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09 de junho de 2014.

Um colega meu morreu ontem.

Conheci na facu. Estudamos juntos, militamos no movimento estudantil, bebemos muito e demos muita risada juntos.

Morreu de pneumonia, uma doença besta que cura com antibiótico.

Morreu de vontade de morrer. Não, falta de vontade de viver. Sei lá, tô só achando isso.

...

Ontem também conheci um cara super legal no Orkut. Já o tinha adicionado, na verdade, mas ontem ele tava online e puxei papo. Resultado: ficamos conversando bobagem de sete até mais de meia noite. Nesse meio tempo recebi a notícia da morte do meu colega e ele ainda me amparou. Olha só: meu amigo novo me ajudou a superar a ida do amigo velho.

Ele realmente salvou meu dia.

Hoje tá fazendo frio aqui (para os padrões da Bahia, claro. Um paranaense estaria de sunga). Cheguei em casa e liguei o chuveiro no modo inverno. A resistência tá queimada. Dei quinze pulos e tomei meu banho frio.

...

Meu amigo novo me adicionou no whats. Estamos conversando enquanto escrevo no meu diário. Tá reclamando atenção (ele é igual a mim, então, apegado, possessivo).

Outra pessoa também me chamou no whats. Esse eu já preferia que tivesse ficado quietinho. Mandou o áudio de uma música que... enfim, tem uma história. Nem vou me abalar com isso. Eu, hein. Vai se tratar, maluco.

...

Pela primeira vez vou postar essas coisas que escrevo pra alguém. Sempre tive o costume de escrever minhas coisas, mas nunca tive coragem de mostrar pra ninguém. Agora abro pra um monte de desconhecidos, para quem também sou um desconhecido. Isso facilita.

Amanhã cedo ligo pro eletricista, não gosto de banho frio no frio.

Antes de dormir fazer uma oração pro meu colega que se foi, e me despedir do meu amigo novo, que já me apeguei.

E mandar esses escritos bestas pro universo, que se perca no meio de tanta informação e toque quem tiver que tocar. Tem muito tempo que quero fazer isso (vou colocar outra postagem que prova isso), falta-me coragem de colocar a cara a tapa. Agora vai de qualquer jeito, com erro, sem conteúdo, nexo ou atrativo.

Beijos a todos.


Terça-feira do carnaval de 2014.

Tô aqui, sentado na minha poltrona de madeira com assento de sisal, na minha varanda de troncos de eucalipto adornada com luminárias de barro, no meu cantinho preferido do mundo, a cidade de Lençóis, na Chapada Diamantina, estado da Bahia.

A tarde está linda, contrariando a previsão do tempo, de chuva a maior parte do dia. O sol está bem alto, mas a brisa sempre chega aliviando o calor e fazendo o conselheiro do vento soar. O passarinho canta, e pra onde se olhe só o que se enxerga é mato, mato e mato. Adoro.

Há alguns instantes estava me despedindo de alguns convidados que vieram passar o carnaval, entre eles minha irmã e uma de minhas melhores amigas. Gostaria também de ter ido, afinal de contas a quarta-feira de cinzas tem trabalho, e gostaria de chegar em casa a tempo de lavar umas roupas, cortar o cabelo, enfim. Mas houve um mal-entendido quanto à data de retorno e quando acordei, um grupo de amigos que também está aqui hospedado tinha saído pra fazer umas trilhas, e não posso simplesmente ir embora e deixar um bilhete no portão dizendo: "Fui, tive que fechar a casa, as malas de vocês estão na varanda". Me resignei e refiz meus planos. Então hoje durmo aqui, e amanhã tento acordar cedinho e pegar os meus quase 500km de estrada até a cidade onde moro a maior parte do tempo.

Esse incidente me deixou um pouco contrariado, não por causa da mudança de planos, pois não dou muita bola pra isso. Só mesmo porque estava tentando preencher todo o meu tempo, pra evitar pensar e fazer bobagem. Estou me sentindo muito só ultimamente, e agora, aqui sozinho na varanda, enquanto o restante da turma não chega, posso ficar pensando bobagem.

