03. tá na hora, tá na hora...
A primeira coisa que Aurora fez ao chegar em casa, depois de deixar a jaqueta molhada e o capacete nos cabides atulhados de casacos, mantas e guarda-chuvas do minúsculo corredor de entrada, foi gritar:
— Cheguei, família!
— Vem comer, Ari! — gritou a irmã.
— A gente tá na cozinha, filha! — gritou a mãe, aparecendo no vão da porta com uma tigela de alface nas mãos. Ela franziu o cenho para a blusa ensopada de Aurora. — Nem pensa nisso, guria. Troca agora mesmo essa roupa molhada e desce pra jantar. O frango não vai fugir.
Aurora riu, erguendo as mãos em sinal de rendição e subindo as escadas. A Dona Helen não era alguém que se contrariava com facilidade, ainda mais tão próximo da hora do jantar.
Enquanto vestia algo seco, o cachorro da Dona Paula latiu no quintal da casa ao lado, aproveitando a trégua na chuva para fincar as patas miúdas na cerca de metal enferrujado e rosnar para quem passava. Do outro lado, na casa de Jaque, a adolescente gritava com as irmãs menores sobre uma camiseta — "Como assim tu trocou a minha camiseta preferida do Iron Maiden por um saco de balas?! Eu vou arrancar o teu pescoço, Júlia!" — e o mendigo da rua, Seu Brito, atirava latinhas amassadas num carrinho de supermercado. Aurora sorriu para o espelho, alegre por ouvir o barulho de pessoas, de vida, após uma tarde silenciosa e chuvosa na Zona Sul. Desceu as escadas com a pressa de quem tem muita fome, e encontrou a cozinha como mais gostava: cheia.
Sentado na ponta da mesa, estava o pai, com suas mãos gigantescas e de pele grossa pelo trabalho na oficina, as sobrancelhas hirsutas e a barriguinha que apertava a camiseta polo verde. Do lado direito, Fran já puxava uma coxa de frango para o próprio prato. Para nenhuma surpresa de Aurora, ela ainda vestia o uniforme de recepcionista e tinha os cabelos castanhos presos num rabo de cavalo alto. Ainda em pé, a mãe, com o avental que sempre usava na cozinha, tentava conter a fome de Fran, fechando a cara para os modos da filha mais nova e dando batidinhas no ombro dela com o pano de prato. Do lado esquerdo do pai, a avó paterna dividia com o filho a leitura de um rótulo de vinho, ajeitando discretamente a dentadura.
E ao lado de Fran, lindo feito um príncipe de histórias infantis, estava Tim. Com os cabelos negros bem penteados com gel, a camisa social justa nos pontos certos e o sorriso brilhante, similar ao do adolescente em propagandas de sabonetes para combater acne, Tim radiava. E o coração de Aurora, bobo e apaixonado, ficou envaidecido ao receber aquele sorriso. Deu um selinho nele e se sentou ao lado da avó, que sorriu com sua dentadura torta.
— Então, filha — perguntou a mãe, sentando-se entre Fran e marido. — Como foi o dia?
E Aurora contou tudo, do amor que o cara sentia pelo cachorro ao ataque de asma súbito, arrancando risadas da mesa. Enquanto serviam o frango, a salada e o vinho, trocando os pratos e cálices para evitar que qualquer um se levantasse, as risadas tomaram a pequena cozinha. Findo o assunto e o jantar, Fran riu e, com as mãos unidas sobre a mesa, disse:
— A tua capacidade de arranjar confusão nunca vai falhar em me surpreender. E tudo isso porque tu esqueceu de levantar uma placa.
Aurora riu, dando de ombros. Tim balançou a cabeça de maneira divertida, tomando um gole de vinho. O pai apertou os olhos, encarando a filha mais velha.
— Aposto um Cadillac que tu tava com aquele negócio nas orelhas.
— Tu não tem um Cadillac, Roberto — disse a avó, dando um tapinha no braço do filho. — E deixa a guria. Tu, na idade dela, era bem pior.
