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Tenho nos meus arquivos uma foto tão bonita desse domingo com churrasco...

(Aliás, mais tiramos fotos do que qualquer outra coisa).

A foto era: Murilo, eu e Edu, lado a lado. Ele se jogando em cima de mim e eu me jogando em cima do Edu. Aquele corpo grande com os braços atrás de mim e chegando no Edu, e como era fim de tarde, seu rosto ficou ressaltado pelo sol que chegava direto na gente. Seus olhos, mais claros que nunca, um sorriso de boca fechada. Eu com cara de sono, espremido entre os dois, e Edu de óculos escuros fazendo sinal de hang loose.


Na segunda-feira à noite o Otávio apareceu lá na república, por volta de nove horas; tomadinho banho, arrumado e perfumado. Os meninos olhavam para ele como quem examinava um alienígena que tivesse aportado na nossa varanda (aliás, eu me divertia muito com a reação das pessoas ao encarar um Otávio diferente, sorridente, animado e – quem diria - namorador). Ele ficou conversando conosco e nos convocou a ir assistir um show da banda que ele adora, a tal da Calcinha Preta, que tava rolando na cidade de Catu, a uns 50km de lá.

Eu já estava de touca e meia, pronto pra dormir, e os argumentos dos meninos de que era tarde, e que íamos pegar estrada, não foram suficientes para demovê-lo da ideia.

Ele esperou a gente se arrumar e fomos, eu, Di e Zoião, acompanhá-lo.

Enquanto eu me arrumava até liguei pro Murilo, mas ele não atendeu. Achei que seria bom se ele fosse conosco.

Chegamos lá por volta de onze horas, estava começando o show.


- Eu nunca vi tanta gente feia na minha vida, Di.. – eu estava contemplando a área.

- kkk, hoje tá brabo mesmo, Gu. Olha pra ali. Misericórdia.

- Aonde?

- Ali, ó. Ói que rebanho de mulher feia. Aquelas cinco, ali, ó, agrupadas. Só tem canhão, cara.

- Tô me sentindo no Iraque!

- É, mas... a gente também não é boa coisa não...

O Di protestou alguma coisa, mas eu nem notei. Tinha uma bonitinha que passou e me encarou. As amiguinhas dela não se salvavam. Pisquei pra ela e sorriu de volta.

- Ali, Di, uma se salvou. Ó lá!

- Aonde?

- Aquela de verde que tá com dois demônio do lado.

- Huuuum, tô vendo... Ela tá te dando mole.

- Eu pego ela e tu e Zóio pega as duas. Eu não conto pra ninguém não, relaxa.

- Não, amigo, eu não atendo pelo SUS. Fico sozinho mesmo, sem problema...

Rimos muito. Foi até bom ter ido, no fim das contas. Otávio, vidrado no palco, olhando as dançarinas fazendo seus passos sensuais e gemendo como se no ato sexual. Perguntei a ele, brincando, se Clara sabia que ele estava ali, mas ele acabou me surpreendendo com a resposta:

- Sim, liguei pra ela pedindo permissão...

- É o que, meninoo..?

- Claro. Falei até que você vinha junto comigo, aí ela deixou... Foi um interrogatório! Rss

- Ai, ai...

Mandei um torpedo pra Clara: "Tá de namoradinho, ne, descarada?"

Ela respondeu: "Ooouxe nem te conto ;)"

Aí que eu soube que eles se falaram o dia todo, e ele ficou de ir lá ainda no meio da semana para eles saírem...


Logo que terminou o show decidimos ir embora. Fizemos a filinha e, ao passar pela garota, a puxei e nos beijamos. Os meninos tiveram que esperar um pouco.


Há um tempo descobri que o Diego era craque em desenhos 3D, o que me ajudaria muito com alguns projetos meus. Alguns clientes tinham dificuldade em entender como ficaria sua casa, e esse tipo de apresentação ajudava muito, pois era praticamente uma foto do resultado final. Sabendo disso, em alguns projetos eu fechei esse elemento extra, e combinei com o Diego de ele fazer e eu repassar o valor. Ficou bom pra nós dois, ele pela graninha extra e eu pela satisfação do cliente. Nesta semana eu havia finalizado uma concepção e marcamos que eu iria dormir na república dele para que concluíssemos.

Saí da empresa, passei em casa, troquei de roupa e peguei uma muda. Fui de mototáxi até lá e já o encontrei em seu quarto, sentado em frente ao computador, adiantando o que podia.