...

Há algumas horas Ele me mandou um WhatsApp, perguntando como foi meu carnaval, depois de dias de silêncio. Perguntou em nossa conversa individual, não no nosso grupo de amigos, o que Ele não fazia há muito tempo, desde que decidiu me evitar. Ao mesmo tempo, no grupo, marcou um happy hour com a galera em Salvador, perto de Sua casa. Decidi não responder, estou um pouco de saco cheio disso. Muito do meu sentimento de solidão vem quando me lembro da nossa historinha, tão confusa, tão pouco concreta, mas que me fez balançar demais, me sentir apaixonado e depois deixado de lado. Céu e inferno.

Por isso que agora, nesta tarde de sol, abro meu notebook e começo a escrever meu conto, coisa que tento fazer há muito tempo e não consigo. Talvez por falta de tempo, ou preguiça de reviver nos detalhes tudo o que vivi até aqui, ou até mesmo receio de a minha escrita não ser boa o suficiente para prender atenção de vocês ao longo das páginas. Mas a minha curiosidade é maior, gostaria de "ouvir" as suas opiniões, sei que muitos vão ter vontade de me matar, mas não posso mudar o que aconteceu. O que posso lhes assegurar é que cresci muito com todas as besteiras que fiz e falei, e que hoje sou uma pessoa bem diferente.

Vamos lá. Vou só voltar um pouquinho no tempo, para o ano de 2006, que eu acho que é quando começa toda a confusão.


16 de Outubro de 2006.

Feira de Santana, Bahia.

Meu dia começou às quatro e meia da manhã. Desliguei o alarme do celular, tomei um banho, conferi a minha sacola de roupas, documentos, etc. Minha vó levantou para me desejar sorte e tudo de bom. Não pude me despedir da minha mãe, estava dormindo, dopada de remédios. Peguei o coletivo até a rodoviária, para pegar outro ônibus, que saiu pontualmente as seis, rumo à Camaçari.

Assim que sentei, dormi imediatamente. Sou bom nisso. Preciso apenas de cinco minutos para cair no sono REM, em qualquer ambiente. Acordei já na rodoviária todo amassado, ninguém diria que estava me apresentando a um emprego novo.

Conferi o celular e tinha uma mensagem da minha prima/irmã/melhor amiga Mirelle: "Tudo de bom gato. Vc vai ver que sua vida vai bombar agora! Rsss bj". Sorri. Será que ela tinha razão?

Apesar da grana parca, dei-me ao luxo de pegar um táxi, pois já eram 7:20hs, e o horário para me apresentar na empresa era 7:30hs. Enquanto isso ia pensando na vida, na minha vida. Estava apreensivo, com um frio na barriga, mas ao mesmo tempo adorando toda aquela novidade.

Estava então com 24 anos, formado em Engenharia Civil havia cinco meses, e esse era meu primeiro emprego, assim, formal. Logo que saí da faculdade comecei a trabalhar de forma autônoma – o mercado não estava tão fácil para a nossa área – então me dediquei aos projetos que apareciam, dava aulas de física e matemática em colégios particulares, e prestava assistência técnica a uma construtora. Apesar da ralação e da grana curta eu gostava muito do meu cotidiano, era diverso e eu adorava cada parte dele.

Fiz a seleção nesta empresa antes mesmo de colar grau, em março. Fomos eu e uma colega, Simone, que soube e me comunicou. Como eram duas vagas, fomos juntos fazer a tentativa. Lá tinham mais seis concorrentes, e no final do processo fiquei em 4º lugar, e ela em 6º. Ou seja, nenhum dos dois iria ser chamado. Tinha até esquecido disso quando, em setembro, a coordenadora do RH me ligou informando que havia uma terceira vaga, o terceiro colocado não tinha interesse e havia a possibilidade de eu ser contratado, pois a seleção ainda estava na validade.

- E então, o senhor tem interesse?

