Sob Rios de Sangue
Era uma cidade pequena, com pessoas de mente pequena, que todavia tinham sonhos grandes. Enriquecer. Mudar daquela região ribeirinha e escapar da mata tropical que em nada, segundo muitos, lhe ajudavam. Alguém ouviu do primo de outro que homens estavam planejando desmatar a floresta, e Seu Fabrício ficou empertigado de nunca ter pensado naquilo, mas de qualquer forma o velho gordo e careca já havia colocado seu plano para enriquecer em prática. Não, não, se os homens de agora planejavam utilizar as árvores para conseguir dinheiro, Seu Fabrício utilizava era dos rios. Do que nadava neles.
Sua filha, Ana, o alertou de que aquilo não era certo, de que a natureza tem seu limite e respeitá-lo era essencial, porém a ganância de um homem torna sua mente mais reclusa do que qualquer outra coisa e, todas as noites, o pai barrigudo despedia-se de sua única filha e saía para sua empreitada maldita, com um arpão debaixo do braço, cordas, redes e baldes nas mãos, desejando-lhe um beijo e dizendo que voltaria pela manhã.
Então, em uma dessas noites de trabalho, Ana encontrou-se desperta por entre a madrugada, revirando de um lado para o outro em seu travesseiro reto demais. Os céus castigavam as vigas de madeira da casa com pingos grosseiros que, de tão violentamente que caíam, não eram relaxantes. Quando pequena, achava-os assustadores e agora, um incômodo.
Precisou levantar-se para fazer um chá, esperando que isso viesse a relaxar sua mente tão pesada, parando de frente ao fogão velho, o qual precisou acender com um fósforo. Enquanto colocava água para ferver, Ana não pode deixar de sentir-se só. Podia ser uma cidade pequena, onde todos se conheciam, mas, ainda assim, ninguém parecia realmente disposto a saber quem ela realmente era. Não falava de seus sonhos. De seus desejos. Muito menos de seus medos. Ana sempre teve medo de ficar sozinha, porém, ainda assim, negou o convite que a amiga lhe fizera naquela tarde para ir até a festa-junina à beira do rio.
— Sorte que não fui, pois está caindo o mundo lá fora — disse em voz alta, porque precisava ouvir que ter ficado em casa era a melhor opção.
Ana queria ser conhecida, porém não se esforçava para que o fizessem.
Quando as primeiras bolhas surgiram na água que esquentava, lá fora a chuva desafiava as pobres janelas, estalando sobre o vidro como pequenas rochas, acompanhada de trovões que clareavam o céu anormalmente escurecido, com as nuvens cinzentas como chumbo e os ventos cantantes como presságios que ela jamais notaria.
Porém ela notou quando três batidas firmes ecoaram na porta da casa.
Ana deu um salto que quase derrubou o bule. Seu coração bateu mais rápido e ela franziu o cenho, linhas como chifres subcutâneos surgindo.
Desconfiada e confusa, a garota apenas voltou sua atenção ao que fazia, procurando por um saquinho de chá, rasgando-o no mesmo instante e que novas batidas fizeram a porta tremer. O pó caiu sobre a bancada e ela praguejou.
Não há ninguém lá...
Porém mais duas batidas a fizeram descartar esse pensamento e caminhar até a porta, passos vagarosos como de quem se aproxima por detrás de uma cobra, o suor frio surgindo na nuca e os olhos arregalados em meio a escuridão da casa, que criava sombras traiçoeiras de arrepiar o pescoço.
Por um segundo, ela achou que quem quer que fosse já estava dentro da casa quando uma das sombras assumiu a silhueta similar a de um homem, mas era apenas o casaco de seu pai pendurado ao lado do molho de chaves reserva.
E se for o papai? Se fosse ele, já teria entrado, certo?
Na escuridão da dúvida, Ana tocou a maçaneta e escancarou a porta, seu corpo sendo envolvido por uma rajada de pingos frios carregados pelo vento agressivo, que acabaram por refrescar seu corpo quente, mas nem de longe a molharam como a quem estava à sua frente.