Todos riram outra vez. Novamente, Jaque gritou com as irmãs, o Seu Brito atirou mais latinhas dentro do carrinho e o cachorro da Dona Paula, enlouquecido pela pequena trégua na chuva, latiu para os meninos que jogavam bola na rua molhada, arrancando palavrões dos jogadores. Ah, os barulhos que só se ouviam nas partes menos favorecidas de Porto Alegre. Aurora não trocaria nenhum deles pelo silêncio mortal e absoluto da Zona Sul.
— Tá, mas tu fica... fica cuidando do cara? — perguntou Tim, tomando um gole de vinho com falsa pose de segurança. Ele parou a taça a meio caminho dos lábios. — Tipo, tu fica... cuidando dele o dia inteiro?
Fran, mordaz por natureza, apertou os olhos.
— Não vai me dizer que tu tá com ciúmes de um cara que tá todo fodido numa cadeira de rodas, Timóteo.
— Só tô preocupado, ok? Esse cara parece ser um idiota, e a Ari não tá recebendo nada pra cuidar dele. Vai que ele pede alguma coisa esquisita?
O olhar que a mãe delas trocou com Tim foi repleto de significados ocultos. Aurora franziu o cenho para a Dona Helen, que apertou o guardanapo como se tivesse que dar a notícia da morte de outro peixinho dourado.
— Tim comentou comigo, com todos nós, na verdade — começou ela, ainda alisando o guardanapo. Aurora inquiriu Fran com um olhar ansioso, mas a irmã sorriu por trás da taça de vinho. Tim, por outro lado, parecia sério. — Que tu tá... que tu tá limpando a bunda desse executivo, meu amor...
E ela falou "bunda" numa voz baixinha, como se fosse um palavrão hediondo. O pai ficou com o rosto vermelho, mas a avó soltou uma gargalhada gostosa que quase fez sua dentadura voar da boca.
— Pelo amor de Deus, Helen! Pode falar a maldita palavra. Todos nessa mesa têm uma bunda, não têm? — perguntou ela. Fran riu, para desespero da mãe, do pai e de Tim. A avó se inclinou para Aurora, que sentiu o cheiro de cigarro como um abraço carinhoso. — Conta pra vó, querida. Tu tá limpando a bunda do bonitão, ou...?
— Claro que não, vó! — respondeu ela, ansiosa. A fixação das pessoas com aquele pormenor tão, tão particular era, no mínimo, esquisita. — Só tô fazendo isso, ficando de olho nele, porque o cara ameaçou me demitir. E porque fui a culpada pelo acidente.
— E porque a gente precisa do dinheiro — disse Fran, girando a taça de vinho vazia entre o dedo indicador e o polegar. — Não é como se a casa fosse se pagar sozinha...
O silêncio caiu sobre eles feito uma tijolada num vitral de igreja. A maldita hipoteca que nunca tinha fim, a maldita dívida que silenciava o riso da família Bianchi à mesa. Aurora apertou o guardanapo, fingindo não ver o constrangimento do pai e da mãe, que pagavam a hipoteca da casa há 20 anos a duras penas para que a família não fosse para a rua.
— Ei, mas não se preocupem — disse Tim. Todos os rostos aflitos dos Bianchi se voltaram para ele. — Agora tô prestes a ser gerente de vendas na Silva & Farias, e se vocês precisarem de ajuda, podem contar comigo. Essa promoção vai...
E ele desatou a falar sobre o bom salário que recebia numa das maiores ferragens do estado, a estabilidade e as oportunidades grandiosas que o novo cargo trariam para a família e para ele. De canto, enquanto Tim falava sobre a promoção, Fran sorriu com o canto dos lábios para Aurora, bebendo um resquício de vinho da taça vazia. Ela arregalou os olhos para a irmã, o gesto silencioso de quem repreende uma criança levada demais para o próprio bem.