Sem camisa.

Tomado banho.

De cueca samba-canção.

Me chamou.

Levantou.

Que pau enorme.

Me abraçou.

Sentei ao lado dele.

Cheirando a sabonete.

Cabelo molhado. Curtinho, sarará, mas molhado.

Ele, tão de perto, parecia ser até maior, com os braços enormes, definidos. O tórax dele era muito bonito, grande, mamilos durinhos. Ele me pedia explicações de algumas coisas e eu fazia um esforço hercúleo para manter a minha concentração no projeto, mas era complicado às vezes não descer meu olhar para alguns detalhes da sua anatomia. Além de tudo ele era atraente por natureza, charmoso. Carinhoso também, quando a gente conversava, ele tinha a mania de ficar com a mão na minha orelha, massageando.

Só que eu, travado como um Windows 95, não teria nunca coragem de avançar qualquer sinal. Além disso, o cara era um pegador inveterado, não tinha uma que passasse e lhe desse chance que ele perdoasse. Ele era uma máquina. Só na empresa eu perdi as contas de quantas entraram na sua lista.

- Me disseram que tu se armou lá em Cativis... – Diego me perguntou, falando baixinho, pois a república já dormia (ah, o sufixo ivis é pra não incorrer em rima, em caso de palavras terminadas com u).

- Foi, já no finalzinho..

- Uma mulher?

Olhei pra ele, espantado.

- Não. Um unicórnio.

- kkkkkkk!


Umas três horas depois, combinamos de marcar outro dia para finalizar, pois ainda estávamos na metade. Dava um trabalhão, eram muitos detalhes – e eu sou um pouco chato, confesso, às vezes ele se estressava com a minha mania de corrigir alguns pequenos itens.

- Nem adianta me olhar assim de banda, não tenho medo de cara feia. E se me matar não recebe o dinheiro. Vai tomar uma água, respira fundo, e volta pra a gente fechar isso e ir dormir.

Ele levantou, se espreguiçou na minha frente. Seu dote ficou ainda mais ressaltado, mas eu me contive, me limitando a juntar meus papeis.

- Olha pra cá, olha como eu tô... – ele disse me olhando com a cara mais descarada do mundo.

- O quê? – ele apontava pra a cueca. Ele estava ereto. Não muito, meia bomba. O suficiente para ficar bem volumoso. – ah, vai se fuder, Diego, porra! – fingi uma indignação pra disfarçar o interesse.

Ele gargalhou, balançando o membro. Eu peguei os papeis e fiz que ia bater nele, e ele saiu do quarto, dizendo que ia mijar pra a gente dormir. Meu colchão estava ao lado da cama dele, já arrumado.

As brincadeiras desses meninos. Ai, ai.


Mirelle me ligou no outro dia dando conta da fofoca da semana: Otávio tinha ido na casa delas, fez questão de entrar e conhecer a tia Malu, conversar com os meninos da Clara, antes de eles saírem pra jantar.

- O jantar era ela, né, tá ligado?

- Cloooro, né? Ele ia pegar essa BR pra ficar de mão dadinha? E ela, disse o que? Hahaha, que resenha!

- Eles foram pro motel, né? Mas mãe acha que eles foram pro Ki-Moqueca.

- Hahaha, tadinha...

- Ele comeu lambreta... kkkkkk!

- Tu não presta!

- Mas, ó, falando sério agora. Mãe não tá gostando nada dessa história não, viu. Ela disse que só recebeu o cara aqui por que ele era teu colega, e tal...

- Afff... eu imaginei. Essa situação da Clarinha aí, morando com vocês, quer dizer... por mais que sejamos próximos, ela mora casa da mãe do ex-marido dela, né? Que situação.

- Pois é. E ainda tem os filhos dela, que são muito novinhos, né, Gu? Minha mãe tem razão, em alguns aspectos. Eu tô achando muito precoce isso de ela mostrar o cara pra a família...

- Olha, Mi, eu também fiquei preocupado e surpreso, tá? Desde o sábado, que eles se conheceram, e ficaram, até hoje, que é só quinta-feira, eles já evoluíram muito... Não sei.

- Gu... esse cara tá separado mesmo?

- Mi, ele anunciou aqui na empresa e falou comigo que sim. Mas, sinceramente, eu não sei, eu não tinha aproximação assim com ele.