Era o homem mais belo que ela já havia visto, apesar do nariz enorme, com olhos escuros como café queimado, fixos nela com uma intensidade que a fez segurar firme à maçaneta, o rosto do inesperado visitante com traços firmes, pontiagudos, com as maçãs do rosto saltadas naquela pele morena, que certamente beirava o tom de dourado durante o dia, os cachos de seu cabelo pendiam sobre o rosto, grudados na testa, assim como as vestes brancas colavam em seu corpo torneado, que saltava em meio a escuridão da mata logo atrás.
Para ela, aquilo era um acaso importuno.
Para ele, não.
— Desculpe o incômodo, senhorita, é só que... com essa chuva... — ele apontou para os céus, que relampejaram no mesmo instante — ... acabei me desviando do caminho e me perdi.
Ana ainda estava desconfiada e manteve o cenho sério até o instante que se lembrou que ainda estava de camisola, fechando os braços ao redor do corpo a fim de esconder os mamilos marcados pela seda, jogando os cabelos para frente e sentindo o rosto esquentar.
— Para onde estava indo? — perguntou, porém os ventos pareciam querer alertá-la sobre o perigo que aquele homem era, aumentando seus gritos invisíveis e lançando as folhas as árvores contra a casa, os pingos grosseiros atingindo seu corpo.
— O QUE DISSE? — gritou ele, a voz mais grossa do que ela esperava.
— PARA ONDE ESTAVA INDO!? — replicou na mesma intensidade, estreitando o olhar para protegê-lo as gotas certeiras.
— UMA FESTA JUNINA!
Então, num súbito, como se aquela frase fosse uma palavra mágica, os ventos diminuíram sua presença, como se se colocassem de lado e deixassem o homem como protagonista.
— Eu estava indo a uma festa junina — repetiu ele quase envergonhado por ter tido de gritar com uma mulher. — Será que poderia me ajudar?
Ela maneou a cabeça de um lado para o outro, sorrindo com os lábios colados.
— Estamos em junho, há muitas festas acontecendo...
— E todas elas são de madrugada? — retrucou e, apesar da rispidez, ela só percebeu o galanteio em seu olhar.
Ana respirou fundo, sem saber ao certo como reagir à beleza do homem nem ao menos ao tom de sua voz, que se assimilava ao canto das águas do rio, entorpecendo-a com seu odor doce, o qual fazia sua boca salivar.
— Acho que tem algo acontecendo com seu forno — alertou ele apontando para além da cabeça dela.
— O chá! — Ana correu para dentro da casa, as bolhas escorrendo fumegantes da água que fervera por demais. Ela apanhou um pano velho e tirou o bule do fogo, colocando-o dentro da pia e lançando água fria sobre ele, um chiar antecedendo a fugaz cortina de fumaça que subiu em espirais até seu rosto.
O cheiro salgado fez seus cílios se agitarem e o corpo endureceu. Ela precisou olhar para os lados para assimilar que ainda estava em casa e que nunca saíra dali. Os pingos ainda desenhavam rios nas janelas e o piso de madeira ainda tinha seus cupins e rangia com seus passos, a pia nunca parava de gotejar e havia um homem lá dentro.
Seu coração parou por um segundo e o ar pareceu insuficiente em seus pulmões, de tal forma que ela lentamente girou seu corpo, apoiando-se na pia para sustentar o corpo na medida em que assistia ao homem agachado no meio de sua sala de estar. A porta estava fechada.
— Q-Quem é você? — gaguejou e os olhos castanhos fitaram-na com estranhamento.
— Ah, perdoe-me, esqueci de me apresentar, sou Kaique. — O invasor estendeu sua mão a ela e a garota apenas agarrou a alça do bule dentro da pia. A água ainda estava quente, iria machucá-lo se tocasse a pele. — Está tudo bem?
— Por que está na minha casa? — perguntou firmemente. — Não tem dinheiro aqui! Nada precioso! Vá embora!
