02

Eduardo me levou para conhecer as instalações da empresa da qual eu faria parte de agora em diante. Conheci as salas, os depósitos atrás do galpão, fui apresentado a um monte de gente (no fim do dia não lembraria o nome de ninguém), respondi às mesmas perguntas milhões de vezes, e enfim, cheguei à minha mesa de trabalho. Quer dizer, tô sendo generoso, porque na verdade era um "canto" de trabalho. A sala era grande e trabalhavam, além dos quatro engenheiros, mas dois estagiários. Havia uma bancada em forma de L, colada nas paredes do recinto, donde se distribuíam quatro computadores, plantas, impressoras, etc. No meio da sala havia uma mesa redonda, com quatro cadeiras, para reunião, talvez.

O computador que me foi destinado ficava num dos cantos da bancada, muito próximo de outra máquina. Fiquei imaginando como eu me mexeria ali.

- Bom, provavelmente você vai ficar nessa máquina aqui – apontou pro canto – mas como tem mais gente que computador, às vezes rola uma dança das cadeiras. Quando um tá em campo, o outro usa – explicou Eduardo.

- E quem é que usa esse do lado? É muito próximo...

- Esse quem usa é o desenhista. Ah, olha ele aí!

Entrou um rapaz alto, moreno, olhos castanho-claro, feições viris.

- Diego, esse aqui é o engenheiro novato, Gustavo.

(Que boca carnuda.

Que braço.

Que peitoral.

Que tanquinhoooo!)

- Oi, prazer, Diego.

- Tudo bom? – limitou-se a dizer.

Sentou na sua cadeira e lá ficou, de costas. Por falar nisso, que costas...

Eduardo interveio:

- Gustavo, é esse o cara que o Daniel tava falando. Eles moram na mesma república. Diego, ele vai dormir lá na república hoje, Daniel combinou com ele. Tem como tu levar ele lá quando tiver saindo daqui?

Ele se virou, meio cara fechada.

- Tranquilo, beleza.

- Não incomoda, não, cara? Qualquer coisa, eu me viro – falei.

- Não, que é isso, incomoda nada. A gente tá acostumado lá a acolher os broder, enquanto arranjam o lugar de ficar, e tal. Relaxa – disse ele, forçando um sorriso.

- Então tá.

Eduardo me deixou lá e eu sentei na cadeira ao lado do tudo-de-bom. Poxa, inda por cima era cheiroso... Tô perdido.


Fiquei a manhã tentando olhá-lo mais um pouco, sacando o colega. Poxa, ele era perfeito. Quer dizer, perfeito não, porque na verdade ele tinha umas pernas meio finas em relação ao toráx e braço, e eu não acho legal essa estrutura corporal. Mas o conjunto da obra era espetacular, e ele tinha um jeito assim, meio sacana, um olhar que parecia sempre dizer: "quero sexo", uma marra, sei lá... Ali desperta qualquer defunto.

Olhei no relógio do computador e estava marcando 11:50hs. Nem tava com fome. Levantei, peguei minhas coisas e falei com ele:

- Bom, vou almoçar.

- Já?!?

- É, nem tou com fome, mas já são meio dia quase... o Daniel falou que é ruim sair daqui, né..

Ele espichou o olho pro celular

- Broder, são 10:50hs. Não é tão ruim assim sair daqui não.

Resultado: o computador estava configurado pra o horário de verão. Quando eu percebi isso, o Diego deu uma gargalhada tão alta da minha cara de bunda, que até uma menina da sala do lado veio ver o que era. Que mico, kkk. Sentei de novo.

Fiquei tentando configurar e-mail novo, lendo regulamentos, aproveitei também para ver imobiliárias no horário do almoço. Fiquei chocado com os valores dos imóveis. Não daria MESMO pra alugar casa sozinho, teria que ver república, como o Daniel sugeriu.

Almocei sozinho.

À tarde, eu fui à sala de Eduardo para tirar uma dúvida. Quando estava próximo à porta, acabei ouvindo uma voz lá de dentro:

- Nada disso, você demorou demais lá atrás com ele, tava fazendo o que, hein? Kkkk, olha que ali parece que gosta, viu...

