02. contatos de primeiro grau

— Só mais um pouquinho e... chegamos, amigão! — exclamou Quincas, empurrando a cadeira de rodas motorizada para dentro da casa. — Até que foi ligeirinho, né?

"Ligeirinho" era uma palavra que causava coceiras em Miguel. Os quarenta minutinhos que levaram do hospital à casa que ele ocupava em Ipanema, na belíssima Zona Sul de Porto Alegre, foram uma prova de resistência e paciência como nenhuma outra. Ainda com a chuva forte pipocando nas calçadas, transformando os pedestres em desesperados por abrigo e os motoristas em feras irracionais, o humor de Miguel, depois de uma noite no hospital e quarenta minutinhos sentado no banco de trás do Corsa de um motorista de aplicativo grosseiro, não era dos melhores. Para piorar, ainda havia aquela maldita coceira no cotovelo direito que o gesso impedia de resolver.

Em resumo, quando Quincas girou a porcaria da cadeira de rodas motorizada e alugada às pressas pelo olho da cara, Miguel quis morrer. O problema não era Heloísa, que tinha a bolsa de grife no antebraço enquanto checava as ações da AlphaCom pelo celular. Nem Quincas, que sorria e falava sobre os benefícios de uma licença médica. O problema, como Miguel já esperava, era a tal Aurora Bianchi. Ela olhava para cada pedaço de sua sala de estar, para o piso de carvalho e para os móveis projetados como se estivesse diante do sarcófago perdido de um faraó até então desconhecido da arqueologia, e não numa das casas mais caras da região, próxima à famosa Praia de Ipanema, na Zona Sul de Porto Alegre.

Se pudesse, Miguel teria cerrado os punhos. Por que diabos a faxineira assassina ainda estava ali? Não havia sido suficiente para ela destruir um contrato milionário e quebrar os dois braços e uma das pernas dele? E o pior de tudo: Aurora Bianchi, como parecia ser costumeiro, inundava o chão com aquele capacete cor-de-rosa ridículo, pingando água da chuva no querido piso de Miguel. Ele abriu a boca para reclamar, porém Heloísa saiu na frente.

— Precisamos esclarecer alguns pontos — disse ela, enfiando o celular na bolsa. Aurora virou a cabeça, encarando-a com aqueles olhos castanhos grandes demais e os cabelos molhados e curtos colados à testa. — Falei com o RH da AlphaCom e tá tudo certo. Enquanto durar a licença do Miguel, tu vai receber teu salário normal pra desempenhar as funções de... cuidadora. Tua ajuda vai ser inestimável, querida.

Heloísa e suas maquinações. Se ela não tivesse se metido, a AlphaCom deveria bancar um profissional para acompanhar Miguel durante a licença médica. Estava previsto no contrato, preto no branco, mas Heloísa conseguia tudo o que queria. Apesar de suas intenções serem boas — garantir que Miguel pudesse trabalhar sem interrupções e pagar um tal favor — o preço era alto demais. Ele, um dos executivos mais valiosos da companhia, nas mãos de uma doida varrida que era incapaz de erguer placas para avisar que o piso estava molhado.

E eu não acredito que aceitei a ajuda dessa maluca por causa de uma mesa, pensou ele, olhando com asco para Aurora Bianchi. Ainda ontem, Heloísa voltara ao quarto de Miguel no hospital e fizera uma proposta irrecusável: se ele aceitasse a ajuda da auxiliar de serviços gerais e calasse a boca sobre o assunto, Heloísa deixaria que ele ficasse com a mesa mais próxima da janela tão logo conseguissem a tal promoção que os levaria ao trigésimo andar.

Toda aquela palhaçada por causa de uma mesa. Tu te vende baixo, hein?, pensou ele.

— Agradeço muito, Heloísa — disse sua nova enfermeira. — Sem esse emprego, eu não...

Mas Aurora Bianchi não terminou a frase. Sons assustadores de batidas na porta, acompanhados de um choro estrangulado, chegaram até eles. Tudo ficou em silêncio.

— O vento deve ter fechado a porta do quarto com o Ringo lá dentro — disse Miguel, olhando para o andar de cima. — Quincas, por favor.