O único defeito de Tim, reconhecido por Aurora e pelo resto da família, era gostar demais do som da própria voz. Era comum encontrar o namorado perdido na própria grandeza, imaginando uma posição de CEO onde mal se avistava uma reles bonificação de salário e uma salinha apertada, repleta de caixas de papelão, que era endeusada por ser A Sala Do Gerente. Maiúsculas devidamente grifadas.
— Ah, querido, isso é ótimo — interrompeu a mãe delas, sorridente apesar de apertar com força o guardanapo. — Tu é um ótimo exemplo. Se a Ari fosse um pouquinho mais ambiciosa, ela poderia conseguir um emprego melhor, e vocês dois poderiam, quem sabe, morar juntos...
Todos na mesa caíram num silêncio tenso. Novamente, os gritos de Jaque tomaram a cozinha apertada da família Bianchi. Ai, meu Deus do Céu, pensou Aurora.
Antes que a situação ficasse mais esquisita, ela se ergueu da mesa, sorriu e disse:
— É, a gente pode ver isso. Vamos indo, Tim?
Ele abriu a boca, confuso, mas pigarreou e se levantou, limpando a boca no guardanapo.
— Ah, claro. Obrigado pelo jantar, famí...
Mas Aurora não deixou que o namorado terminasse. Antes que a família pudesse responder ou dizer qualquer coisa que os deixassem ainda mais sem graça, ela puxou Tim pela mão e deixou a casa dos Bianchi para trás.
A casa deles não era a mais bonita da rua, mas tinha lá seu charme. Com um jardim de grama alta, cerca de ferro, daquelas que deixam qualquer lugar parecido com uma prisão, e uma fachada de pintura descascada, com um vidraça trincada e símbolos de gangues pichados no portão da garagem onde descansava o velho Ford Falcon marrom do pai, a casa aparentava ser o que realmente era: um sobrado antigo num bairro depredado pela pobreza e pelas drogas.
Aurora puxou Timóteo pela mão, ignorando a grama alta e molhada que roçava em seus tornozelos, e saiu para a calçada, deixando para trás o portãozinho de metal que não fechava direito e a casa de pintura descascada com um alívio quase físico. Ali na calçada daquela noite fria que ainda guardava os resquícios da chuva dos últimos dias, ninguém perguntaria sobre empregos melhores ou morar com o namorado.
Na pontinha dos pés, ela tinha os braços ao redor do pescoço de Tim. Aurora cheirou a gola da camisa dele para acalmar o coração que batia furioso. Ele riu e abraçou a cintura dela com carinho. Foi então que Aurora se lembrou do problema.
— Vamos pro teu apartamento hoje? — perguntou ela, entre um selinho e outro.
— Hoje não dá, amor. Preciso focar na apresentação que vou fazer pro novo cargo.
— Pera aí, quer dizer que eu tiro o teu foco?
— Completamente — respondeu Tim, mordendo o lábio inferior dela. Riram e ficaram em silêncio, abraçados na calçada molhada. — Sabe, tô fazendo isso por nós...
Ela franziu o cenho, afastando o rosto para encarar Tim.
— Tô fazendo isso pra ganhar mais dinheiro — disse ele, o rosto corado. — E ter uma vida melhor pra que... pra que a gente possa morar junto de verdade.
A brisa da noite estava fria, entretanto nem de longe havia sido a culpada por arrepiar os braços de Aurora. A declaração de Tim, infinitamente mais simples e quente, era o agente da mudança na posição relaxada dela. Aurora piscou, sentindo o nó na garganta subir e descer feito os elevadores da AlphaCom.
Ele percebeu a mudança nela, porque sorriu e foi rápido em desviar o assunto:
— E quando isso acontecer, tu vai poder vender essa tua moto de uma vez por todas.
Aurora piscou aliviada, porém alarmada. Por puro reflexo, olhou para o portão pichado da garagem, imaginando sua lambreta azul-piscina descansando ao lado do Ford Falcon marrom do pai na garagem bagunçada. Encarou Timóteo com o cenho franzido.