- É, vamos aguardar, né? Não dá pra fazer nada.

- Mesmo assim eu vou conversar com ele. Afinal de contas, meu nome já tá no meio, né?


- Olha, Gustavo, eu vou ser sincero com você – Otávio respondeu ao meu questionamento – eu estou separado, sim. – Hesitou – mas ainda moramos na mesma casa.

Eu apenas encarava ele.

- Por algumas questões práticas... somente. Eu posso te garantir que não temos nada mais um com o outro.

- Otávio, eu não quero que você pense que eu tô tentando te invadir, eu sei que é um momento complicado, mas é que...

- Ele pegou na minha mão.

- Gustavo, eu entendo. Eu entendo a sua situação. Mas relaxa. Eu não sou um cafajeste. Eu realmente tô gostando da sua prima, sim, e quero que dê certo. Os meninos dela são lindos.


Agora é oficial: eu tô viciado em Amy Winehouse.

Rose tinha me passado o CD "Back To Black", a primeira música que eu ouvi me tocou profundamente. Os arranjos de "Love Is a Losing Game" me marcaram, e eu devorei o resto do álbum. As letras, o jeito dela... Engraçado que eu imaginava uma negra de porte ao ouvir as músicas, e me surpreendi quando pesquisei a sua figura na internet.

Baixei o "Frank", não paro de ouvir. Foi bom pra eu me desapegar de "Sim", de Vanessa da Mata, o CD já tava quase furando.


Na sexta o Otávio foi comigo de novo pra Feira, adivinha porquê. Passamos lá na tia Malu, ela não tava com a cara boa pro meu lado, não. Conversei um pouco com Clarinha no quarto enquanto ela rosnava pro Otávio na sala de estar.

- Ai, Gu, tá tão bom... A gente conversa até altas horas por mensagem... ele me diz tudo o que acontece na vida dele, a gente dá tanta risada, sabe...

- É, tou vendo. Tu tá toda abestalhada.– parei para examiná-la – vocês conversaram sobre... a situação dele?

- Conversamos, sim. Ele me falou tudo. Eu sei que ele ainda tá morando na casa da mulher, quer dizer, da ex-mulher, mas que tá procurando casa nova pra alugar, ou até uma república, por enquanto. Eu não tô pressionando não.

- É, eu queria saber, né?

Ele me abraçou e me deu um beijo na bochecha.

- Ô gato, obrigado pela preocupação. Mas tá tudo bem, viu, tá tudo massa! Eu tô tão feliz! Ai, eu tô querendo tanto que dê certo, sabe? Largar essa vida de piriguetagem...

- Vamos ver se Deus tem um plano na sua vida... – rimos.

- Deixa eu te falar: a gente saiu na terça...

- Ele me falou.

- Tu acredita que ele nunca tinha ido num motel?

- Oi?

- Nossa, ele ficou tão nervoso, Gu... Explicou que era a primeira vez que ele ia, a gente entrou, eu escolhi um quarto lá...

- E enquanto ele era novato, tu já toda descolada...

- Claro, mas eu fingi que eu não sabia umas coisas, né, pra ele não sacar nada... kkkk!

- Pirigueteeee! Enganando meu amigo...

- Ele ficou todo gelado, nervoso, Gu, a gente teve que ficar conversando um pouco até, enfim, ele ficar mais à vontade, você sabe...

- Hum...

- É que ele na verdade está com a ex desde sempre, né? Começaram muito novinhos, acho que ainda estudavam no colégio. Então não tem experiência, assim, com muitas mulheres, né... Aaaai, tô xonada, gatooo!

Fomos pra a sala. Percebi a cara de bobo que ele fez ao vê-la entrar na sala, toda arrumada, e torci silenciosamente para estar enganado.


A quarta-feira depois desse fim de semana foi particularmente exaustiva. Justo o dia que eu tinha escolhido para fazer as vistorias de campo tinha sido um dos mais quentes; discuti com a funcionária de uma empreiteira por conta de uma medição de serviço; Valquíria me cobrou um orçamento pra ontem e acabei ficando depois do expediente. Resultado: contavam sete e meia da noite quando o mototáxi parou na porta da república. Deixei ele ir e me virei pra abrir o portão de madeira. Mas um carro com a marca da empresa se aproximava do meio-fio. Parei para observar. Era o Murilo.

- Nossa, sumido... Não te vi hoje lá, nem ontem... – me abaixei pra falar com ele pela janela do carona.