Kaique deu um passo para trás e um raio caiu atrás dela, passando sua luz pela janela e banhando o corpo dele, desde seus cabelos encharcados até o nariz horrendo e protuberante, passando pelo peito firme até alcançar seus sapatos, que eram tão brancos quanto tudo o que ele usava.
— Perdoe-me, só vim apanhar meu chapéu — explicou quase duvidando de sua sanidade e apenas agora Ana percebia que na mão direita dele havia de fato uma sombrinha tom de leite.
— N-Não se mexa! — ordenou, a mão afastando-se da alça do bule, esbarrando rapidamente sobre o metal. A dor não demorou a vir e ardeu sob a pele, arrancando um grunhido dela.
Ana fechou os olhos, xingando Deus e mundo.
Quando os abriu, Kaique estava de frente para ela, colado a seu corpo.
— A senhorita vai poder me ajudar?
O aroma adocicado adentrou seu corpo e as pupilas dilataram diante a beleza de seu rosto, as mãos dele delicadamente tocando os ombros dela, amaciando a pele sem pressa, analisando desde a pinta que ela possuía sobre a sobrancelha até o decote de sua camisola.
— Onde disse que estava indo? — perguntou ela recordando-se aos poucos.
— À festa junina.
— Ah, sim, é claro... — Ana mordiscou o lábio inferior. — Deve estar se referindo ao festejo do Seu Carlos, certo?
— Esse mesmo! — Seu sorriso abriu-se e a fileira de dentes era perfeita demais., talvez até mesmo demasiadamente afiados. — Pode me levar até lá?
— Te levar? — Ela engoliu em seco. — E-Eu não planejo ir até lá...
— E por que não?
— Estará até o tucupi... prefiro ficar em casa.
— Certeza? — As sobrancelhas dele se arquearam. — Eu posso garantir que a gente se divertiria muito.
Ela ainda hesitava, porque parte de seu corpo prendia-se ao ardor na ponta de seu dedo, puxando-a para além do transe em frações de segundos que eram fracas demais para despertá-la, porém o suficiente para que dificultassem o trabalho dele.
— E-Eu não sei...
— Vamos lá, Ana... será uma maneira das pessoas saberem quem você é!
...
A tempestade, por mais incrível que pudesse parecer, arrefeceu-se conforme o caminhar deles na direção da festa, limitando-se a uma fina garoa, suas mãos tocando-se aos poucos, como um casal apaixonado aos olhos externos, mas dos olhos deles ver-se-iam apenas presa e caçador. Ana e Kaique. Porque, apesar de sob os encantos do transe homem — que mais estava para criatura belíssima — a garota ainda era ela mesma, com a mente em chamas, gritando para correr o mais rápido dali, todavia suas pernas mantinham o ritmo dele
A mata não era tão assustadora durante o dia, com as aves cantando, o sol passando por entre as folhagens e desenhando abstrações por entre a trilha de terra batida que ali fora feita, porém havia algo nas noites daquela cidadezinha ribeira no interior do Amazonas que pareciam apavorar Ana e, agora, sem o controle de seu corpo, tudo parecia infinitamente pior. Era como se a cada lugar que você olhasse, uma sombra iria se esgueirar para te devorar, e ninguém o ajudaria, pois estavam dormindo, assim como os animais, que se aproveitariam de seu corpo no outro dia, quem sabe.
Um galho se quebrou atrás deles e a garota quis dar um pulo, porém o reflexo a fez apertar a mão dele conforme os dedos se entrelaçavam, o coração acelerando-se e a adrenalina já fluindo por seus músculos.
À esquerda, na direção de Kaique, que nem mais sequer olhava para ela, podia-se ouvir o suave decorrer do rio, sem pressa alguma, abrindo seu caminho e levando folhas secas sobre sua superfície e escorando criaturas por debaixo.
Um novo galho se quebra.
Pode ser um quati, pensou ela, só pode ser um quati..., mas de noite? Bom, eles costumam ser territorialistas...
O som se repete, agora aproximando-se de ambos. Ou seriam eles que se aproximavam do som?