O amigo assentiu, subindo os degraus de dois em dois. No breve silêncio rompido pelo choro e as batidas estrondosas na porta, Heloísa conversou baixinho com Aurora. Ele fechou a cara, querendo empurrar as duas para fora de sua casa, de sua intimidade. Quem elas pensavam que eram para tratá-lo feito uma boneca de pano? Mas a resposta não teve tempo de chegar aos pensamentos de Miguel. Ringo foi mais rápido, como sempre.

O border collie de 25 quilos — cinco a mais do que o recomendado pelo veterinário — voou pela escadaria e pulou no colo de Miguel, que arquejou com o peso do animal. A cadeira de rodas motorizada rangeu e, passada a dor da surpresa, ele relaxou, erguendo um pouquinho o braço engessado para acariciar as orelhas do border collie. Ringo, sempre muito receptivo, lambeu-lhe o nariz antes de voltar ao chão e rodear o próprio rabo.

Miguel sorriu para os olhos azuis de Ringo. Quincas deu um tapinha em seu ombro.

— Vivo, tchê?

— Ele realmente não tem noção do tamanho que tem. — Ele esticou o braço, acariciando a cabeça de Ringo com a pontinha dos dedos. — Tu sentiu a falta do papai? Sentiu? Quem é o bebê da casa? Quem?

Ele coçou as orelhas de Ringo cada vez mais rápido, repetindo a pergunta até ouvir um riso abafado. Parou e ergueu a cabeça. Sua enfermeira escondia a boca com uma das mãos. Miguel fechou a cara, ajeitando-se na cadeira de rodas motorizada.

— O que foi agora?

— Nada. Só achei engraçado como...

Diante do olhar frio de Miguel, ela deixou a frase morrer. Sem graça, Aurora se acocorou no chão, estalando os dedos. Ele enrijeceu na cadeira de rodas motorizada, apertando de leve o pelo ao redor das orelhas de Ringo. Heloísa, que novamente checava as ações pelo celular, levantou o rosto e esperou pela resolução da cena. Quincas, como o grande idiota que era, disse:

— Vai, Ringo! Vai lá, guri!

— Ele não vai — disse Miguel, sentido. Ela parou de estalar os dedos, contudo permaneceu agachada e com aquela expressão imbecil no rosto. — Ele não gosta de pessoas novas.

Aurora franziu o cenho. Miguel fechou a cara. Ela bateu palmas, sorriu e disse:

— Vem cá, rapaz!

E Ringo, que vivia para receber carinho e atenções, saiu de perto de Miguel sem ao menos olhar para trás. Traidor, pensou ele. Até o cachorro Aurora Bianchi havia arrancado de Miguel. Não bastava quebrar seus dois braços e sua perna esquerda, colocá-lo numa cadeira de rodas e Foder com F maiúsculo o maior contrato que ele fecharia, não. Ela precisava tomar o cachorro.

Aurora coçava as orelhas de Ringo, sorrindo para ele, e o safado, com os olhinhos fechados e a boca aberta, balançava o rabo peludo para ela. Isso só pode ser a porra de um pesadelo, pensou Miguel. Heloísa deu uma risadinha sarcástica.

— A confraternização tá incrível, mas tenho um voo pra pegar — disse ela, conferindo o relógio de pulso dourado. Heloísa sorriu e, como sempre, parecia pronta para uma conferência internacional. — Embarco pra Londres às 14h. Por enquanto não tenho nada pra ti, Miguel, mas espero ter bastante material pra tu analisar quando eu voltar, daqui quatro dias. Qualquer coisa, por favor, não me liguem.

— Vou aproveitar e pegar o bonde da Helô. — Quincas se virou para Aurora, que ainda cobria Ringo de carinhos. — Passa no pub qualquer dia desses que eu garanto algumas cervejas por conta da casa, ok? E não te preocupa. Tô com uma cópia da chave e volto no final do dia pra ajudar. Até mais.

Miguel abriu a boca para resmungar, para atirar na cara dos amigos que estava sendo abandonado com a ladra de cães e quebradora de membros, porém não teve tempo. Heloísa saiu sem olhar para trás, com a atenção fixa na tela do celular. Quincas, despedindo-se com a promessa de cervejas de graça e de voltar quando a tarde caísse, saiu no encalço da amiga, desesperado para deixar a casa.

