epílogo.

03 SEMANAS DEPOIS

Adriana tomou outro gole de café e se encostou no balcão, deixando o suspiro que estava preso escapar para observar a delegacia. Mesmo àquela hora da manhã pessoas entravam e saíam, esperavam escoradas nas paredes, falavam com policiais — algumas à beira do choro — ou eram carregadas, algemadas para longe. Adriana se esticou, sentindo a pele do braço machucado repuxar. Envolto pela gaze, o maldito machucado ainda não cicatrizara por completo, causando todo tipo de incômodo à investigadora.

Com um grunhido, ela atirou o copo plástico na lixeira e se preparou para voltar ao trabalho. Ela e Clóvis investigavam o assassinato de um segurança numa casa noturna na Cidade Baixa, e se Adriana conhecia bem seu velho colega, ele possivelmente estaria escondido no banheiro tirando outra soneca. Ou, como ele dizia, aproveitando a pausa do café da melhor maneira possível.

Às vezes — raramente, que fique claro — Adriana sentia falta de trabalhar com Luís. Pelo menos quando trabalhava com ele não precisava parar de cinco em cinco segundos em banheiros de bar e postos de gasolina por causa da bexiga fraca dele. Quando Silveira escolheu Clóvis para ser seu parceiro naquele caso, Adriana não pensou que fosse tão difícil lidar com o velho policial. Porém, antes que ela pudesse voltar ao caso, o sorriso de Dante apareceu no vão da porta.

— Ocupada, Adri?

— Pausa pro café — disse ela, sorrindo. — O que tu manda?

— Vem comigo na sala do Silveira?

— Ele já voltou?

O delegado saíra para uma reunião com o secretário de segurança sobre o caso de Érica. Por mais que tentasse negar, Adriana mal podia esperar para ouvir os detalhes. Entretanto, para sua surpresa, Dante adotou uma expressão culpada.

— Ainda não voltou. E é por isso que a gente precisa ser meio rápido.

Adriana ergueu as sobrancelhas. Depois de uma pausa, acrescentou:

— Se eu não te conhecesse há uns quinze anos, diria que tu tá dando em cima de mim, Dante...

— Eu sou quase comprometido. Tu sabe — disse ele, corando. Adriana sorriu, cruzando os braços. Percebendo que ela não ia se mover, Dante pigarreou. — Vamos ou não?

Ela assentiu, e ainda com o sorriso preso aos lábios, seguiu o amigo pela delegacia abarrotada de gente. Desviando dos policiais que iam de um lado para outro, registrando boletins de ocorrência e acalmando viúvas chorosas, Adriana perguntou:

— Tu e a Rosa tão firmes, então?

— A gente tá... se conhecendo ainda.

Quando chegaram em frente à sala de Silveira, Adriana bloqueou a passagem, as sobrancelhas levantadas.

Se conhecendo. Tá. E tu dormiu todos os finais de semana fora da cidade porque vocês tão... se conhecendo. Conta outra.

Dante corou, abrindo a boca à procura de uma resposta. Era raro ele se abrir sobre qualquer relacionamento, então Adriana abusava — só um pouquinho — quando sabia que algo estava acontecendo. Era sua maneira torta de retribuir o carinho que ele tinha por ela.

— Rosa tá pensando em abrir uma filial do restaurante aqui. Se mudar — disse ele, tentando manter a pose. — Só tô... ajudando. Além do mais, quando foi que tu virou o Luís? Tá, chega disso. Vai entrando.

Dante a segurou pelos ombros e empurrou-a para a sala de Silveira. Rindo, Adriana ia pressionar, mas desistiu quando viu Luís de pé no meio da sala. Mesmo com uma tipoia azul envolvendo o braço e vestindo roupas amarrotadas, ele sorria. O olhar dela cruzou com o de Luís, e com tantas coisas parar dizer, Adriana só conseguiu formular:

— Tu não deveria tá no hospital?

— Bom te ver também, Adri. — Ele riu. — Eu tive alta hoje. Há uns 20 minutos, na verdade. Aí peguei um táxi e vim ver vocês.

Adriana ficou em silêncio antes de cruzar os braços e sorrir.