Ana sentiu a respiração umedecer e o lábio inferior tremia conforme seus olhos encaravam a vastidão negra, as folhas tornando-se um aglomerado uniforme horrendo, que a deixava cega conforme ela tentava desvendá-lo. Ninguém na trilha. Nenhuma carroça passando. Ela ouve um estalido que vem acima de sua cabeça e, hesitante, ela ergueu seu rosto em direção aos céus. Não há estrelas, ou talvez sejam as copas altas que as cobrem.
Bastou mais um estalido para que a garota encontrasse sua origem: vinha de um longo fio de luz, que estava falhando por ter se arrebentado ao meio. Provável que algum animal acabou por roê-lo...
— Talvez tenha se perdido porque as luzes se apagaram — diz ela, mas Ana quase não reconhece como sua voz sai.
— Talvez.
Caminharam mais um pouco até se depararem com um novo conjunto de fios arrebentados. Ana queria se debater e desvencilhar-se da mão dele, mas não importava o que fazia, seus músculos pareciam se recusar a obedecer e âmago do desespero queimava em seu peito.
— Para quê resistir, Ana?
Ela arregalou os olhos e, de repente, os ventos voltam a soprar e uivam como se anunciassem a chegada de um monstro. A garota sabe que as pernas estão tensas e "distantes", mas ainda assim a vontade de correr e fugir dali não escapava de sua mente.
— C-Como sabe meu nome? Eu não lhe disse...
— Tem razão, não disse — Kaique olhou de esguelha para ela, piscando o olho direito em sua direção, o chapéu branco no alto de sua cabeça ainda molhada. — Nem precisava.
Tomada por um pânico angustiante e ardente, Ana sentiu o suor escorrendo por suas costas. Ela olhou para a direita. Não havia nada, apenas árvores e uma aparente segunda estrada. Ela olhou para a esquerda, porém só enxerga seu predador e o modo como seus dedos seguram sua carne.
— Sabe... nada disso precisava acontecer. — Os olhos dele brilhavam por entre a noite. — Nós sempre fomos tão... gentis com vocês, ajudamos com as pescas, com aqueles que se afogavam, e fomos sagrados para as tribos durante milhares de anos, bem antes do homem branco chegar nessas terras. — O tom melancólico misturou-se com um ressentimento amargo. — Mas isso não era o bastante para vocês, não era?
— Vocês? — Ana franziu o cenho. — Do que está falando?
Kaique sorriu com o canto direito dos lábios, pois sabia que ela o veria fazer isso.
— Acredita em lendas, Ana?
Ela não respondeu.
— Vamos lá, converse comigo, vai ficar tudo bem.
— Não.
— Não acredita ou não vai falar comigo?
— Não acredito — repete com clareza e tropeça nos próprios pés. Ele a segura pelo braço com a força de um alicate. Ela arregala os olhos.
— E por que não?
— Porque... são sempre bobas demais...
— Muitos discordariam de você. — Ele diz seriamente. — Eu discordo de você.
De alguma forma, falar parece desacelerar os batimentos dela e a mente da garota se clareia por entre os nuances do transe, aos poucos, de tal forma que ela percebe como o solo é quase movediço e se arrasta por eles, além do fato de ainda estar ridiculamente de camisola.
— Lendas que falam de lobisomens, garotos de uma perna só, cobras gigantes, velhas amaldiçoadas... isso é tudo irreal demais — diz ela sentindo a vista se abrir, como se uma cortina estivesse se desfazendo diante dela.
— Irreal, você diz... — Ele umedece os lábios. — O que não seria irreal, então?
— A vida. — Ana já redobrou quase todos os seus sentidos agora.
— E, portanto, a morte.
— É... a morte também. — A garota engoliu em seco. Para onde ele a estava levando? Ana tentou notar os sons ao seu arredor.
— Eu assisti a morte do meu povo por causa do seu. — A raiva era explícita, tanto quanto o som mais firme do rio, a água batendo sobre as margens. — Nós os ajudávamos..., mas os seus pescadores queriam mais. Eles não ganhavam tanto com os peixes quanto quando vendiam a carne de meu povo.