E quando a porta da frente se fechou com um click discreto, a licença médica tomou proporções reais para Miguel.

Uma coisa era entender, no campo abstrato das ideias, que aquela faxineira de cabelos curtos, olhos gigantes, gosto musical questionável e jaquetas de motociclista seria sua enfermeira. Outra, bem diferente e que beirava o limite do assustador, era viver a experiência. Sozinho em frente à porta de entrada, observando Aurora ganhar a confiança de Ringo na sala de estar, Miguel quis morrer pela milésima vez naquele dia de merda.

Ela se levantou do chão, ajeitou os cabelos meio molhados, pegou a bolsinha de remédios deixada sobre a mesinha e sorriu sem jeito. Da cadeira de rodas motorizada, Miguel não se moveu ou demonstrou qualquer sentimento.

— Então, cara...

— Não.

— O quê...?

— Não — repetiu ele. — Sei que tu pensa que vai ficar aqui, tentando cuidar de mim, mas não é assim que a banda toca, Aurora Bianchi.

Ela franziu o cenho, abraçada à sacolinha de remédios feito uma criança no primeiro dia de aula. Miguel não sorriu. Seria, mesmo que sentado na porcaria da cadeira de rodas, o valentão do parquinho.

— Primeiro de tudo: não te mete nos meus assuntos — prosseguiu ele, como se desse ordens claras à Suzi, sua secretária. — A casa é grande o suficiente pra tu não me dirigir a palavra até a licença terminar, então não pensa, nem por um mísero segundo, que vamos conversar. Não preciso da tua ajuda, e muito menos da tua compaixão. Segundo: gosto de silêncio. Não quero ouvir o som da tua voz, dos teus passos ou de qualquer barulho que tu possa fazer. E se tu me dá licença, vou subir e trabalhar.

Miguel virou o joystick da cadeira de rodas motorizada com alguma dificuldade por conta dos gessos, mas não foi isso que o desanimou. Na beira da escada se lembrou, com renovada vontade de falecer, que o escritório com seu notebook de última geração e documentos importantíssimos ficavam no segundo andar, após dezenas de degraus que não subiria tão cedo.

Aurora Bianchi tentou esconder um sorrisinho vitorioso, porém falhou. Miguel manteve a pose. Ela pigarreou e, ainda sorrindo, disse:

— Se tu precisar de mim, tô na cozinha.

Ela deu a volta, levando os remédios e Ringo, aquele cachorro vendido, consigo. Miguel fechou a cara, o olhar fixo no andar de cima com uma amargura digna de Hollywood.

Miguel grunhiu. Para piorar, ainda havia uma terça-feira inteira pela frente.


Aurora tinha certeza que a cozinha do cara havia aparecido naqueles programas de televisão que reformavam mansões, um dos preferidos de Fran, sua irmã. Do tamanho de quase toda a casa delas, a cozinha era ampla, com uma ilha central, armários de madeira branca e eletrodomésticos de inox típicos de quem tinha dinheiro para bancar a última geração de utensílios. Apesar da chuva que escorria pelas janelas de caixilho branco que davam para o quintal — que contava, é claro, com uma piscina e um deque de madeira — a luz na cozinha valorizava ainda mais os móveis desenhados.

Com os cotovelos apoiados na ilha central, Aurora observou tudo de longe. Receava, estabanada como era, quebrar alguma coisa e ter de pagar pelo estrago. Meu salário não pagaria nem uma espátula dessas, pensou ela, rindo apesar da triste constatação. Acostumada a ver executivos apressados, almofadinhas inveterados, passarem pelo saguão da AlphaCom como se tivessem o rei na barriga, Aurora sempre imaginou o quanto eles ganhavam para agir daquele jeito medíocre, como se copeiras, secretárias e faxineiras fossem uma espécie humana inferior. Com o olhar fixo na geladeira de última geração, daquelas que permitem pegar um copo d'água e gelo pelo vão numa das portas, Aurora riu para Ringo.

