei na sala das assistentes sociais. Procurei a Solange, que me veio logo perguntando:
- E aí, Gustavo, as novidades? Cara, tava afim de comer uma pizza hoje, relaxar, tu não tá afim não?
- Vamos sim, eu te levo. Mas tem uma condição. A gente come lá em Feira.
- Hum? - as meninas falaram em uníssono - Em Feira?
- É, Sol, a pizza de lá é muito boa.
Ela franziu a sobrancelha, disse "eu, hein...", pegou a bolsa e falou: "vamo, então". As meninas quase mataram a coitada, dizendo que era louca, e tal. Mas eu adorava a Sol justamente por isso, nunca pra ela tinha tempo ruim. Saímos da sala eu explicando que tinha que ir lá, por causa do cliente, etc. O Di nos encontrou na saída, perguntou onde a gente tava indo e acabou topando também.
- É bom, pô, porque aí a gente divide a direção, pra não ficar cansativo pra você - ele falou.
Quando entramos no carro, o Bigorna veio correndo e entrou.
- Bicho, me dá uma carona até em casa? Não tô conseguindo encontrar um mototáxi, tô morto hoje.
Me virei pra Sol e pro Di, e pisquei o olho.
- Claro, Bigorna. Só vou passar ali, rapidinho, te deixo, sim.
Pegamos nosso caminho. Bigorna não parava de falar, conversando com os meninos. Só parou quando percebeu que estávamos na BR.
- Tá indo pra aonde aí, cara?
- Ah, eu vou lá em Feira. Não te falei que ia passar num lugar antes?
Tentamos ficar sérios, mas a Solange explodiu em risada.
- Peraê, porra, para de sacanagem... Tá indo pra aonde mesmo?
- Ele vai lá em Feira atender um cliente e depois a gente vai comer uma pizza, pô. - O Di explicou, e a gente não parava de rir da cara dele.
- Porraaa, velho, que sacanagem! Para aí que eu quero descer!
- Deixa de coisa, Bigorna! Não te falei que eu te deixo em casa? Relaxa aí, é rapidinho, já te deixo lá.
- Sacanagem...
A viagem foi ótima, eu estava cada vez mais seguro na direção. A gente não parava de conversar. O Di falava da relação dele com a Suzi, que meio que começou depois daquela festa surpresa que fizemos pra ele.
- A armadilha deu certinho, né, Solange? Sua amiga acabou fisgando meu colega, coitado...- cutuquei.
- Que nada, a gente ajudou a ele, isso sim. Estão os dois aí, se dando bem, né não, Di? Diga lá.
- Hehehe, a gente tá bem, sim. A nossa relação é boa justamente porque a gente não tem aquela cobrança maluca de casal, de ter que dar satisfação de tudo o que faz, sabe? Nem de ficar falando em futuro nem nada... A gente tá se curtindo, vivendo o hoje.
- Isso é bom. Minha noiva também não tem essas bobagens não, nem eu com ela - Bigorna já estava relaxado, conformado em ir à Feira.
- Ô gente, mas vamos combinar que isso é bom e saudável em qualquer relação, né? - Solange ponderou - eu não curto essa de ficar cobrando nem ser cobrada de nada não... nem amizade, nem namoro.
Di disparou:
- Esse ciúme que o Murilo tem do Gustavo mesmo...
- Afff, nem fale. - a Sol suspirou - aquilo é uma loucura.
- O que, gente? - eu arregalei os olhos.
- Ah, Gustavo, até parece... Murilo não pode saber que alguém te chamou pra qualquer coisa que fica procurando história... Fica questionando pra a gente, perguntando onde a gente foi, o que fez, porque você não chamou ele...
- É, tem que falar pra ele primeiro antes de chegar perto de tu! Kkkkkk! Ai, ai! Esses meninos são uma onda, viu? É cada figura. Sim, mas voltando à Suzi; ó Di, eu torço por vocês, viu? A minha amiga tá nas nuvens...