Segurei o fone com força e mordi meus lábios, pensativo. Fiz aquela seleção pra não dizer que estava perdendo oportunidades, mas nunca tinha pensado em me afastar da minha cidade, dos meus amigos, clientes... Da família até que era um bom negócio, mas...

- Senhor Gustavo? – a mulher ainda estava na linha.

- Seria muito incômodo se eu te pedisse um tempinho pra pensar? Não vai ser muito, não, hoje mesmo eu te ligo. É que surgiram algumas coisas, e eu preciso me organizar.

- Olha, se você me retornar ainda hoje, eu posso segurar, até porque eu entendo que existam outras variáveis. Mas se não houver contato eu considero desistência, tá?

- Não, tranquilo. Ainda hoje eu te ligo com certeza!

Corri pra a casa de Mirelle.


- Nem acredito que você está cogitando não ir! Esqueceu de tudo o que a gente conversou?

- É, eu sei, mas...

- Lembra de tudo o que você mesmo disse? Que precisava desesperadamente sair desse ambiente, dessa atmosfera de doença da tua casa, da louca da tia Estela?

- Eu tava abafado naquele dia, né? Pelo menos ela já voltou pra casa, tá medicada...

- Até a próxima crise, né, Gu? Se liga!

Baixei a cabeça. Mirelle veio pra perto de mim e segurou na minha mão. Eu estava sentado na ponta da cama dela e ela estava deitada, tinha acabado de acordar, os cabelos lá em cima.

- Gato, eu sei que você foi pego no susto, até porque essa ligação foi meio que de surpresa. Você fez a seleção em abril, né?

- Março.

- Pois é. A gente tá em outubro praticamente. Mas olha, não deixa essa oportunidade passar, não. Você precisa viver a sua vida! Tá formado, é um engenheiro bom, dedicado, corre atrás... Se afasta um pouco disso aqui...

- É, disso eu preciso mesmo...

- É! No começo é difícil, mas você vai ver como vai ser bom. Eu que ainda tou na ralação da faculdade não vejo a hora de sair daqui desse inferno, imagine?

- E tia Malu? Como é que tá?

- Tá doida, doida. Só não sei se tá pior do que tia Estela, né?

- É, aí a briga é feia...

- Ai, Jesus, quando elas se juntam e começam a contar os comprimidos diários que cada uma toma...

- E ficam naquela competição...

Rimos alto, bastante, das nossas mães. Conversamos besteira, como sempre, e ela me ajudou a decidir que eu iria, sim, com certeza.

Para minha surpresa, quando eu cheguei em casa, a mulher já havia me ligado novamente. Quando eu retornei, ela me disse que precisava tirar uma dúvida a respeito da minha habilitação.

- Quando da sua seleção, você não tinha habilitação, né, Gustavo? Você conseguiu tirar nesse meio tempo?

- Na verdade, Letícia, não. Eu não priorizei isso, e acabei não concluindo as etapas. Mas eu prometo que tiro o mais rápido possível...

Acabei convencendo a criatura que ia tirar o tempo perdido na habilitação, apesar do receio dela. Era condição para contratação que os engenheiros tivessem habilitação na categoria B, pois eles mesmos dirigiam os carros da empresa. Acertei detalhes de exames e data de início, tomei coragem e... fui.


- E aí, como foi de viagem? Chegou hoje mesmo? – perguntou Letícia, minha cicerone na empresa, logo que me apresentei.

- Sim, acabei de chegar.

- Pretende morar aqui ou ir e voltar todo dia?

- Não, morar! É muito cansativo pegar estrada todo dia, precisaria acordar muito cedo. Sou um ser noturno, minha senhora...

- Senhora?!? Você acha que eu tenho quantos anos, meu querido?

- Ah... não sei... Uma mulher bem sucedida, já coordenadora de Recursos Humanos, com esse porte e tal... Falo por isso, né? Mas não passa de trinta, não fique tranquila... E outra, não posso chamar de você a pessoa que vai calcular meu salário, né?