Não precisava estar perfeitamente desperta para saber qual papel ela representava ali. Desde o primeiro passo para fora de casa, Ana compreendeu que era a presa, que era ela quem iria morrer e que não havia nada a fazer.
Mas ele sabia que ela havia saído do transe?
Ana não esperou para descobrir.
Seus olhos percorreram os locais mais próximos a fim de encontrar uma arma. Havia uma rocha, mas era grande demais para ela conseguir arremessar na cabeça dele. O piso era enlameado, ao menos, e isso poderia atrapalhá-lo..., porém isso também valia para ela. Não havia mais cordas de luz aparentes e Ana pensou por um segundo que, talvez, nem ao menos houvesse uma verdadeira festa junina e que a amiga que a convidara naquele dia, mais cedo, poderia muito bem ter sido enganada.
Porém se isso fosse verdade, onde ela estava? Estaria viva?
Foi apenas quando os olhos avistaram um galho solto na parte inferior do tronco de uma árvore que Ana atacou. A mão direita envolveu a madeira e a puxou uma única vez, arrebentando-a contra o rosto de Kaique, que gritou num súbito, as farpas adentrando a pele e criando pequenos pontos de sangue, alguns mais profundos que outros.
Ele a largou como reflexo e Ana correu para dentro da mata.
E não parou de correr até que seus pulmões mandassem e seu coração parecesse explodir, desviando dos galhos na altura de seu rosto, quase torcendo o pé em buracos inesperados e as narinas dilatadas na medida em que os olhos ardiam.
Ana aproveitou o momento para escutar se o homem estava atrás dela. Sua respiração ofegante, dolorosa e carregada de cansaço rasgava o silêncio, que em nada lhe dizia. Conseguiu se controlar um pouco. A noite permaneceu quieta até os ouvidos voltarem a perceber o rio. Não havia mais passos. Isso era bom, certo? Tudo dependia do ponto de vista. Ana tentou se lembrar se ela mesma ouvia seus passos enquanto corria naquela terra molhada. Achava que não, ou talvez o medo a tenha feito pensar isso. Tanto fez, porque a garota decidiu prestar atenção se havia galhos se partindo; isso seria difícil de não ouvir. Porém nada ressoou também. Será que havia conseguido escapar? Tão relativamente fácil assim?
Podia ser nova o bastante para muitos questionarem suas decisões no dia-a-dia, porém esperta o suficiente para saber que não podia arriscar ser vista, de tal forma que se moveu encolhida, rastejando sobre o solo, os cotovelos afundando em elevações enquanto ela sentia pequenas formigas em seus calcanhares.
O único som que conhecia era o rio, e foi para lá que decidiu prosseguir, porque, apesar de saber que Kaique também poderia estar por lá, era a única forma que conseguia pensar para retornar para casa.
Seguir o fluxo contrário, sim. É isso que papai sempre me disse para fazer caso me perdesse.
Quando seus braços já tremiam com o esforço, exaustos, o rio apareceu para ela; na verdade, a engoliu, porque seu corpo escorregou pela pequena depressão e o rosto afundou na água morna, turva, engolindo o líquido com gosto de terra e sentindo grânulos prendendo-se ao céu da boca.
Ana sustentou o corpo com os braços e tentou respirar fundo, apertando os olhos, vendo como os pingos da garoa fina explodiam sobre a superfície como contas de vidro, sentindo os cabelos pesando sobre a cabeça. Não havia tempo a perder e ela se levantou para voltar a andar.
Foi então que algo duro atingiu sua cabeça.
...
Ana sentiu os olhos doerem. Luzes bruxuleantes ofuscavam sua vista, vindo de pequenas tochas fincadas na margem do rio, lutando entre estalidos para se manterem acesas. Espera... estou na margem? Como...? Um aroma doce impregnava o solo, onde ela estava de joelhos, zonza, as mãos atadas atrás das costas por vinhas grossas, a boca amordaçada, porém o gosto da terra que secava sua língua fazia com que a mulher sentisse apenas as entranhas se embrulhando como folhas de seda.
Ver Kaique novamente não foi surpresa alguma.
O que apavorou seus ossos foi ver que ele não estava sozinho.