— Esses metidos precisam gastar a montanha de dinheiro que recebem com alguma coisa, né? — disse ela. O border collie deixou a cabeça cair para o lado. Aurora riu. — Como é que tu aguenta esse cara?

Mas Ringo não respondeu. Se falasse, Aurora tinha certeza que o pobre cão pediria socorro.

Com uma olhadinha rápida para a sala, não viu o cara, o tal executivo metido que havia rolado pelas escadas, em lugar algum. Suspirou. Era melhor assim. De todos os idiotas que transitavam no saguão da AlphaCom, aquele parecia ser um dos piores. Quanto mais longe ficasse dele, melhor. Enquanto traçava um plano para limitar ao máximo o contato com o cara, o celular vibrou no bolso traseiro do jeans. Aurora sorriu ao ver o nome de Tim na tela trincada.

E aí, como tá a minha enfermeira preferida?

Ela riu, sentando-se numa das banquetas da ilha.

— É o primeiro dia, e adivinha só? Não aguento mais.

Como é o cara?

Um rico metido — disse ela, puxando para perto um livro de receitas. — Nunca esperei nada diferente vindo da AlphaCom.

A risada dele, mesmo que distante alguns quilômetros, aqueceu o coração de Aurora. Queria que Tim estivesse ali. Aquele dia certamente estaria melhor com a presença do namorado.

Tu me conta isso melhor no jantar de hoje à noite — respondeu ele, rindo. — Aliás, tudo certo pra hoje? A Fran quer que eu leve o vinho ou não?

— Não precisa — apressou-se Aurora. Do outro lado da linha, Tim ficou em silêncio. — Ah, eu já comprei. Não te preocupa.

(Na verdade, a irmã de Aurora odiava quando Tim levava o vinho. Segundo Fran, ele sempre escolhia um vinho mais caro para se exibir à mesa. A mãe delas reprovava com um olhar o comentário, mas a avó e o pai sempre davam uma risadinha quando Fran imitava Tim girando a garrafa de vinho e simulando ares de entendimento que não possuía.)

A gente se vê lá, então. — E Tim fez uma pausa longa demais. Antes que Aurora pudesse perguntar qual era o problema, ele disse: — Só liguei pra pedir que tu não leve isso tão a sério.

Aurora parou de folhear o livro de receitas. Espremeu os olhos para a fotografia de escargots, ouvindo, no silêncio da casa e no rumor da chuva, a respiração de Tim do outro lado da linha. Ringo não estava mais ali. Aurora apertou o celular contra a orelha, incomodada sem saber ao certo o motivo.

— O que tu quer dizer com isso? — perguntou ela.

Ah, tu sabe — disse ele, naquele tom que implicava uma coçadinha na nuca. — Vai com calma. Não é como se tu estivesse recebendo pra aturar o cara, Ari.

Ela revirou os olhos. Aquilo era típico de Tim, cujo passatempo preferido, além de assistir palestras motivacionais no YouTube, era pensar em dinheiro. Ela relaxou na banqueta da ilha, virando a página do livro de receitas sem vontade.

— É claro que tô recebendo — retrucou Aurora — Vou ficar de enfermeira do cara, mas recebendo o meu salário normal.

Que não é lá essas coisas...

Aurora colocou um sorriso no rosto. Seria, como sempre, a parcela otimista do casal.

— Ei, prefiro encarar a situação toda como férias remuneradas — brincou ela. Tim riu. Aurora seguiu virando as páginas do livro de receitas sem prestar atenção nas fotografias bem editadas. — Olha, a gente já conversou sobre isso. O cara tá quebrado por minha culpa. É o mínimo que posso fazer pra ajudar e... manter meu emprego.

E a lembrança daquele dia chuvoso no saguão da AlphaCom, com os elevadores parados, os executivos apressados e o chão molhado apontaram para Aurora com um dedo acusador. O grito do cara, as folhas voando, a confusão. Mesmo sozinha na cozinha, corou. Se ela não estivesse com os velhos headphones nos ouvidos, se não estivesse ouvindo música no último volume e se estivesse, como seu pai sempre dizia, prestando atenção no que fazia, nada daquilo estaria acontecendo. Era só ter levantado a porra da placa, Aurora, pensou ela. Mas de que adiantaria isso agora?