Rimos juntos da minha tentativa de sair da situação. Ela na verdade aparentava uns trinta e poucos anos, mas eu sou péssimo em avaliar a idade alheia.

- Me deixa chamar o motorista para te levar lá – tirou o telefone do gancho – Márcio, vem aqui, por favor, querido, levar o funcionário novo lá no galpão? Obrigado.

- Pensei que era aqui o escritório da empresa...

- E é. Mas aqui funciona apenas a direção geral, administrativa-financeira e algumas coordenações. O pessoal da engenharia mesmo fica lá no que a gente chama de Galpão.


A cada vez que o carro avançava em direção ao chamado Galpão, meu desespero ia aumentando. O centro da cidade ia ficando longe, entrava rua, saía rua, uma gente estranha aparecendo, mato subindo... Depois de uns vinte minutos, chegamos.

Era de fato um galpão enorme, mas bem organizado e limpo. O movimento era intenso de carros entrando e saindo, pessoas uniformizadas parecendo operários, tudo bem barulhento.

O motorista me levou a outra recepção menor, onde fiquei aguardando ser chamado pela Diretora de Engenharia, Valquíria. Lembrei-me do rosto dela assim que a vi: fisionomia compenetrada, cabelos longos e cacheados, alta, morena, aparentemente jovem. Ela era uma mulher muito bonita.

Passamos a maior parte da manhã nessa conversa, onde ela me explicou detalhadamente o funcionamento da empresa, do setor de engenharia, quais eram as atribuições dos engenheiros do quadro, etc. Em um dado momento, fomos interrompidos por um rapaz da minha altura (ou seja, baixinho, pois tenho 1,65m), franzino, de cabeça pelada e cara amarrada, que entrou na sala chamando por ela.

- Deixa eu te apresentar o nosso auxiliar administrativo, Eduardo. Edu, esse é Gustavo, engenheiro que está começando hoje conosco.

- Prazer, Eduardo.

- Prazer, seja bem-vindo. Dra. Valquíria, desculpe interromper, mas você esqueceu o nosso compromisso de dez horas? Já está todo mundo na sala.

- Esqueci! – disse ela pousando a mão sobre a testa – Vamos lá. Gustavo, você poderia nos acompanhar? Só vamos interromper nossa conversa um instantinho, mas é por uma boa causa.

- Não tem problema.

Acompanhei os dois colegas até a outra sala. À medida que me aproximava, ouvia um barulho cada vez maior que vinha do ambiente, como que de uma confraternização. E era, de fato. Ao abrir a porta, me deparei com uma mesa com bolo, refrigerante, alguns salgados e doces. A parede estava cheia de faixas e cartazes. Por um momento pensei que aquilo era pra mim, de repente uma festa de boas-vindas, mas se tratava de um aniversário de um dos encarregados de campo, um senhor que parecia ser bastante popular na empresa, pois todos o abraçavam efusivamente, demonstrando muito carinho.

Depois de nos servirmos, Valquíria pediu um pouco de silêncio ao pessoal, devia ter umas trinta pessoas ou mais naquela sala.

- Gente, eu vou aproveitar o momento para apresentar a vocês o nosso mais novo colega. O nome dele é Luiz Gustavo, ele é engenheiro civil e vai integrar a equipe de Expansão e Infraestrutura.

- Êêee, finalmente!! – ouviu-se um coro de quatro ou cinco homens no fundo da sala.

- É, meninos, finalmente conseguimos reforçar a equipe. Agora vão ser Gustavo, Walter e Miguel responsáveis pelas obras de...

- E Otávio – alguém sussurrou perto dela.

- Sim, e Otávio, desculpe, responsáveis pelas obras de expansão da nossa fábrica e melhorias no entorno...

Enquanto ela falava percebi que um rapaz a fitava com cara de poucos amigos, provavelmente deveria ser o tal do Otávio que ela esqueceu de mencionar. Fiquei com vergonha alheia.