— Ei, eu gosto dela.
— Ah, é ótima — disse ele, as mãos ainda na cintura de Aurora. — Como uma forma de se matar ou pegar uma pneumonia nessa chuva, é realmente ótima.
— Tu falou igualzinho à minha mãe. — Ela fez uma pausa, sorrindo para o namorado. — Um dia vou pro México com ela.
— Com a tua mãe?
— Não, criatura. Com a lambreta.
— Ir pro México numa lambreta? — perguntou ele, levantando as sobrancelhas. — Sério?
— Uma mulher pode sonhar, não?
Ele apertou a cintura de Aurora e ajeitou seus cabelos curtos. O sorriso de Tim era divertido quando ele sussurrou:
— Não quero cortar o teu barato, mas ouvi dizer por aí que não é exatamente com isso que as mulheres sonham... — Ela deu um soco no peito dele, arrancando uma risada de Tim. — Ei, cuidado com a mão pesada!
Os dois riram e, outra vez, o silêncio foi um intruso curioso. Tim sorriu do jeito que nunca falhava em derreter o coração de Aurora e disse:
— Eu te amo, Ari.
E a brisa gelada que envolveu os dois teve um gosto assustador de passado.
No sorriso brilhante de Tim, Aurora enxergou as covinhas de Carlo, suas sobrancelhas espessas, o nariz de estátua grega, as orelhas pontudas e o queixo forte. Os sorrisos se misturavam diante dela; Carlo e Tim, Carlo e Tim. Exatamente como as batidas de um coração.
O som das latinhas amassadas do Seu Brito virou os assovios da noite de uma primavera distante, dos risos na calçada, do som da fonte, das moedas sendo jogadas pelos turistas aos pés do deus Oceano. "É a fonte, a fonte do filme!", diziam eles, maravilhados com os tritões e os hipocampos de pedra. E ela, igualmente arrebatada pelo poder da fonte, ouvia os assovios dos vendedores de sorvete e as moedas mergulhando como se estivesse no céu. Então, ele vinha.
Carlo tinha o poder de arrancá-la de qualquer consideração quando a puxava pela cintura, enterrava o rosto em seu pescoço com aquela maldita barba por fazer que ela detestava, e dizia: "Eu amo você, cuore mio". E tudo era esquecido. Qual era o peso de uma barba áspera e mal feita ao lado de uma declaração de amor?
Ela piscou, de volta à rua úmida, às latinhas do Seu Brito e ao rosto bem barbeado de Tim. Ele sorria feito criança que tira a nota máxima numa prova. Aurora se afastou do abraço dele, sorrindo sem graça.
— Eu sei — respondeu ela, tocando o rosto lisinho do namorado. — Boa noite, Tim.
Aurora se ajeitou no sofá da sala, afofando o travesseiro com um grunhido. Também na sala apertada da família Bianchi, Fran ocupava a cama de armar. No escurinho silencioso da sala de estar, uma sirene de polícia passou do lado de fora, iluminando o papel de parede antiquado com luzes azuis e vermelhas. Aurora suspirou, encarando a costura do encosto do sofá. Do andar de cima, do quarto que as duas cederam para a avó desde sua última fuga da clínica, um ronco rolou pelas escadas. Novamente, Aurora se ajeitou no sofá, de costas para o resto da sala, e agradeceu por ser a noite de Fran na cama de armar.
— Ei — sussurrou a irmã. Aurora olhou por cima do ombro. No escuro, mal divisava o rosto pontudo de Fran. — Tá dormindo?
— Ainda não — respondeu ela, virando-se. — Hoje a noite vai ser foda.
— O que aconteceu com aquele papo de tu ir dormir no Timóteo?
(Sempre que Aurora dormia no apartamento de Tim, Fran surrupiava o sofá. E Aurora não culpava a irmã. O catre, resquício dos tempos de exército do pai, além de feder a naftalina e ter o colchonete mais duro do mundo, rangia feito portão de cemitério.)