Sem graça, virou a página do livro.

Eu sei, amor. Mas não te esforça tanto. — Ele fez uma pausa preocupada. — Não é como se tu estivesse sendo paga pra lavar a bunda dele, Ari

Ela riu, fechando os olhos por um momento.

— Meu Deus. Tu é nojento, Timóteo.

Ei, só não quero minha namorada esfregando outra bunda que não a minha, ok?

Claro. Até porque esfregar a tua bunda ou a de qualquer outro cara tá no topo da minha lista de priori...

Mas ela não terminou a frase. Ringo latiu duas vezes, dois rugidos profundos que chamaram a atenção de Aurora. Ela ergueu a cabeça e, sem graça, corou quando viu o cara no vão da cozinha. Ele não parecia bem. Com uma careta estrangulada no rosto bem barbeado, os braços engessados meio erguidos e a boca aberta, ele não parecia nada bem.

— Preciso desligar, Tim. Até mais tarde.

Ela ouviu um "Te amo, Ari!" antes de encerrar a chamada, mas não teve tempo de responder. O cara abriu ainda mais a boca, os olhos esbugalhados. Ele tentava erguer os braços, entretanto o gesso impedia qualquer movimento mais elaborado.

— Tu tá...? — começou ela.

— No meu... no meu... — disse ele, a voz estrangulada. O cara fechou os olhos, e os nervos de Aurora, que até então acreditaram que aquilo seria exatamente como férias remuneradas, vacilaram. — No meu... quarto...

— O quê...?

— Na gaveta... — prosseguiu o cara, mexendo os bracinhos e arregalando os olhos castanhos emoldurados por sobrancelhas grossas. Ele engoliu em seco antes de arrematar: — Na gaveta... asma...

Assim que a ficha caiu, o desespero se instalou. Miguel estava tendo uma porra de ataque de asma. De repente, nem ela era capaz de respirar.

— A bombinha... — suplicou ele.

— Eu vou pegar — respondeu ela. — Aguenta aí.

E Aurora passou correndo por ele, os tênis cantando no piso de madeira bem encerada. Ringo vinha atrás, subindo de dois em dois os degraus da escada que levava ao segundo andar. Nervosa, Aurora sintetizou a missão que tinha pela frente numa lista mental óbvia; quarto do cara, gaveta e bombinha. Fácil e rápido feito o golpe de um ninja. O único problema, que ela não demorou a descobrir, era encontrar o tal do quarto.

A primeira tentativa deu num banheiro com pia de mármore. A segunda, num escritório de paredes revestidas com madeira. A terceira apresentou um quarto de hóspedes, assim como a quarta. Aurora empurrava as portas brancas com um solavanco ansioso apenas para encontrar quartos impessoais com almofadas chiques em cima da cama, escritórios silenciosos e banheiros brilhantes. Quem diabos morava numa casa com tantos cômodos assim? Coisa de gente rica, pensou ela, empurrando a quinta porta com o coração na ponta dos dedos.

Em nada aquele quarto de paredes cor de creme e almofadas organizadas em cima da cama diferia dos outros, mas havia um terno em cima da cama. Um terno. Só podia ser ali. Aurora voou para dentro do quarto, escancarando as gavetas da mesinha de cabeceira. O porta-retrato que decorava a mesinha caiu, e ela grunhiu. Ringo começou a latir daquele jeito ritmado e insistente, de novo e de novo, como se soubesse o que estava errado. De repente, ela lembrou que quase 2 mil brasileiros morriam de asma por ano. Por que diabos ela tinha de se lembrar daquele dado justo agora?

— Calma, porra. Calma — resmungou ela, tanto para Ringo quanto para os próprios pensamentos. Aurora revirou as gavetas, puxando para fora papéis e analgésicos. — Preciso achar essa... aqui!

Aurora pegou a bombinha como se fosse o Santo Graal e desceu as escadas numa velocidade alucinante, derrapando ao atingir a base. Na porta da cozinha, o cara já estava branco, e Aurora não esperou nem mais um segundo. Enfiou a bombinha na boca dele, exatamente como fazia com a irmã quando ela era menor, e apertou. O cara inalou três vezes e relaxou, na medida do possível, na cadeira de rodas motorizada. Pequenas gotinhas de suor tomavam a testa dele. Ficaram em silêncio, ouvindo a chuva bater nas janelas, até que ele pudesse respirar novamente.