-...e com a previsão de mais quatro obras para terem o início autorizados pela direção, nossa equipe precisava de um reforço. Esta semana faremos uma reunião só com os engenheiros para vermos a redistribuição dos contratos, tá certo? Vou pedir a Eduardo que acompanhe o colega pelas instalações da empresa e aí vocês se apresentam individualmente, que é melhor. Pronto, era só isso, vamos voltar à parte boa, né?

Valquíria era uma pessoa simpática, apesar de um pouco sisuda no geral, e os funcionários pareciam gostar muito dela. Um ou outro se adiantava e vinha em minha direção, perguntando de onde eu era, onde ia morar, enfim. Respondia gentilmente, mas estava naquele momento focado mesmo era nos salgados, pois não tinha dado tempo de tomar café e estava faminto.

Um rapaz alto, branco, olhos e cabelos castanhos, bonito, veio em minha direção, e me cumprimentou, dizendo:

- É você que é o Luiz Gustavo, colega de Kátia?

Franzi o cenho. Conhecia ele?

- Sou colega de Kátia, sim, lá de Feira de Santana, né?

- Sim, isso! Eu também sou de lá, a gente trabalhou junto na prefeitura, e ela é minha "brother"! Ela me avisou que você viria trabalhar aqui...

- Ah sim! – Lembrei que Kátia havia mencionado que um colega dela trabalhava na empresa para a qual estava indo, e que ia falar com ele pra me ajudar a me instalar na nova cidade. – Ela me falou também de você. Só não lembro o nome...

- Daniel. – apertamos as mãos. Ele era muito bonitinho, lembrava até um pouco o Henri Castelli; a única coisa que achei estranha nele foi o nariz. Era meio disforme no meio da cara. – Pois é, cara, ela me falou que você tá querendo se instalar aqui na cidade, né?

- Sim. Como eu cheguei hoje, não deu tempo de sair procurando lugar. Ainda bem, porque ia procurar próximo do escritório central, né, e pelo que eu vi, vou trabalhar aqui mesmo...

- É. Aqui é fora da cidade, é foda porque fica longe de tudo: lugar pra comer, comércio, transporte também, é horrível pra sair daqui, se sair tarde é perigoso...

- Nossa que interessante, eu tô cada vez mais animado... Você sabe como preparar uma carta de demissão?

Ele riu alto, mostrando dentes muito bonitos.

- Não, mas você vai gostar daqui. Apesar de tudo, o clima de trabalho aqui da galera é muito bom, todo mundo entrosado, sacou, gente fina. Eu não gosto muito lá de cima não. O povo é meio amarrado, acho que é porque a direção geral fica lá.

- Hum, pode ser.

- Vamo lá pra fora pra a gente conversar melhor.

O rapaz era muito gente fina. Conversamos muito na área externa, enquanto os demais executavam a comida da mesa.


- Então, ainda tou meio assim... Me mudar pra Camaçari já não estava em meus planos, sabe? E aqui eu não conheço ninguém, enquanto que lá em Feira eu andava rodeado de gente...

Estávamos debaixo de uma grande mangueira que ficava em frente ao galpão. O sol estava bem forte naquele dia, e os olhos do rapaz ficavam mais bonitos ainda com a claridade. Eram de um castanho meio esverdeado.

- Cara, mas no início é assim mesmo. Comigo foi a mesma coisa. Pergunta pra a Kátia a agonia que foi pra eu resolver vir pra cá, quando fui chamado. Eu esperneei, falei que ia desistir, e tal... Aí ela virou pra mim e disse: "Daniel, larga de frescura. Camaçari é a uma hora de Feira. Se você chorar lá a gente ouve daqui!"

- kkk, é a cara dela falar isso!

- Pois é! Ela é minha amigona até hoje.

Tomei o último gole do refrigerante que ainda estava na minha mão.

- Então, Daniel, você hoje mora aqui e volta pra lá nos fins de semana?