— Se o Silveira te pega aqui, uma semana antes de fechar tua licença médica, ele te mata.

— É um risco que eu tô disposto a correr.

Trocaram outro olhar, e ela balançou a cabeça.

— A conversa tá boa, gente, mas eu preciso voltar. — Dante abraçou Luís, apertando sua mão boa. Com as sobrancelhas levantadas, disse aos dois: — Juízo, ok?

Quando Dante fechou a porta, ambos ficaram em silêncio. As persianas da sala estavam abaixadas, e Adriana esperou enquanto Luís olhava para tudo como se fosse a primeira vez em que entrava na sala do delegado.

— Cara, eu senti falta desse lugar.

Ele suspirou e ela riu. Adriana foi até a mesa do delegado, se apoiando no tampo. Luís sentou-se numa das cadeiras, soltando um grunhido ao ajeitar a tipoia.

— Tu devia ter ligado — disse ela. — Eu podia te pegar no hospital.

— Bobagem. Não quis incomodar. — Ele se ajeitou na cadeira e, quando ficou confortável, olhou para Adriana. Ainda apoiada na mesa de Silveira, encarando Luís, ela esperou. Impaciente, ele disse num tom óbvio: — Me conta o que rolou, né?

— Tu tinha uma baita televisão naquele quarto de hospital e vai me dizer que não viu os jornais?

— Eu só podia ver desenhos, tu sabe. E a dona Cândida mais parecia uma carcereira do que uma enfermeira.

Adriana riu ao se lembrar da senhora gorducha, de cabelos curtos e nariz adunco que nunca falhava em olhar feio para ela e Dante quando eles tentavam trocar o canal da televisão ou falar de assuntos que exaltem o doente durante as visitas. Se um dos dois tentava mencionar o caso para saciar a curiosidade quase infantil de Luís, dona Cândida surgia do nada para presenteá-los com um de seus olhares ameaçadores.

— É justo. — Ela riu. — O que tu quer saber?

— Tudo. Não quero ser poupado de nenhum detalhe.

Adriana suspirou, pensando de onde diabos deveria começar.

Tão logo levaram Lafue, não foi difícil puxar o fio daquela meada tão enrolada. O velho era um imigrante francês, livreiro profissão que não tinha muito a oferecer em seu país natal e se mudou para o Brasil. Até ele descobrir que uma paixãozinha dele morava justamente na pequena cidade de Lisiantos.

— Eles se conheceram em Paris, onde ela se apresentou como Marie. Uma brincadeira idiota entre eles — disse Adriana. — Tiveram... um lance. Colhemos o depoimento de Vitória, e ela confirmou o romance com Lafue na juventude. Até aí, tudo certo. O problema foi quando ele se mudou para a cidade e ela se casou. Lafue não aceitou bem no início, mas Vitória deu a entender que, de certa forma, o amor deles viveria pra sempre justamente por ser fracassado.

— Poético. — concordou Luís. — E foi por isso que ele começou com os livros feitos de gente? Ela sabia?

— De acordo com ela, não. Ela sempre achou... digno Lafue querer manter uma relação de amizade, mas depois de um tempo, começou a estranhar. — Adriana fez uma pausa. — Ele enviava os livros pra casa dela com bilhetes do tipo por todas as vidas que não vivemos e essas coisas. Vitória nos enviou todos os livros que recebeu de Lafue através dos anos, e a Perícia confirmou o material usado, apesar de ela negar saber. Além do mais, quem iria desconfiar de livros encadernados com pele humana?

A mídia fazia o estardalhaço há semanas, chamando Lafue de "o serial killer da serra gaúcha" e fazendo resumos do desfecho daquele caso como se nada mais importasse. Documentários sobre esfola, métodos de tortura e histórico de livros encadernados com pele humana eram o assunto do momento. Era impossível ligar a televisão sem ouvir pelo menos uma vez a palavra esfola.

— E foi por isso que Mathieu dizia eles não vão parar. Ele não sabia se Vitória tava envolvida na merda ou não. O velho jurava que sim, mas Mathieu não tinha certeza. — Adriana fez uma pausa. — Era uma pista pra investigar a velha. Se eu chegasse aos livros de Vitória, pegaria Lafue.