- Estava em Salvador, a Valquíria me mandou numa missão. Entra aí, pô. – Destravou a porta pra mim e eu entrei – Bom, pra mim foi até melhor, porque eu dormi lá ontem e fiz a matrícula na facu logo.

- Ô beleza... E aí, chegou agora?

- Acabei de chegar, pô, passei aqui pra ver se você...

- Tava entrando em casa, cheguei agora também. Tô morto de cansado, cara.

- É, você tá com uma cara horrível... rsss

- Cara horrível, eu, impossível, né? Falou besteira aí. Hahaha... Eu sou lindo.

- E modesto, né?

- Por falar em cara, a sua também não tá das melhores não. Cansaço?

- Nem é. Sei lá, tô meio... umas paradas aí. – ficou batucando as mãos no volante, o olhar perdido – você também não deu notícia esses dias, pô, só quer saber do amiguinho novo agora... pra cima e pra baixo com o "Tavinho"...

Me debrucei no painel do carro.

- Olha, Murilo, eu não tou nem com energia pra te responder, viu... - encostei a cabeça em cima do porta-luvas - hoje você pode falar besteira à vontade.

Ficamos calados um tempo.

Ele se recostou no banco e eu continuei debruçado.

- Quer um cigarro? – ele me perguntou.

- Não, agora não. Quero tomar um banho, relaxar, assistir a novela das gêmeas...

- Vixe, tá me dispensando... Entendi. Vou deixar você em paz – se ajeitou e ligou o carro – só queria conversar um pouco.

- Quem disse que eu tô te dispensando, porra? Só falei que eu não quero o cigarro agora. Quer entrar não?

- Não, não. Acho melhor eu ir pra casa mesmo. Vou ver como é que estão as coisas lá.

- Teve alguma coisa?

- Não, não. Nada de importante. – ele me olhou – ia te chamar pra a gente tomar uma, conversar um pouco, cara, mas você tá todo metralhado.

Eu estava de fato um bagaço, mas algo nele me fez sentir que ele precisava desabafar.

- A gente pode sair aqui por perto mesmo, comer alguma coisa. Tem um trailer no fim da rua, aquele que a gente ficou no dia do niver do Di.

- Por mim, pode ser. Você que sabe.

- Então tá.

- Eu vou deixar o carro aqui e a gente vai andando. É ruim ficar com o carro da empresa parado em porta de bar.


Pedimos um tira-gosto de carne do sol e uma cerveja. Ele pediu pra eu detalhar meu dia, ele falou da correria dele, me mostrou o comprovante de matrícula todo dobrado na carteira... conversamos muito.

- Olha o celular que eu comprei – ele estendeu a mão pra me mostrar o aparelho.

- Pô que massa. Eu comprei esse aqui, ó.

- Xô ver. Hum... Tira foto, toque polifônico. Mas é Motorola, pô, vai dar problema. Você vai ver. Eu só compro Nokia, é o melhor.

- Ah, que nada, esse é bom também.

- O meu é o N71. Ele desliza, ó, é melhor que o seu que é de flip – ficou abrindo e fechando meu V220 – isso aqui sempre dá problema.

- Para de urubuzar meu negócio! - Tomei o aparelho da sua mão - Eu adorei. E comparando ao que eu tava, meu filho, é um salto. Aliás, nem era meu aquele aparelho que o ladrão levou, era da Mirelle, minha prima.

- Mas aquele, vocês não perderam muita coisa, né? Rssss.

- kkk, não mesmo! O ladrão deve ter ficado numa raiva da porra quando percebeu a merda que ele roubou! O teclado já tava todo branco, parecia barriga de lagartixa...

- E a tela tava rachada, não foi?

- Acredita que Mirelle disse que ainda vai me cobrar?

- Você que devia cobrar a ela por ter dado um fim naquilo...

- Pois é! Ah, a galera adorou meu celular novo. Tô tirando altas fotos. O Diego disse que quer um igual.

- Você dormiu lá na casa dele semana passada, né?

- Sim. A gente tá fazendo um trabalho junto, um projeto meu. Temos até que finalizar isso.

- Aí, você vai pra lá de novo? Quer dizer, tem que terminar, né? É projeto de quê?