Nesse momento o dono da voz abriu a porta de vez, e topou comigo. Era o encarregado de campo. Tinha mais dois caras lá dentro, operários, que também estavam rindo, mas que estacaram na hora. Todos se entreolharam, e o comportamento deles denunciava que estavam falando de mim. Eduardo estava visivelmente contrariado.

- Oi, Eduardo, eu queria tirar uma dúvida... – falei, meio constrangido.

- Opa, Gustavo, entra aí. Os caras já estavam de saída. Né, Lúcio?

O cara estava prendendo o riso.

- Sim, sim. Com certeza. Vamo lá, pessoal, trabalhar. Edu, vê a dica que eu te dei, viu, rapaz! Kkkk

- Para de falar merda, Lúcio e vai trabalhar!

Saíram os três, e de lá de fora ainda ouvi risos. Eduardo passou a mão na testa, um pouco tenso, depois passou a mão nas calças, como se estivesse enxugando suor.

- E aí, tudo tranquilo? Pode falar, qual é a tua dúvida?

Saí do transe e sentei em frente à sua mesa.

- É sobre esse regulamento aqui, você me deu um endereço na intranet pra eu baixar, mas não consegui...


Voltei pra minha sala um pouco aéreo, massageando minha testa. Poxa, o que aqueles caras já estavam insinuando de mim já no meu primeiro dia? Afinal de contas, eu não saí da sala, praticamente, exceto quando fiz a ronda com o Eduardo, não entabulei conversa com ninguém, nada que pudesse despertar alguma curiosidade fora do normal a meu respeito... Tou dando bandeira assim? Não queria ser estereotipado nem nada.

Descobri ainda que Diego, o colega que me levaria à república já tinha ido embora, aparentemente me esqueceu lá. Resolvi ir pra a rodoviária e voltar pra minha casa mesmo.


Cheguei em casa perto de oito da noite.

Geralmente, numa família normal, quando o filho torna à casa depois de um dia de trabalho, sobretudo se este for o primeiro trabalho depois do cara estar formado, existe, assim, uma expectativa por parte dos entes queridos de saber como foi o dia. A mãe pergunta se o filho se alimentou, se gostou das pessoas, se quer comer alguma coisa, "eu esquento a janta, é rapidinho"...

Mas, lá em casa, é tudo diferente de... normal.

A minha mãe, Estela, há um par de anos convive com uma doença estranha de fundo emocional, que provoca dores por todo o corpo, desmaios, convulsões. As crises começaram quando eu ainda estava na faculdade, e no início este processo de investigação e diagnóstico acabou me custando um semestre inteiro.

Além disso, ela tinha uma personalidade um tanto explosiva, extravagante. Uma pessoa maravilhosa, generosa, porém, um pouco bipolar. Quando estava depressiva, fazia questão de levar o humor de todo mundo junto, através de um festival de queixas, choros, malcriações. Quando estava alegre, queria dar uma festa, comprar roupas novas e presentes, ligar pra todo mundo, reformar a casa, viajar pelo mundo – esquecendo só que a gente vivia na corda bamba.

Morávamos eu, minha irmã mais nova (Adriana), minha mãe e minha vó. Essa é outra que também não fica atrás. Velha de personalidade forte, inflexível. O oposto de minha mãe, que é puro emocional, Dona Eliza é uma pessoa rígida, autoritária, às vezes até um pouco fria. Ela sempre morou conosco (na verdade sempre moramos com ela, pois minha mãe casou e trouxe o marido pra dentro, e foi tendo filho, tendo filho), e com isso fez parte importante na nossa criação. Por serem de personalidades tão diferentes, ela e minha mãe brigavam muito. Minha vó achava minha mãe uma pessoa fraca e esta achava a outra insensível.

Minha irmã mais velha – Mônica – se casou há alguns anos. Era parceira forte nas festas, adorava sair, namorar, enfim, uma piriguete convicta. Conheceu um carinha, se apaixonou por ele, começaram um relacionamento sério. Aí o cara veio com um papo de encontrar Jesus, ela foi lá, eles se converteram, e hoje ela é integrante da Congregação de Cristãos de Não Sei O Quê. Usa véu na cabeça, saia até o pé, não corta cabelo, não xinga, é outra pessoa. Ô glória.