— O Tim tá meio nervoso com a tal promoção — disse ela, apoiando o braço sobre a testa. — Só porque eu queria muito dormir numa cama hoje.
— Pra que serve um namorado se tu não pode ir dormir na casa dele? — provocou Fran. Aurora apertou os olhos para a irmã, que sorriu daquele jeitinho travesso. — Tá, mas pensa pelo lado bom. Agora tu pode dormir no trabalho, guria.
Ela piscou para o teto. Não havia pensado naquela possibilidade.
— Meu Deus, é verdade. E tu não faz ideia de como aquela casa é cheia de quartos.
— Sério?
— Sério. O cara é daqueles ricos da Zona Sul, sabe? Casa gigante em Ipanema, com piscina e milhões de quartos. E por causa do ataque de asma dele, fui de quarto em quarto procurando pela bombinha. — Aurora fez uma pausa curta, atiçando a curiosidade de Fran. — E sabe o que mais?
— O quê?
— Esses quartos têm camas gigantes, com lençóis de algodão egípcio, travesseiros de pena de ganso, colchões de mola e...
— Pelo amor de Deus, para que eu vou ter um orgasmo.
As duas riram. Fran se mexeu no catre, que rangeu com vontade. A irmã grunhiu.
— Tá, mas o cara é tão mala assim? — perguntou ela, puxando o rabo de cavalo por cima do ombro. — Pelo o que tu falou, essa porra parece o Anticristo.
— Ele me chama de Aurora Bianchi num tom muito esquisito, só pensa em trabalho e é rabugento pra cacete, mas tem os motivos dele.
— Tu meio que fodeu a vida dele. Acho que eu seria rabugenta contigo também.
Aurora revirou os olhos. E como Fran nunca perdia tempo, veio o pedido:
— Tu poderia me apresentar o tal do rabugento, né?
— Tu tá brincando.
Fran acendeu a luz da mesinha onde descansava o telefone fixo, uma relíquia que os pais insistiam em manter. Aurora piscou em consequência da luz repentina, apertando os olhos. A irmã riu, balançando o rabo de cavalo. Seu nariz arrebitado de boneca Barbie que recém sai da caixa e seus olhos cor de mel, herança da mãe, deixaram-na parecida com um manequim de loja.
— Olha pra mim. Tu acha mesmo que eu brincaria com isso, Aurora Bianchi? — Fran apertou os olhos, rindo. — Qual é, Ari. Ele tem camas gigantes e vazias. Vazias! Eu mataria alguém só pra não precisar dormir nessa merda dobrável.
As duas riram quando o catre rangeu, e Aurora agradeceu por ter aquela criatura como irmã. Sua melhor amiga desde os cinco anos de idade, Fran era um poço de sarcasmo e contradições divertidas. Sem paciência alguma para ouvir os problemas dos outros, seu sonho era ser psicóloga. Antes de largar a faculdade por falta de dinheiro e trabalhar como secretária num escritório de advocacia, Fran vivia dizendo que as coisas melhorariam quando ela tivesse o diploma pendurado na parede, quando fosse psicóloga de verdade.
Mas a cada semestre ficava mais e mais difícil voltar a estudar. Ela bem que tentava ingressar na federal, mas o trabalho tomava a maior parte de seu tempo, e parar de trabalhar para se dedicar aos estudos era um luxo que ninguém na família podia bancar. A faculdade particular, que custava os dois olhos da cara, não era sequer viável. O riso de Aurora arrefeceu, e Fran, ignorante acerca dos pensamentos da irmã mais velha, perguntou:
— E o que tu pretende fazer agora? Quer dizer, tu vai cuidar desse cara até quando?