- É uma ampliação da casa de um cara que está noivo e vai casar, então tem que ficar tudo pronto até fevereiro do ano que vem. Como a noiva tá com problema pra visualizar o antes e o depois, e a fachada também é um pouco ousada, eu pedi ao Didi pra fazer o 3D pra mim. Vai ficar muito bom.

- É, ele broca no AutoCAD. Só não sabia que ele fazia 3D também.

- Você já sabe CAD?

- Inda não. Tenho que ver isso. O caso é tempo, eu teria que ver um curso enquanto eu tô de férias, no período de aula não dá.

O telefone dele, que ainda estava na minha mão, tocou. No impulso, acabei olhando pra a tela antes de devolvê-lo. Priscila.

Entreguei a ele, mas ignorou, colocando o aparelho no bolso.

- É, mas é super importante pra sua formação o CAD, vê se faz logo.

- E ainda acabo trabalhando contigo aí, né, batalhando um... rsss

- Com certeza, tendo pra mim, tem pra todo mundo! – brindamos.

Ele pegou o celular, que estava tocando novamente.

- Tá dando seu horário, é? – perguntei – se quiser atender, fica à vontade.

- Vou atender não. Se ela ver que eu tô na rua, é problema. A gente se falou mais cedo, e eu disse que não ia passar na casa dela hoje porque tava cansado da viagem.

Por um breve momento nossos olhares se cruzaram e fiz cara de surpresa. Ficamos constrangidos com a mensagem que ficou no ar. Ele não quis ver a namorada, mas chegou e passou direto na minha casa? Ele emendou:

- E se ela souber que eu tô contigo, então, aí que eu tô frito mesmo? Hihiihih

- Porque, gente? Eu nem conheço ela.

- Mas ela já conhece a tua fama.

- Fama...?

- Então você não tá sabendo não? Eu, que estava em Salvador, já fui informado que você é o novo destruidor de lares de Camaçari, e você aqui, pertinho...

- É o quê? – eu não estava entendendo nada.

- Porra... a história do Otávio. Márcio me ligou dizendo que ele se separou da mulher porque você levou ele pra Feira e aí ele caiu na putaria...

- Que é isso? Márcio tá maluco?

- Ah, mas não é culpa dele não, pô. Ele me falou porque a mulher do Otávio já sabe que foi você que levou ele pra lá...

- Eu não levei ninguém não, cara, ele que se escalou...

- Sim, tô dizendo a versão que tá rolando... e que você ainda arranjou mulher pra ele lá, aí fodeu tudo.

Murilo se divertia com a minha cara de assombrado.

- Mas relaxa, pô. Ela nem te conhece pessoalmente.

- Não, eu não tô preocupado com ela não. Quero mais é que ela se arrombe, nem conheço essa imbecil. Tô pasmo é com a língua do povo, como uma história é deturpada assim.

- Eu sei. Eu conheço a versão real, eu tava junto quando o Otávio se convidou pra ir com vocês lá. Mas é assim mesmo, o pessoal não descansa.

- Logo eu, tão inocente...

- Aí também não, né? – rimos.

- Sim, mas o que sua noiva tem a ver...

- Não, é que eu contei a ela, e tal... a gente tava conversando... aí rolou o papo...

- Vocês não têm nada melhor pra conversar? Ficar falando de mim, eu hein.

E o celular tocava.

- Amanhã você vai dizer que estava dormindo e não ouviu tocar.

- Não, por que ela vai ligar lá pra casa. Vou dizer que cheguei tarde, rsss.

- É... enfim...

- Que foi?

- Nada.

Mudamos de assunto.


Conversamos sobre a empresa, sobre os colegas.

- Ele tem uma cara de idiota da porra, né? Mas é gente boa...

- A Valquíria é dez, cara, adoro ela...

- Meio fechada, mas gente boa...

- E o Edu? Vocês não se desgrudam, né, Gustavo?

- Você e seus exageros. Eu A-DO-RO Edu, sim.

- Os companheiros na esculhambação alheia, né?

- Tá com raiva porque ele implica contigo, né? Mas você também provoca que eu vejo...

- Nada disso, pô, tenho minhas opiniões, aí ele vem atacando já...

- Não, ele debate também, aí você já leva pro lado...

- Aí, tá vendo? Aí vocês se juntam e começam a me esculhambar. É foda, véi.


Conversamos sobre nossos planos futuros.

- Eu adoro essa área de projetos, sabe? Meu sonho é trabalhar com isso. Mas eu sonho tanta coisa.