Ela esperava, como toda e qualquer pessoa normal, um agradecimento. O que recebeu, no entanto, foi uma surpresa desagradável.

— Por que tu demorou tanto? — perguntou ele, a voz estrangulada. — Já não basta ter tentado me matar uma vez, Aurora Bianchi? Pelo amor de Deus.

— Eu ainda tive que procurar essa merda, meu — resmungou ela, sentida. — Um "muito obrigado" por salvar a tua vida seria mais do que suficiente, sabe?

Miguel apertou os olhos, levantou o nariz e virou as costas, manobrando a cadeira de rodas motorizada com a pontinha dos dedos, e sumiu pela sala. Ela apertou a bombinha com força, até os nós dos dedos ficarem esbranquiçados, mas não reclamou.

Cuidar daquele mala sem alça estava acabando com sua paciência. E é recém o primeiro dia de longos três meses, pensou ela. As coisas que a gente faz pra não ser demitida...

Ringo colocou a língua para fora, pendendo a cabeça para um lado. Aurora sorriu para o border collie e seus vibrantes olhos azuis. Em tom de confidência, ela perguntou:

— Como é que tu aguenta esse mala?

Ringo respondeu com uma balançada de rabo. Ela olhou para o relógio chique demais fixado na parede da cozinha e suspirou.

Aurora só queria ir embora.


Miguel só queria que ela fosse embora.

Sentado no sofá da sala — gesto que ele levara uma boa meia hora para concretizar devido ao gesso na perna esquerda e nos dois braços — vira a tarde passar diante da televisão de tela plana, navegando pelos canais com auxílio do controle remoto e muita força de vontade. Era esquisito passar o dia em casa, coisa que Miguel não fazia desde a faculdade, quando começara a trabalhar de fato. Assistir televisão, também, parecia outra realidade; há quanto tempo não ligava aquela porcaria? Meses. Passar mais tempo no escritório do que em casa mudava a percepção das coisas. E muda muitas moças do tempo, pensou ele, olhando para a jornalista loira, de cabelos curtos como os de Aurora Bianchi, prever mais chuva para a já alagada capital dos gaúchos.

Na verdade, o dia não poderia ter sido pior. Além de ter ficado em frente à televisão feito um imprestável porque não conseguia usar o celular ou mesmo o computador para checar as movimentações financeiras do mercado, Miguel fora obrigado a aturar Aurora cantando músicas pop enjoativas, boleros antigos e rindo com Ringo, o cão mais traidor do Brasil. Com o tempo ficando mais e mais escuro, a irritação de Miguel só crescia. Quando ela iria embora?

Foi aí que a campainha tocou e a porta foi aberta. Logo em seguida, Quincas entrou na sala com a jaqueta de couro e os cabelos cor de areia ensopados. Ele trazia um guarda-chuva azul quebrado e um par de muletas.

— Oi, gente! Tudo certinho por aqui? — perguntou ele, enfiando o guarda-chuva molhado num cilindro de metal ao lado da porta. Quincas ergueu as muletas como se fossem uma medalha olímpica. — Trouxe pra ti, tchê! Peguei emprestado com um fornecedor de chicletes do pub.

Miguel apertou os olhos para o amigo. E para as muletas. E mais uma vez para Quincas.

— O que tu quer que eu faça com isso? Meus dois braços estão quebrados.

Quincas ficou sem graça. Ao lado dele, Aurora sorriu.

— Mas tu vai melhorar — disse ela, apoiando as muletas na parede. — E aí vai poder usar as muletas. Valeu por ter pensado nisso, Quincas.

— Sem problemas. — O amigo sorriu agradecido, coçando a nuca. O cheiro de cigarros mentolados da sua jaqueta preencheu a sala. — Então... como foi o dia por aqui?

Nenhum dos dois respondeu. A chuva, sempre intrometida, respingou nas janelas durante um bom tempo no silêncio incômodo da sala de estar.