— Mathieu. Qual era a dele, afinal?

— Era um... cúmplice forçado. O velho o obrigava a assistir as sessões de esfola desde criança. Ele trouxe o garoto da França com uns 10 anos. — Adriana deu de ombros. — Lafue queria que Mathieu seguisse seus passos, mas Mathieu não tinha muito estômago e acabou como... ajudante em tudo que não envolvesse o crime em si. No depoimento, ele afirmou que quando era adolescente tentou ajudar as moças a fugir, mas o velho sempre o pegava e a coisa ficava feia.

Adriana fez uma careta ao se lembrar de Mathieu, ainda na cama do hospital, contando tudo o que sabia. Vez ou outra ele se atrapalhava no idioma, mas o brilho em seus olhos valia o esforço. Adriana não tinha como saber se ele fora sincero, mas gostava de acreditar que sim. Em nenhum momento ele se eximiu da culpa, mesmo sendo tão vítima quanto todas as outras moças.

— Então Mathieu foi o responsável por deixar o corpo de Érica daquele jeito? — perguntou Luís, fazendo uma careta e ajeitando o braço machucado. — Como se quisesse ser encontrado?

— Exato. Ele ficou furioso com o velho porque amava Érica. — Adriana fez uma pausa. — Lafue o enganou. Disse que deixaria Mathieu livre pra ir embora e que não machucaria Érica, mas no mesmo dia fez Mathieu sair da cidade pra uma entrega. Tu pode imaginar o que Mathieu encontrou quando voltou.

— Puta que pariu.

— Pois é, então Mathieu se vingou deixando o corpo exposto, com as pétalas de rosa, o livro e a raposinha entalhada. — Adriana sorriu com o canto dos lábios. — O coveiro não viu um anjo da morte. Viu Mathieu, pulando o muro do cemitério e querendo ser visto.

— Pelo menos ele foi inteligente — concordou Luís. — Assim como no caso da invasão do quarto de Érica. Foi o velho quem mandou Mathieu fazer isso?

Adriana lembrou-se do assombro da camareira ao ver um homem encapuzado invadir o quarto, revirar os pertences de Érica e deixar o diário aberto justamente no nome de Pedro Camargo de Sá. E como o fato do invasor usar luvas de algodão, em plena primavera, não fechava.

— Foi. Ele quis deixar uma pista que levasse ao velho, mas a camareira chegou na hora. Mathieu teve de agir rápido e deixar o diário de qualquer jeito. Lafue não queria que Vitória se complicasse, afinal foi ela quem contratou Érica. — Adriana passou uma fotografia das luvas a Luís. — E quando fui até a livraria depois de checar os registros, encontrei as mesmas luvas escondidas no balcão. Tudo fechou.

Luís ficou em silêncio por um instante antes de sorrir com o canto dos lábios.

— Mathieu nos ajudou mais do que a gente imaginava. Aliás, e a Verônica? O velho chegou a abrir o bico?

Adriana riu, balançando a cabeça.

— Lafue não disse absolutamente uma palavra. Tratamento do silêncio.

— Clássica.

Desde que realizaram a prisão preventiva, Lafue não abriu a boca. Mantendo a pose, ele olhava para todos com o nariz erguido, com a arrogância que já era esperada. Quando falava, o livreiro se limitava a lembrar aos agentes que não falaria sem a presença de um advogado. E que, acima de tudo, provaria sua inocência.

— E sobre Verônica, Mathieu disse que ela ouviu Lafue discutindo com ele na salinha, reclamando que o cerco se fechava — disse Adriana, passando mais fotografias, desta vez dos fundos da livraria, a Luís. — Acontece que o velho tinha câmeras do lado de fora, o que explica ele ter me visto invadindo a livraria e Verônica ouvindo a conversa dele com Mathieu. Depois disso, foi fácil enquadrar a morte da Verônica no caso. O velho sabia que, contigo fora da cidade, ela tentaria se encontrar comigo, e ficou de tocaia na casa dela até anoitecer.

— E a arma do crime? Como essa porra foi parar na mão da Felipa?