Havia mais quatro homens junto a ele, todos estranha e estupidamente belos, de corpos esculturais e vestes brancas coladas ao corpo, chapéus brancos sobre as cabeças e olhos que te furavam a alma. Porém a garota também não era a única ali. Na verdade, ela era a penúltima da direita para a esquerda de uma fila de garotas amarradas, todas com mordaças e desesperadas, os cabelos desgrenhados ou então roupas rasgadas. A amiga estava lá, também, a primeira da fileira, encarando-a compulsivamente, as lágrimas rolando por seu rosto vermelho, os cabelos crespos amarrados em um coque e sua jaqueta de malha rasgada por puxões violentos.
A angústia nunca foi tanta até o instante que os olhos de Ana cruzaram com a figura mirrada da filha do peixeiro da cidade, Laura, que não havia chego nem em seus quinze anos e estava ali, apenas com a roupa de baixo, com arranhões em seus braços e um olho roxo.
Kaique distanciou-se dos outros, que o assistiram se aproximar de Ana.
— Diga-me, garota, onde você queria ir correndo daquele jeito? — perguntou com sarcasmo conforme abaixava a mordaça dela. Os dentes de Ana rangeram. — Achou mesmo que iria escapar? — Ele se ergueu, os músculos esticando-se. — Não deixaríamos que vocês escapassem.
Ela engoliu em seco.
— N-Nós? — gaguejou com a pouca coragem que ainda tinha, impulsionada pela raiva.
— Veja bem, nenhuma de vocês está aqui por acaso. São filhas de nossos caçadores. — Ele olhou toda a fileira que haviam montado. — Estão aqui, porque a matança precisa terminar.
— Não matamos ninguém... — alertou ela com a voz trêmula, as outras garotas assistindo-a.
— É claro que não, mas seus filhos talvez iriam...
Ana franziu o cenho, confusa.
— O quê?
— Antes de correr, eu dizia que o seu povo matou o meu, mas isso aumentou de geração em geração, de pai para filho... — Os olhos de Kaique estreitaram-se e as palavras escaparam ácidas. — Não arriscarei que toda a minha família seja morta por vocês na próxima geração.
— M-Mas q-quem são... vo-vocês? — perguntou ela, o terror tornando-a gaga.
— "Mas quem são vocês"? — zombou ele com uma terrível imitação da voz dela. — Realmente, os botos são criaturas esquecíveis, não é? — Kaique escorregou a mão por detrás das costas, os dedos contornando a bainha de uma lâmina branca feita de osso. — Mas... você me disse que não acredita em lendas, não é?
O homem lançou-se contra ela, a ponta da faca tocando a bochecha dela, pressionando a carne macia e criando pressão próxima ao olho de Ana.
— Então me diga, Ana, se lendas não são reais, o que nós somos?
Trêmula e apavorada, ela restringiu-se às lágrimas, porém só quando sentiu o aquecer das coxas foi que percebeu que havia se urinado também.
— E agora você se mija toda!? — escarnia ele. — Ah, por favor, Ana, seja consistente pelo menos.
A amiga da garota tentava falar, lambendo a mordaça e tentando empurrá-la para além dos lábios. Um dos homens viu isso, caminhou até ela e puxou seus cabelos, arrancando um grunhido.
— Essa aqui parece que quer falar alguma coisa, Kaique — alertou.
— É mesmo, irmão? — O moreno girou nos calcanhares com a faca de osso e apontou para ela. — Então deixemos que fale.
A mordaça foi solta e os lábios dela surgiram cortados em carne viva.
— Vocês são monstros... — disse baixo demais.
— Desculpe, querida, acho que não ouvi.
— São monstros!
Ele parece ironicamente considerar o que ela diz e depois corre até ela, chutando seu rosto para trás. Ana percebe que eles estão descalços, agora, e seu coração se aperta ao ver a amiga tombar.
— É muito fácil dizer que somos monstros, não é? Mas vocês... — sua dor era real e a história também — ...foram vocês que começaram tudo isso! Vocês mataram praticamente todos os botos dessa maldita Amazônia!