- kkkk, é, meu problema é esse também. Quero ser engenheiro, empresário...

- ...piloto de avião...

- ...músico!

- Músico! Mentira! Eu também! Kkk! – juntei as mãos.

- Ah, eu queria aprender, tocar numa banda de rock... guitarra!

- Ah, não, eu queria ser cantor de axé! – comecei a rir.

- Ó pra isso! Você é chinfrim...

- Porquê? É tudo música, meu filho, é cultura! Imagine eu subindo no trio, no carnaval de Salvador – imitei um microfone com uma das mãos e com a outra comecei a agitar – "E aí, galeraaaa! Tira o pé do chão!!!"

Murilo botou a mão na barriga de tanto rir. Começou a me dar tapa pra eu parar.

- Que nada, cara! Rock é que é som! Às vezes eu ficava em casa só testando minha entrada no palco, assim, com a guitarra aqui – imitou a pose, fazendo cara feia – e a galera indo ao delírio, gritando...

- E tem que fazer essa cara de brabo assim – imitei ele.

- Claro – imitou um acorde – "AAAAaaaaaaah!!!!"

Imitei a plateia, fingindo que tava rasgando a camisa. Nunca ri tanto.


Conversamos Sobre o Amor.

- Sei lá, isso que você tem, assim, com a sua noiva... acho um pouco estranho.

- O que? As mentirinhas?

- Não, nem isso. Mentirinha é até normal, eu sei disso. Eu digo é... ah sei lá. Essa sensação de prisão por estar num relacionamento, de não poder sair com um amigo...

- Não, você interpretou errado. Hoje, especificamente, eu não tava afim de ir lá, e achei melhor não polemizar, entendeu?

- É mais fácil inventar uma mentirinha boba do que encarar uma DR.

- É... mais ou menos isso. Pra resumir.

Parei um pouco.

- Você gosta dela? Digo, você a ama?

Ele acendeu um cigarro.

- Gustavo, a gente tá junto há seis anos. Se eu não gostasse dela, seria no mínimo estranho, né? Rss.

- Você entendeu. Amar. Conexão.

- Defina amor. – me estendeu a mão pra eu pegar o cigarro.

- O que você sente por ela, seria amor? Você definiria como amor? Ou como o que?

- Defina amor.

- Diga primeiro. – devolvi o cigarro.

Ele suspirou. Deu um trago.

- A gente se dá bem, pô. Quer dizer, a gente briga muito, ela é muito ciumenta. É uma rotina meio louca, porque é muita discussãozinha, sabe? Mas o bom é que depois, o sexo de fazer as pazes é bom demais.

- Hum.

- É meio que uma dinâmica pra apimentar. A gente briga, faz as pazes, rola uma foda massa, a gente fica bem, se dando bem...

Cocei a cabeça. Eu não estava satisfeito com a resposta.

- Eu sei o que você queria que eu dissesse. Que a gente se ama pra caralho, e que ela é a mulher da minha vida, e tal...

- É, por que se vocês estão juntos, né... pelo menos enquanto isso...

- Sim! Agora diga. Defina amor.

Eu apenas olhava pra ele, procurando uma resposta.

- Me responde. O que é o amor, pra você?

- Eu não sei o que é o Amor.

Seus olhos verdes me encararam com uma surpresa calada.

- Eu não sei o que é o que eu acho que seja o Amor, com A maiúsculo. Sei o que é o amor platônico, por exemplo. Posso citar vários tipos de amor...

- Você já teve algum relacionamento longo, assim?

- Um mês e meio, o mais duradouro.

- Caralho...

- Mas já amei. O que eu acho que preciso conhecer, ou não sei, me certificar de que não existe, é o que eu acho que seja o Amor. O Correspondido em intensidade e tipo. Aquela conexão inabalável entre duas pessoas, aquela vontade de fugir e não conseguir... Uma entrega ao outro. Um cuidado.

- Coisa de filme e de novela.

- Será? Será que você ou eu não vamos encontrar alguém pela vida e que, dali pra frente, tudo vai mudar? Aquela pessoa que quando você pensa uma coisa ela já adivinhou o que você quer, e que conhece sua história, sabe seus defeitos, te ajuda a melhorar, e você a ela...

- Romantismo demais. Sei lá, eu não sei se vale a pena acreditar nisso.

- Porque não? Não digo posse, porque isso é ruim. Cada um ter a sua individualidade, seu espaço, mas... QUERER estar dividindo a vida com o outro.