— Ela andou fazendo um curta na cidade, e tu sabe que a guria não é um exemplo de... discrição. — Ela sorriu quando ele assentiu com uma revirada dos olhos. Adriana pegou outras duas fotos da mesa de Silveira e passou a primeira a Luís. — Essa é a arma de Felipa, as usadas no filme. E essa é a arma do crime.

As duas pistolas, a princípio, eram idênticas. Modelos antigos, calibre .38 que pareciam saídas de um filme de faroeste. Luís assentiu e esperou pela explicação. Ansiosa, Adriana entregou a resolução do mistério ao parceiro.

— Lafue sempre realizava as entregas à Vitória pessoalmente. E no dia em que Felipa foi detida, Vitória me contou que Lafue realizou uma entrega a ela pela manhã e...

— ...E o velho filho da puta substituiu as armas.

— Bingo. — Ela sorriu. — Felipa foi detida por denúncia. Mathieu contou que Lafue atirou em Verônica, esperou a poeira baixar e trocou as armas antes de ligar pra polícia. Ele tinha livre acesso à casa por causa de Vitória, e sabia que Felipa não perceberia as diferenças. Uma arma velha é uma arma velha. Ele só não contava que Felipa não estaria na cidade na hora da morte.

Graças a Gregório, todo mundo percebeu isso também, ela pensou, sorrindo ao se lembrar da alegria quase infantil do jornalista ao aparecer na delegacia para convidá-la para um jantar como forma de agradecimento pela possível matéria investigativa do ano. E da risada maior ainda que Gregório deixou escapar quando ela negou e mandou ele pastar.

— E Mathieu, combinou com o velho a conversa que Dante e eu tivemos com ele — seguiu Adriana. — Martin nunca seguiu Érica. Foi só uma forma que eles encontraram de despistar.

— E com a cena que Martin fez com Érica no restaurante, ninguém desconfiaria dos motivos do cara.

— Pois é. — Adriana entregou a ele uma folha. — No depoimento, Martin disse que gritou com Érica porque ela andou fazendo perguntas sobre ele e Teodora. Acho que nenhum dos dois queria essa história rolando.

Após um breve silêncio, Luís assoviou.

— Que caso, cara. — Ele relaxou na cadeira. — E o que acontece agora?

Adriana deu de ombros.

— Mathieu ainda tá no hospital e parece mais do que disposto a cooperar. Ele me contou que tem um dinheiro guardado, que vai arranjar um bom advogado e tentar voltar à França. Apesar de tudo, Mathieu não participou de todos os assassinatos, principalmente quando criança e adolescente. — Ela fez uma pausa. — Já Lafue, duvido que se livre dessa. Se o caso for a júri popular, duvido que ele pegue menos do que a pena máxima. Ele não tem apenas a morte de Érica e Verônica nas costas. Não duvido que a maioria dos nomes da lista de desaparecidos em Lisiantos estejam naquelas estantes do porão.

— Que doidera, cara — disse Luís. Com um sorriso orgulhoso, ele completou: — E outra vez, tu resolveu tudo sozinha.

Adriana revirou os olhos, se afastando da mesa. Luís se ergueu da cadeira para encará-la, seus cabelos escuros arrepiados de um lado. Ela cruzou os braços, erguendo as sobrancelhas.

— A gente resolveu junto. Eu, tu e o Dante. — Sem graça, Adriana disse: — E os policiais de Lisiantos. Somos um time.

Com o final do caso, Adriana recebeu uma cesta de chocolates dos colegas de Lisiantos, com um cartão espalhafatoso agradecendo o tempo que passaram juntos. O cartão continha as assinaturas de Miranda, Ricardo, Sérgio, Jorge e até do escrivão, Timóteo. A de Bernardino, Adriana não encontrou. Talvez ele estivesse muito ocupado pensando no processo que abriria contra ela por ter desobedecido suas ordens e resolvido o caso.

Luís riu, ajeitando o braço na tipoia. Outro silêncio meteu-se entre eles. Sem graça, ele disse:

— No mais tudo certo?

— Tudo. Meu braço tá começando a cicatrizar, e terminei com Otávio semana passada.