Seus braços se abriram no ar como uma cruz.
— Somente nós restamos, e algumas fêmeas que estão muito bem escondidas, longe de vocês.
— V-Vocês engravidam as mulheres ribeirinhas... — A amiga voltou a falar e Ana só queria que ela parasse. — A culpa é de vocês.
Kaique revirou os olhos e a faca foi certeira contra o pescoço dela, rasgando a pele, afundando nos músculos, dilacerando sua traqueia na medida que o sangue jorrava na direção da margem, o tom carmesim descendo pelos seios dela até seu corpo tombar de barriga.
— Humanos nunca aceitam a própria culpa — desdenha com nojo. — Paramos de engravidar garotas como vocês há anos!
— Não temos muito tempo, Kaique, o sol já vai nascer. — Um dos homens surgiu atrás dele e o avisou ao pé da orelha. — Precisamos nos apressar.
— Tem razão. — Ele limpou a faca contra suas vestes, o tom vívido do vermelho da morte tingindo o branco. — Pode matar.
O outro boto apanhou a bainha e, sem hesitar, esfaqueou a outra garota, seus gritos cortando a noite por entre uma cortina abafada criada pela mordaça. A cada facada, um novo choro, uma nova dor, um novo músculo desfeito. Por fim, quando ela já não mais reagiu, ele ainda continuou, os respingos tingindo-o como pérolas sanguinárias.
— Isso que estamos fazendo, Ana — ele começou a falar com ela quando um de seus homens partiu para a terceira garota. — Não é nada comparado ao que fizeram conosco. — Kaique segurou o rosto dela com as mãos, o polegar e o indicador sujos de sangue deixando-a manchada com horror. — Tiram nossas cartilagens, nos furam com arpões — Forçando-a a olhar para a direita, ela percebeu quando o quarto homem seguiu na direção de Laura — e massacram nossos filhotes.
A garotinha não teve chance.
A faca cravou-se primeiro atrás de sua nuca, depois pela frente, de tal forma que, quando terminou, a cabeça da jovem apenas caiu do corpo.
— Esta noite servirá para que o ciclo de gerações assassinas de vocês seja interrompido. — Entregaram-lhe a faca novamente e Ana sentiu-a abaixo de seu queixo, a boca tremendo e os olhos embaçados pelas lágrimas desesperadoras. — E para que o boto nunca mais seja confrontado... — vagarosamente a faca abriu a pele dela, ardendo em cada centímetro, o corte profundo com a força do ódio, passando pelas cartilagens e desprendendo-as conforme o sangue espirrava como fonte sobre ele, banhando-o — ... ou esquecido.
...
Matar as filhas dos pesqueiros fora fácil e certamente prazeroso a eles, porque todos que se aproveitam dos bons acham que eles jamais teriam um lado cruel. Os botos foram bons com os ribeirinhos, até que começaram a caçá-los. Agora, eles os caçaram de volta.
— Coloque mais para cima — ordenou Kaique a um dos homens conforme montavam a última peça de sua mensagem brutal.
É, depois daquela noite eles jamais esqueceriam dos botos.
Jamais olhariam para uma criatura dócil e boa e abusariam dela.
Agora, conforme eles alinhavam os ossos das garotas — costelas, ílio, úmero, fíbula e clavículas, tudo sendo utilizado — ainda manchados por crostas de sangue seco, e montavam a silhueta do esqueleto de um boto-cor-de-rosa sobre a margem, Kaique não conseguia deixar de sorrir.
Por fim, quando as entranhas foram enterradas e os corpos revirados foram preenchidos de pedras como casulos e lançados no fundo do rio, os homens-boto tiraram as roupas e mergulharam de volta, onde a água era tão turva que jamais veriam o sangue presente nele.
*Aaaaa espero que tenham gostado do conto e, se o fizeram, não se esqueçam de votar!!! Amo pegar nossa cultura e imaginá-la nos mais diferentes gêneros, então se prepareeeem que talvez venham mais contos por aí!!! O que vocês acham? Gostariam de ler mais?
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