— Tive um ataque de asma e quase morri. Obrigado por perguntar — Miguel fechou a cara. — E preciso ir ao banheiro.

Novamente, silêncio.

— Essa é a minha deixa. Boa sorte, Quincas. — Aurora pegou o capacete cor-de-rosa e a mochila surrada de cima da poltrona. Ela fez uma pausa e, com aqueles olhos castanhos gigantes, encarou Miguel. — Até amanhã.

— Como assim, "até amanhã"? — perguntou Quincas, confuso. — Tu não vai dormir aqui?

O olhar que Miguel dividiu com a faxineira assassina foi certeiro. Passar o dia atazanando a paz dele era uma coisa. Dormir ali e xeretar por tudo, como ela certamente fizera enquanto procurava o inalador, era outra bem diferente.

— Aurora Bianchi não recebe pra isso — disse Miguel, irritado. — E eu tô bem. Não preciso da ajuda de ninguém.

A chuva engoliu o suspiro que a faxineira, aquela insolente, deixou escapar. Miguel trincou a mandíbula. Ela vestiu a jaqueta de couro, enfiou o capacete cor-de-rosa e bateu uma continência curta, típica de quem se despede, e disse numa voz abafada:

— Até depois.

Aurora abriu a porta da frente, trazendo uma lufada de ar frio para dentro da sala de estar, e sumiu no temporal da noite que chegava aos poucos. Miguel resmungou ao ouvir o click da porta e o choro baixinho de Ringo. Isso só pode ser um pesadelo, pensou ele.

Como o objeto principal de sua raiva estava distante, direcionou suas reclamações a Quincas.

— Obrigado por me deixar com a maluca que tentou me assassinar — resmungou Miguel. — Realmente, quem tem tu e a Heloísa como amigos, não precisa de inimigos.

— Ei, até que a moça não é tão ruim assim...

Quincas sorriu daquele jeito malicioso que só quem trabalha num balcão de pub domina como ninguém. As orelhas de Miguel esquentaram, e não por um bom motivo. O amigo fazia risinhos e alusões sobre mulheres desde sua separação com Olívia.

— Caso tu esteja insinuando qualquer coisa, Joaquim, não o faça — respondeu ele, altivo. — Saiba que eu preferiria perder a perna do que me envolver com a faxineira assassina.

Quincas revirou os olhos, deixando-se cair na poltrona antes ocupada pelo capacete chamativo de Aurora Bianchi. Ele acariciou as orelhas de Ringo. No sofá, com as costas moídas, Miguel observou em silêncio. Por que coisas ruins aconteciam a pessoas boas como ele?

— Aliás, vou precisar que tu faça alguns favores pra mim — disse Miguel, antes que perdesse o raciocínio. — Nada muito elaborado. Pegar meu computador, meu celular, a bombinha e outras coisas para deixar na bolsa da cadeira. E, Quincas...

— O quê?

— Ainda preciso ir ao banheiro. Pelo amor de Deus.

— Ah, claro. Tinha me esquecido — disse Quincas, levantando-se para a tristeza de Ringo. — Vou te levar lá antes de voltar pro pub. — Ele fez uma pausa. — Mas nem pensa que vou segurar no teu pau, cara. Amizade tem limite.

Miguel deu uma risadinha forçada. O amigo riu, ajudando-o a se erguer do sofá. Apoiado nos ombros de Quincas, a escada parecia um templo inca com milhares de degraus.

— Um passinho de cada vez, tchê — tranquilizou o amigo, apertando de leve, como forma de incentivo, as costelas dele. — Pronto?

— Pronto. Vamos terminar logo com isso.

E, devagarinho, realizaram a árdua tarefa de alcançar o segundo andar.


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[NA] → Oi, gente! Espero que estejam gostando de Miguel e Aurora. O último capítulo da amostra vem na sexta, e a história NA ÍNTEGRA vai ser lançada dia 1º de junho na Amazon. Quem quiser garantir o ebook na pré-venda (e ler a história doida desses dois assim que lançar), é só conferir o link na minha bio do Wattpad! Até sexta e CHEGA LOGO DIA 1º ♥ 

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