Luís ergueu as sobrancelhas, mas Adriana deu de ombros. O término com Otávio não foi tão insuportável quanto ela pensou que seria. Os dois concordaram que não funcionavam mais juntos, sem brigas, gritos ou cenas no restaurante. Terminaram o jantar, se despediram, e Adriana não foi tomada pela angústia pós-término. Na verdade, sentiu-se tão aliviada que chegou em casa e bebeu uma última taça de vinho antes de cair na cama.

Sem graça debaixo do olhar embaraçado de Luís, ela fez um gesto com a mão para indicar a falta de importância daquilo.

— Acontece. Foi... legal enquanto durou.

Ele assentiu, seus olhos castanhos presos aos dela.

— E agora? — perguntou Luís, depois de uma pausa. Quando Adriana franziu o cenho, ele riu. — Pronta pra voltar à noite porto-alegrense e caçar o próximo príncipe encantado?

— Voltar à noite porto-alegrense depois dos trinta? — Adriana riu. — Misericórdia, Luís. Eu seria a tiazona das festas.

— Tiazona ou não, ninguém resiste a esses teus olhos verdes, Adri. — O sorriso sumiu dos lábios dele. — Acredita em mim. Falo por experiência própria.

Adriana abriu a boca para responder, mas não conseguiu. O rubor subiu por seu pescoço, afogando suas palavras nas lembranças da noite em que passou com ele em Lisiantos. Tão sem graça quanto ela, Luís baixou a cabeça, esfregando o pescoço.

— Hm, acho que vou indo, então. — Ele pigarreou, o rosto adquirindo um tom rosado. — O Silveira não vai gostar de chegar e me ver aqui.

Ela não se moveu, assim como não deu uma resposta. Luís foi em direção à porta, entretanto Adriana segurou a maçaneta. Confuso, ele ergueu os olhos. Antes que perdesse a coragem, ela o beijou na bochecha. Luís piscou, abrindo a boca.

— Obrigada — disse ela. Quando ele franziu o cenho, Adriana completou: — Por ter... voltado. Eu teria morrido lá se tu não...

Ela se calou, desviando o rosto. Agradecer nunca foi seu ponto forte. Luís riu e, com a mão boa, apertou seu pulso. O calor da pele dele fez Adriana erguer os olhos.

— Eu sempre vou voltar por ti, Adri.

Se avaliaram por um instante, e ela pensou qual seria a reação dele se dissesse que também não era nada fácil resistir a seus olhos tão castanhos. Querendo mudar de assunto, Adriana engoliu em seco e sorriu, limpando a bochecha de Luís com o polegar.

— E eu te sujei todo de batom. Vê se pode. Tu já tá grandinho pra isso, né? — Ela riu para dissipar aquele clima. Luís, por outro lado, parecia confortável até demais. Ele sorria, os olhos fixos nos dela, que se concentrava naquela bendita marca de batom como se o mundo não existisse. — Amigos de novo?

Após um pequeno suspense, Luís riu.

— Amigos de novo.

— Que bom, porque tu me deve um pedaço de torta.

— Devo?

— É. Lá no porão do velho, lembra? Tu me prometeu.

— Tinha me esquecido dessa tua memória de elefante. — Ele riu. — Mas enfim, quando tu quiser a gente...

— Hoje à noite. Eu compro a torta e tu pede a pizza.

Luís ficou em silêncio. Adriana sentia o peso dos olhos dele passeando por seu rosto, parando ocasionalmente em seus lábios, na curva de seu pescoço. Então, ele deixou uma risada baixa escapar.

— Pizza e torta. Eu acabei de sair do hospital e tu já quer me mandar de volta?

— Bobagem. Tu já teve alta, Luís. — Adriana sabia que não deveria, mas sem soltar a maçaneta, aproximou-se dele o suficiente para sussurrar em seu ouvido: — Ouvi dizer que nem a dona Cândida pode controlar o que os pacientes comem quando eles têm alta. É pegar ou largar.

Eles sorriram. Luís deu de ombros, se rendendo.

— Pegar, com certeza.