- Não. Depende muito. Eu faço faculdade à noite, lá em Feira. Então eu saio daqui todo dia cinco e meia da tarde, mais ou menos, pego o busu, chego lá por volta de sete horas, assisto aula até umas dez e pouca, volto pra cá, chego mais ou menos meia noite, durmo ou estudo, e venho trabalhar. Às vezes, quando tem trabalho em equipe durmo por lá e venho de manhã cedo, às vezes fico lá no fim de semana, às vezes não...

- Nossa, vou pedir folga hoje, tou cansado só de ouvir seu relato!

- kkkkkkkkkk, você é uma onda! Mas é isso mesmo, pow, por isso que eu tou cheio de olheira, olha só!

De fato, ele estava com olheiras grandes, ressaltadas ainda mais por conta de sua pele branca. Mesmo assim era bonitinho...

- É, carece dormir mais um pouco...

Nesse momento Eduardo nos interrompeu. Já tinha se passado quase meia hora, e as pessoas já haviam retomado seus postos de trabalho. Nem percebi.

- Dá pra parar de alugar o colega aí, cara? Eu preciso levá-lo pra conhecer os setores – ele falou para Daniel.

- Você pedindo com essa educação toda, é lógico que eu não vou negar! – Se deram as mãos, riram e se abraçaram.

- Mulher descarada eu só trato assim, você já devia estar acostumado.

Dei risada das brincadeiras. Eles pareciam ser bastante amigos.

- Gustavo, - Daniel se virou pra mim – você já tem onde ficar aqui em Camaçari?

- Não, não. Eu só cheguei hoje, não deu pra procurar nada. Vou ver alguma imobiliária na hora do almoço...

- Você tá pensando em que, assim?

- Sei lá, uma quitinete, apartamento de um quarto. Tenho que ver os preços.

- Olha, cara, as coisas aqui são bem caras, viu? O custo de vida aqui em Camaçari é altíssimo. Não entendo porque, esse cú de cidade...

- Cú é Feira De Santana que só tem ladrão e puta!!! – Eduardo esbravejou!

Daniel falou comigo, apontando para Eduardo:

- Ele é daqui, por isso se chateia quando a gente fala desse cú!

- Aqui tem o pólo petroquímico, meu querido, faculdades, a porra toda...

- Tá! Só por isso a gente não precisa ser roubado aqui né véio! Eduardo, aluguel de casa aqui é um estouro!

- Sério? Tou pensando em gastar R$300,00 no máximo com isso, incluindo água, luz, etc...

- Ah, não acha não. Muito difícil. Você não pensa em morar em república não? Eu mesmo moro em uma com mais cinco. Fica melhor porque dá pra alugar algo mais centralizado, repartir os custos...

Eduardo interveio:

- É cara, repense isso aí, senão você vai gastar muito com moradia. – Virou-se para Daniel - Brother, deixe a gente trabalhar, se você não tem porra nenhuma pra fazer, nós temos!

- Vá se foder, sacana! – Bateram as mãos mais uma vez – Vão lá. Gustavo, se quiser dormir na república hoje, tá tranquilo viu, bicho! Os caras lá são gente boa, não tem erro não.

- Pode ser, eu até trouxe uma muda de roupa, caso decidisse ficar...

- Então pronto. Até o final da tarde a gente se bate, eu tenho que ir pra a faculdade, mas peço a Diego pra te levar. Ele trabalha aqui também.

- Tá bom. A gente se fala.


Suspirei e vi o rapaz se afastar. Do pátio um outro cara, alto, de olhos verdes, parecia olhar pra nós e acenou com a cabeça, e acenei de volta. O outro colega estava ao lado, me aguardando.

Aqueles três que eu não tinha nem gravado o rosto direito, muito menos os nomes, seriam pessoas que marcariam a minha vida, cada um de uma forma especialmente singular: uma paixão que beirou a insanidade e me expôs, me levando completamente o equilíbrio; uma ligação intensa que oscilava entre o fraterno e o carnal; uma amizade e reencontro de almas como eu nunca tinha tido antes.

Mas ali, naquele momento, eu não tinha como saber de tudo isso, claro.

Olhei para o colega ao lado e disse que estava pronto pra começar.


...

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