O papo tomou outros rumos, e eu, viajei pra lá da estratosfera. Eu não tinha noção de que as pessoas já haviam percebido essa relação, digamos, possessiva, do Murilo para comigo. Na verdade, eu até então nunca tinha parado para refletir sobre isso, por acreditar que era impressão minha, ou algo esporádico... Me pegou de surpresa o fato de ele também abordar outras pessoas, e ficar realmente triste por estar de fora dos lugares onde estou.
Se eu perguntasse mais alguma coisa sobre isso aos meninos, podia dar bandeira, então, fiquei quieto. Mas a minha vontade naquele carro era de retomar o assunto e fazer uma mesa redonda, uma roda de diálogo com o assunto, questionar: "gente, o que vocês acham que o Murilo sente por mim?" "Possessão: Amizade ou Amor?" "O que mais aconteceu na minha ausência que eu não sei?" "Por favor, me ajudem!" "O que vocês acham??"
Visitei meu cliente, os meninos esperaram numa pizzaria próxima, depois voltei pra lá. A Rose deu uma chegada, nós rimos muito, bebemos e comemos como se não houvesse amanhã.
Chegamos em Camaçari por volta de onze e meia. Bigorna perguntava: "Quando a gente faz isso de novo? Muito bom..."
Eu estava me arrumando pra ir pro trabalho na sexta-feira, mais uma vez atrasado. Ia cortar o café pra ver se diminuía o estrago. Di e Zoião já tinham saído há tempo. Estava passando minha camisa quando ouvi um barulho de buzina no portão. Fui até lá.
Murilo de cabelo molhado, cheirando a sabonete e de farda passadinha.
- Vou começar a passar aqui antes de ir, pra ver se você se conserta!
Abracei-o, dando risada.
- Entra aí! Haha, tô atrasado mesmo! Mas é que esses dias tão uma loucura, Lilo! - fomos andando até o meu quarto - Ontem tive reunião com a comunidade, anteontem tive que ir em Feira...
- Ah, mas se você tá saindo tarde, então não tem nada chegar um pouco mais tarde também, né?
- Pois é. Mas a língua do povo, você sabe. Ninguém quer saber se você saiu tarde, aqueles cão só ficam de olho quando eu chego oito e meia!
- Hahaha! Olha o Lúcio viu...
- Ele tá até quieto pro meu lado.
- Pelo menos na sua frente, né?
Parei. É. Continuei passando minha camisa em cima da cama. Murilo encostado na porta.
- Já tomou café, Murilo?
-Eu não, acordei tarde também. Na verdade vim te chamar pra tomar café, sei lá. Hoje eu tô podendo passear, o setor tá tranquilo, nem a Suzana foi trabalhar hoje. Meu chefe ficou de ligar se precisasse de algo urgente.
- Poxa... que pena... Eu tô meio abafado... - cocei a cabeça, sem jeito - mas olha, a gente pode fazer o seguinte: vamo tomar café aqui mesmo? Eu faço uns sanduíches pra a gente, tem iogurte...
- ...leite com nescau...
- Lógicooooo né!
- Hahaha, tá. O que importa é a companhia.
Andou até o meio da sala. Eu estava penteando o cabelo, e o vi do meu quarto tirar a camisa.
- Aqui dentro é meio quente, né?
- Abre as portas aí! Na cozinha é melhor, menos abafado, pera que a gente já vai!
Ele voltou ao quarto e ficou me examinando passar creme no cabelo, desodorante, etc.
- Pra que esse creme aí?
- Abaixar a juba. Eu tô sem tempo de cortar esses dias, ele fica muito bagunçado, então... não tem jeito.
Ele se aproximou. Achei engraçado ele sem camisa e com a calça de linho azul da farda, ficava apertando a cintura dele.
Ele alisou meu cabelo. Falei, baixinho:
- E também o Walter me falou que... a gente que trabalha direto no sol... - fitei os seus olhos verdes - ...é bom colocar alguma coisa pra... proteger...