— Te ligo assim que sair, ok? — disse ela. Ele assentiu, e nenhum dos dois se moveu. Adriana riu, dando um passo para o lado e abrindo a porta. — Tá, agora vai embora. Não quero criar problemas pra ti.

— Quando é que tu vai entender que tu é a solução, e nunca o problema? — Adriana corou. Luís baixou a cabeça, sem graça. — Tá, eu vou embora antes de soltar outra dessas cantadas medonhas. Os analgésicos me deixaram meio idiota, eu acho.

Trocaram um último sorriso antes de Luís deixar a sala. Adriana acompanhou de longe o parceiro deixar a delegacia — parando ocasionalmente para cumprimentar um colega — e se apoiou no batente da porta, cruzando os braços.

Quando ele sumiu, Adriana se virou para fechar a porta da sala de Silveira — e buscar Clóvis de sua soneca no banheiro —, mas algo capturou sua atenção na mesa do delegado. O sol da manhã incidia exatamente sobre a cópia de O Morro dos Ventos Uivantes encontrada junto ao corpo de Érica. Ela franziu o cenho. Aquilo não deveria estar ali.

Adriana fechou a porta e tomou o livro cuidadosamente entre as mãos. O único exemplar que não foi envelopado em pele humana foi justamente encontrado junto ao corpo. Ela quase sorriu diante da ironia. Os peritos não encontraram nada, e ela se lembrou de quando o livro era apenas... um livro. Um livro com o carimbo de uma livraria. A primeira pista. Mathieu realmente pensou em tudo pra foder com o velho.

A história toda era tão absurda que parecia trama de novela. Um velho livreiro francês que começa a assassinar e esfolar moças para encadernar livros com suas peles e presentear a mulher amada. Um calafrio percorreu o corpo de Adriana ao pensar nos olhos cinzentos de Lafue, no que suas mãos disfarçadamente trêmulas eram capazes de fazer. O machucado em seu braço comichou, e ela apertou o livro entre as mãos.

Ainda abalada, Vitória cedeu à polícia os livros que recebera de Lafue através dos anos. A maioria esmagadora, após uma breve análise pericial, confirmou as suspeitas. Pele humana e corantes, nada mais. Teodora acompanhou a mãe à delegacia para a coleta dos depoimentos, e apesar dos jornalistas enfiando microfones e gravadores em seu rosto para uma declaração, a diretora da Vinícola Albuquerque não se alterou em nenhum momento, como já era esperado. Diferentemente da mãe, que não escondia o assombro e a repulsa, Teodora era uma fortaleza. Todos esses anos e todas essas moças na minha estante, a velha senhora repetia, desolada. Foram necessárias toneladas de copos plásticos com água para que Vitória conseguisse se acalmar para depôr.

No outro dia, Adriana encontrou uma garrafa de vinho dos Albuquerque com seu porteiro, além de um cartão assinado por Teodora que não dizia nada além de Obrigada por compreender que nem todas as cicatrizes são fáceis de trazer a público. Como se fosse um segredo delas, Adriana guardou o cartão. Gostava de Teodora, e o vinho seria apreciado assim que possível. Hoje à noite, talvez. Eu e o Luís merecenos isso.

Na mesa, próximo ao porta-lápis bagunçado de Silveira, Adriana viu uma foto de Érica. O sorriso estático da jornalista encarou-a de volta, e seus olhos bondosos fizeram a investigadora sorrir. Agora acabou de vez, ela pensou segurando tanto a fotografia quanto o livro com um meio-sorriso cansado. Lafue não se livraria de uma pena máxima e Mathieu pagaria por sua contribuição ao esquema. Estava tudo acabado, enfim.

Mas o único problema daquele trabalho, problema do qual Adriana nunca se acostumaria, era sempre chegar tarde demais. Nunca prevenir, sempre remediar. Perdida na feição sorridente de Érica, ela demorou a ouvir a batida na porta. Adriana ergueu o rosto e viu a cabeça de Dante através do vão da porta. Com uma expressão quase culpada, ele perguntou:

— Adri, tu pode me ajudar um instante?

Ela devolveu o livro e a fotografia à mesa. Era hora de voltar ao trabalho.


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