— A amiga dele, Heloísa, mencionou três meses de licença, mas isso depende dos níveis de melhora dele. Acho que vai ser até o cara conseguir caminhar, pelo menos. — Aurora deu de ombros, pensativa. — O gesso na perna e nos braços dificultam os movimentos, e ele precisa de mim pra muita coisa, apesar de nunca admitir.
Fran sorriu, apertando os olhos daquele jeito travesso que era sua marca registrada desde a infância. Contra a luz amarelada do abajur antigo, sua camiseta de pijama estampada com um Pato Donald furioso cintilou.
— Fala a verdade pra mim. Tu esfrega mesmo a bunda e o pau dele?
— Pelo amor de Deus. Porque que todo mundo acha que eu tô limpando a bunda do cara?
— Sei lá. É o que as enfermeiras fazem.
— Tá, mas eu procuro ficar bem longe dessa parte — respondeu ela. — Ele tem um amigo pra isso, Quincas, e acho melhor assim. Ele é um cara legal.
Fran pensou durante breves segundos. E sorriu.
— Por acaso, só a título de curiosidade, tu não sabe me dizer se esse amigo legal tem alguma cama vaga, ou...
Aurora atirou uma almofada na irmã, que desviou com uma gargalhada baixinha.
— Tu não vale nada, Francine!
As duas riram, mas não durou muito. Passos foram ouvidos no andar de cima, o arrastar de chinelos característico que só poderia pertencer a um membro do clã dos Bianchi.
— Ei, fica quieta! — disse Fran. — Aí vem a vó.
Ela apagou o abajur e, como crianças pegas no flagra, as duas fingiram estar adormecidas. Com uma agilidade invejável, a avó desceu a escada pé ante pé.
Com os olhos semicerrados, Aurora esperou e ouviu. A vovó Bianchi se esforçou para erguer os pés, evitando arrastar os chinelos no piso da casa para não acordar as netas. Devagar como um ladrão experiente, ela deslizou entre o sofá, onde Aurora apertava a manta sobre os ombros, e o catre, onde Fran abraçava a almofada que antes fora arremessada. A avó passou por elas como uma sombra, silenciosa feito um ninja.
Como se cometesse um delito de proporções inimagináveis, a avó se aproximou da pequena mesinha que ficava próxima à janela e olhou para os dois lados. Devagar, ela pegou o vaso, uma imitação barata de porcelana chinesa, tirou as flores de plástico empoeiradas e virou o objeto de cabeça para baixo. O som seco de algo que cai contra madeira tomou o silêncio da sala de estar. Ela virou a cabeça para ver se as netas ainda dormiam no exato instante em que Aurora fechou os olhos. No escuro, a vovó pegou o isqueiro, o maço de cigarros e recolocou o vaso no lugar, subindo as escadas devagar.
Quando a porta do quarto de cima bateu, Fran abriu os olhos e acendeu a luz. Assim como da primeira vez, Aurora apertou os olhos para a claridade súbita. Fran olhou para a escada como a adolescente birrenta que não aceita uma proibição dos pais.
— Dá pra acreditar na vó? Mesmo depois de ter sido expulsa de duas clínicas, ela continua fumando. Assim não dá.
— Ela vai acabar deixando o pai doido.
A vovó Bianchi, apesar de saudável feito um cavalo de competição, já sentia o avanço da idade. Atos simples do cotidiano, como tomar banho e caminhar durante horas a fio, cansavam-na depressa, e a ideia de uma clínica de repouso fora sugerida por ela como uma alternativa para melhorar seu bem-estar. O único problema era que nenhuma das clínicas aceitava fumantes. Fumar, em tais lugares, era terminantemente proibido, figurando em diversos contratos como cláusula grifada, passível de expulsão. De início, a vovó concordava, mas tão logo a noite chegava, era a primeira a acender seu cigarro. Ao todo, já havia sido expulsa de três clínicas, sendo que na última, há seis meses, não só havia fumado como contrabandeado os cigarros.
Fran fez uma careta para o andar de cima, abraçando a almofada.