- Formar uma família e dar netos para os seus pais não bastaria não?

- Não, de jeito nenhum. Pode até ser, se isso incluir ser feliz. Me dá o cigarro. E não precisa me olhar com essa cara como se eu fosse um alienígena.

- É que, você... – me deu o cigarro – deixa um confuso. Quem te vê não enxerga que você tem essa visão disso tudo.

- O destruidor de lares, né?

- Farrista, meio maluco, anti-relacionamento-estável...

- Pois é. Isso é só uma parte de mim que você conhece.

- Você também conhece muito pouco de mim.


Conversamos sobre nossos pais.

- Eu percebi que houve algo contigo aí e com tua família – ele fez menção de falar alguma coisa, mas eu o detive com a mão – não precisa falar, já vi que você não quer tocar no assunto, mas...

- Não, nem é isso. Eu tou pra baixo hoje, sim, mas não tem nada específico. Tem umas coisinhas com meu pai, umas questões, vamos dizer assim, mas isso acho até que é natural numa relação familiar.

- Essa safra de pais que surgiu aí, sei não. Acho que deu alguma merda. Meu tio é um louco, o pai da Mirelle, apronta cada uma... O pai da Rose, uma colega minha, abandonou a família porque já tinha outra... enfim...

- O meu pai, ele... é até injusto falar, porque ele sempre foi presente, sabe? Não tem muito o que falar. É só sobre algumas coisas que eu sinto.

- O quê? É bom falar, pô.

Ele olhava pra a mesa, distante.

- Eu tenho outro irmão, mais novo. Sei lá, meu pai é muito rígido, a educação era na base da porrada braba mesmo, sacou? Mas eu sempre levava a pior. Com o Júnior ele deixava passar algumas coisas, orientava, batia também... Mas comigo... – ele desfiava um copo descartável enquanto falava, a feição transbordava uma tristeza, um sofrimento, que nem se ele chorasse exprimiria tão bem – ele era severo... Ele me batia de um jeito que não se bate numa criança não, pô. Era com pau, às vezes, pedaço de fio, era uma violência que não justificava. Era espancamento mesmo. E não foi uma ou duas vezes. E nem tinha só isso. Tinha aquele olhar, de... de...

- Repreensão...

- Reprovação, também... Sei lá, às vezes eu achava que era o filho que ele não gostava.

- Às vezes era porque você era o mais velho, e aí com o segundo filho ele já aprendeu a dosar, sei lá... é tão difícil tentar entender certas coisas...

- Pior que hoje eu ainda tenho essa sensação. Acho que, por exemplo, ele não acredita que vá conseguir me formar, sabe, ou consiga dar um neto pra ele...

- Mas você vai conseguir sim. – apertei seu ombro – Vai se dar bem e ele vai aprender a ser uma pessoa melhor.

- É...

- A gente tem uma visão de que os pais tinham que ser perfeitos, super-herois... Às vezes eu me sinto melhor quando penso que eles são só pessoas como nós, que, por um evento, pariram. Mas continuam com os seus defeitos. Pelo menos eu me sinto melhor assim quando lembro assim dos meus.

- Mas é difícil quando seu pai te espanca, sei lá...

Respirei fundo. Tomei coragem pra falar algumas coisas de mim.

- Murilo... minha infância não foi nenhum mar de rosas, muito menos a minha adolescência...

- Seu pai, ele...

- Ele era alcóolico. Sabe, meu pai eram duas pessoas: o cara são, sóbrio, uma pessoa tranquila, de temperamento dócil, quase apático, brincalhão... e outro que, quando bebia, era um monstro de agressividade...

Ele apertou meu joelho.

- Imagine uma criança de cinco, seis anos, que espera o pai voltar do trabalho, mas não sabe como ele voltará... e quando vê que ele demorar a chegar, já começa a torcer para que aquilo não aconteça de novo... e quando ouve o barulho do portão abrindo, treme de medo, porque sabe que ali estava chegando o monstro, e não, o pai.

- Ele...te...

- Sim. Me espancava. Eu não sei porque, acho que porque eu era o homem e ele não tinha coragem de bater nas meninas, mas ele já vinha pra cima de mim. Me batia com tijolo, me jogava na parede, me feria, me cortava às vezes. Minha mãe tentava controlá-lo, mas era em vão, porque ele se tornava muito forte na hora da fúria, e ela acabava apanhando também. E quando ficou grávida da Drica, ela não conseguia ser o escudo.