- O meu também tá precisando, eu acho. Não coloco nada.
Peguei no cabelo dele.
- O seu ainda tá molhado. Quer colocar um pouco?
- Quero.
- Vem cá.
Ele sentou na minha cama e eu fiquei em pé. Apertei o frasco para cair um pouco de creme, espalhei nas minhas mãos e me posicionei em frente a ele, que abriu as pernas pra eu me aproximar. Fui passando pelo seu cabelo, ele fechou os olhos e esperou eu terminar.
- Cheirinho bom, né?
- É... seu cabelo tá seco, Lilo...
Ele abriu o botão da calça.
- Essa calça aperta quando a gente senta, é horrível... - sua voz saía rouca.
- É, porque essas calças de pano têm a cintura alta, né? - estava demorando pra terminar aquele tratamento capilar.
Ele colocou as duas mãos na minha cintura, apoiando seus polegares no cós da minha calça jeans.
- Como é que você joga seu cabelo, hein? Pro lado, pra cima, pra frente? - perguntei, brincando com ele, jogando a cabeça pros lados e pra trás.
- Faz do jeito que você achar melhor aí, Gustavo - ele abriu os olhos e me fitou, sorrindo. Ele tava com uma expressão tão boa, mostrando uma satisfação por estar sendo cuidado por alguém - faz um jeito aí pra ver se eu fico bonitinho...
- Ah, isso é fácil, né? Você é bonito.
Ele ficou instantaneamente vermelho.
- Você acha?
- Eu acho. - apertei as bochechas dele - Gatinho. Deixa eu pegar uma toalha pra enxugar tuas orelhas.
Ele riu, balançou a cabeça e só fez um "ai, ai..."
Fizemos os sanduíches, conversamos, vestimos nossas camisas e na saída ele disse que não ia para a empresa não, que ia "ali".
- A gente vai almoçar aonde hoje? - perguntei ao Edu depois de colocarmos o papo em dia, estávamos em frente ao galpão.
- Sei lá. Quer comer o que?
- Qualquer merda. Não tou afim de trabalhar hoje não, sabe. Que horas são? Rsss.
- É, eu percebi que não tá mesmo, chegou aqui dez e tanta e já tá perguntando a hora!
- Êta mentira, kkk, eram nove e quinze! Rsss
- Hum. Você vai pra Feira hoje né?
- Vou sim. Marquei com a Mirelle de sair hoje, vamos tomar uma cerveja, como ela diz: molhar as palavras!
- Hahaha. Pow, se eu não tivesse aula, eu até ia contigo hoje também. Eu não tenho amor à minha vida mesmo, tô nem aí se a gente se esbagaçar nessa BR.
- kkkk, idiota! Eu tô dirigindo direitinho já. Relaxa. Vou ligar pro Murilo, ele tá relaxando hoje, rsss.
- Ele tá de folga, né?
- É, meio que uma folga. Parece que nem a Suzana veio hoje também, eles terminaram as vistorias dessa semana mais cedo e estão tranquilos. Mas também eles devem ralar pa caralho, né, rodando tudo aí...
- kkkkk! Pois é! Devem ralar meeeesmo.... Ai, ai...
- O que foi, peste?
- Ah, eu já tô ligado, pô. Ele me contou também que tá comendo a Suzana.
- A Suzanaaa???!????
- Êta porra, tu não sabia? Puta merda... vocês andam tão junto que...
- Não, relaxa. Morre aqui. Só fiquei surpreso, sei lá, ela é meio coroa, né?
- É, mas tá carente, começou a chorar no ombro dele, e ele ofereceu outra coisa melhor pra ela. Hahaha. Agora mesmo eles tão relaxando, curtindo a folga.
- AH, tá. Que ótimo! É um acordo bom pra todo mundo, né? Hehehehe.
Fiz um esforço pra rir e não demonstrar o que eu estava realmente sentindo.
...
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