Minha irmã caçula é meu xodó, cinco anos mais nova que eu. Tá na batalha do pré-vestibular, eu tou pagando um cursinho pra ela. Ela é tímida, procura ser responsável, estressada, inseguuura que só ela. Tenta ficar focada nos estudos no meio desse lar maluco. Pra tudo me liga, pedindo aconselhamento. Somos muito apegados.


Bom, cheguei em casa, minha vó estava no fogão. Minha mãe, com uma aparência péssima, tomando café, cabisbaixa. Todo mundo em silêncio. Parecia que tinha um caixão na sala. Adriana veio falar comigo.

- E ai, Gu! Veio hoje... – Me arrastou pro quarto.

- E ai, como é que estão as coisas?

- Aff... Passou o dia todo na cama, reclamando de dor, dizendo que queria morrer. Vó foi lá e reclamou com ela, e aí brigaram.

- Vixe...

Ouvi as vozes alteradas da cozinha. Elas estavam brigando novamente. Minha mãe gritava que minha vó não a respeitava, que ela era insensível, minha vó dizia que ela era mole, etc.

- Aí, ó, Gu, como é que estuda desse jeito? Eu chego do cursinho e é esse inferno.

- Calma, fica aqui no quarto, quietinha.

Mas a discussão só fazia piorar. Quando eu saí do quarto me deparei com uma cena terrível. Elas já estavam muito alteradas. Minha vó gritou para minha mãe que ela deveria morrer logo, já que não aguentava nada, e minha mãe perdeu a cabeça: jogou a xícara de café no chão, abriu o braço e deu um tapa na cara da vó Liza, que caiu no chão.

Nossa, minhas pernas tremiam. Corri até lá e elas gritavam impropérios uma pra a outra. Ajudei minha vó a se levantar, estava muito nervosa.

- A senhora nunca gostou de mim, sempre me odiou!! Monstroooo! Monstrooo!!!

- Ingrata, malditaaa! Devia ter te abortado quando eu pude! Miserável!

- Miserável é a senhora! Eu vou sair dessa casa, eu vou embora daqui!! Quero morrer, meu Deus!

- Como é que bate na própria mãe? Não vale nadaaa!

Minha mãe começou a jogar a louça no chão, minha irmã tentava segurá-la, os vizinhos vieram. Um barraco completo. No meio da discussão minha mãe ainda se virou contra mim. Segundo ela, larguei família e mãe doente e fui pra outra cidade pra me livrar do fardo. Ela estava louca. Tive que gritar com ela também, mas não incendiei, o negócio já estava feio demais.


Depois de um tempo, Adriana tentava controlar o choro de minha mãe no quarto, enquanto eu acudia minha vó e tentava arrumar a cozinha, o palco do MMA familiar. Depois ainda tive que ir na farmácia comprar uns remédios, verificar a pressão da D. Estela, esperá-la dormir, para daí tirar a roupa do trabalho, tomar banho, comer e arrumar as coisas do dia seguinte.

Minha irmã quis dormir comigo pra se acalmar. Começamos a conversar besteira, ela me contou umas histórias do cursinho dela e acabou adormecendo. Olhei no relógio. Quase uma da manhã.

Coloquei o despertador para as quatro e meia e tentei dormir, mas não foi tão fácil. Fiquei refletindo sobre mil coisas ao mesmo tempo.

Eu estava indo pra outra cidade por que estava cansado, sim, de cuidar e resolver problemas familiares. Minha vida estava em segundo plano. Procurava não me sentir culpado com isso. Já pagava o cursinho da minha irmã, algumas despesas da casa, acompanhei dona Estela em tudo quanto foi médico, então acho que minha parte eu tava fazendo.

Lembrei de Daniel, gente boa e bonitinho, e Diego, tesudão. Lembrei do idiota com seus comentários idem, e adormeci, pensando em tanta coisa.

...

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