- Nossa, cara, eu aqui falando minhas coisas...

- Minha irmã Drica nasceu prematura, justamente porque ele bateu em minha mãe, pô.

Suspiramos.

- Mas, enfim. Eu, criança que amava o pai, sempre perdoava quando ele vinha no outro dia me apertando forte, me pedindo perdão, se acabando em choro... jurando que nunca mais ia acontecer.

- Desculpa por te fazer lembrar disso. Foi mal.

- Não, foi bom. Dizem que falar é bom.

- Falar é bom. Tá. Vou dizer a meu pai umas verdades – tomou um gole da cerveja e rimos, ele levantou o indicador – podia ter até a porrada, pai, mas um abraço também, né, pô!

Ri do jeito dele.

- Ele não tinha o costume de dar carinho, não?

- Não. É fechadão. Não abraça. Às vezes um abraço faz falta, rss.

O dono do trailer avisou que estava fechando.

- Tá na hora. Murilo, você conseguiu arrancar o restinho de carga do meu organismo, agora eu tô game over!

- hahhaha, pô... desculpa aí, mas eu vou te dizer que não me arrependo. Foi muito bom conversar, te procurar, trocar essa ideia. Eu, sei lá, acho que precisava disso.


https://youtu.be/ZxQullDF-I0


Voltamos andando, preguiçosamente, as duas quadras que nos separavam até a minha porta, onde estava o carro. Ele andava com as mãos no bolso, distante, pensativo. Eu parei no meio do caminho.

- Que foi? –ele parou, e eu o fitei – eu sei, ainda não tô cem por cento, né? Vai melhorar...rsss.

- Murilo, a gente conversou pra caralho, isso é bom. Mas você falou um negócio lá que... acho que ajuda se... – hesitei, mas acabei tomando coragem – ...será que se eu te der um abraço melhora?

Abri os braços, um pouco desajeitado e inseguro. Ele, num impulso, olhou pros lados pra ver se não tinha ninguém na rua. Entendi que ele não tava à vontade. Fechei meus braços e dei de ombros.

- Eu só...

- Não, pô... – ele segurou meu ombro. Parou, cerrou os lábios, e abriu os braços. Eu o abracei e encostei a cabeça em seu peito. Ele não fechou os braços, todo sem jeito, parecendo um espantalho; apenas me deu dois tapinhas nas costas e eu me afastei. – não tá dando certo não, pô... você é pequeno demais, fica parecendo que eu é que tô te consolando...

- É mermo. – ri do idiota e me afastei. Rimos, um pouco envergonhados.

Olhei pro lado, avistando a rua, e tive uma ideia. Peguei na mão dele e saí arrastando.

- Que foi, porra? – ele andava inclinado pra trás, e eu o puxava, com alguma dificuldade.

- Vem cá, que vai dar certo agora...

Logo mais à frente tinha um passeio, com uma altura em relação à rua de mais ou menos uns trinta centímetros. Subi nele e aí fiquei um pouquinho mais alto que o Murilo.

- Ah, eu não acredito... – ele cobriu o rosto com as mãos, e balançou a cabeça, quando eu abri os braços novamente, dessa vez rindo também.

Ele lentamente encostou a cabeça no meu peito, e eu fechei os braços em torno dele. Alisei as suas costas, e subi uma das mãos até sua nuca. Ele deu um suspiro longo, sentido, e acabou fechando os olhos, cedendo ao abraço.

Não existia mais passeio, nem rua, nem noite. Existia um lugar numa dimensão diferente daquela em que nos encontrávamos, onde somente nossos corpos e nossos pensamentos se complementavam.

Enfiei meus dedos nos seus cabelos e lhe fiz um afago na nuca. Senti seus braços apertando as minhas costas, e senti suas mãos se fecharem, juntando o pano da minha farda, cada vez mais forte. Cheirei o seu cabelo, apoiei minha cabeça e o apertei, esperando que ele matasse a vontade da criança que havia nele, a vontade do abraço amoroso que talvez o tenha faltado.

E mais tarde, já na minha cama, sozinho, agarrei o travesseiro esperando sentir novamente a emoção daquele abraço, querendo que ali estivesse o menino grande e carente de quem eu sentia vontade de cuidar, proteger, e assim evitar que os males do mundo o atingissem novamente.

...

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