— Não é só o pai que vai ficar doido — resmungou ela. — Não existem mais clínicas pra ela. Pelo menos não clínicas que a gente possa pagar.
— Não sei se o pai quer colocar ela em outra clínica — comentou Aurora, encarando o teto. — Acho que a vó vai ficar com a gente por tempo indeterminado.
— Sabe o que é pior, cara? O cheiro do cigarro vai contaminar o quarto inteiro — lamentou-se Fran, entre a tristeza e o cansaço. — E pensar que existem milhões de caras legais e rabugentos por aí, com camas imensas e vazias...
Aurora riu, cobriu os olhos com um dos braços e disse:
— Boa noite, Fran.
A irmã suspirou e desligou a luz do abajur.
Tão logo Aurora girou a maçaneta da porta de entrada e coçou as orelhas de Ringo, notou que algo estava errado. Além das janelas fechadas e da escuridão na sala de estar, não era possível distinguir um som que fosse na casa. Exceto pelas arfadas de Ringo e pela garoa fina que ameaçava, mais uma vez, transformar-se em temporal, o som do silêncio imperava. Aurora franziu o cenho, deixando o capacete em cima da mesinha e a jaqueta de couro, molhada durante o deslocamento, num gancho fixado na parede. Ela ajeitou os cabelos e, como se estivesse numa cena de filme de terror, perguntou:
— Olá?
Ninguém respondeu. O dia escuro, daqueles nublados, sem graça e coroados por uma garoa irritante, criavam o clima profundo da casa. Incomodada, Aurora quase sentiu falta dos gritos de Jaque, do cachorro neurótico da Dona Paula e das latinhas amassadas do Seu Brito. Naquela zona de gente rica, era possível ouvir até o som dos próprios pensamentos. E isso raramente me traz coisas boas, pensou ela, voltando à base da escada após uma olhadinha na cozinha. Aurora franziu o cenho e, devagar, subiu os degraus que levavam ao segundo andar.
Após o ataque de asma do cara no dia anterior, ela sabia qual era o quarto, apesar de as portas brancas confundirem suas lembranças durante a pequena caminhada. Diante da porta certa, Aurora suspirou e girou a maçaneta.
Tudo estava escuro. Não escuro como se fosse madrugada, onde tudo é breu, silêncio e escuridão. No quarto de Miguel, o escuro era cinzento e esbranquiçado, típico dos dias nublados. A luz difusa penetrava aos pouquinhos no quarto, e Aurora mal conseguia divisar o que via. Um vulto na cama, o cara, não se movia. Sua respiração regular era o único indicativo de que Miguel ainda vivia. O outro era o cheiro.
Parada no vão da porta, Aurora sentia cheiro de homem que acaba de acordar. No quarto fechado, o cheiro de perfume masculino, roupa usada e suor era quase físico. Pela segunda vez naquela mesma semana, Aurora pensou em Carlo. Aquilo não era nada bom.
Ringo passou entre as pernas dela, chorando aos pés da cama. Aurora apertou a maçaneta, dando um passinho vacilante para dentro do quarto.
— Bom dia? — perguntou ela.
Com dificuldade, Miguel apareceu entre os lençóis, travesseiros e almofadas. Os cabelos castanhos dele, similares a um ninho de passarinhos, não combinavam em nada com a criatura irritável de ontem. Aurora apertou os olhos, tentando enxergá-lo melhor na luz ruim do quarto.
— Preciso de um banho, Aurora Bianchi — murmurou ele, a voz rouca de sono.
Já dentro do quarto, ela abriu ainda mais a porta, deixando a claridade igualmente cinzenta do corredor iluminar o quarto. Não foi muito, mas foi o suficiente para ver o rosto encovado de Miguel e suas olheiras profundas. Um princípio escuro de barba começava a nascer em seu queixo quadrado, e as palavras dele chegaram com um atraso milenar aos ouvidos dela.
Aurora engoliu em seco. Chegou a hora de esfregar tua bunda.
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