31.
Adriana não sabia o que esperava quando empurrou a porta, mas definitivamente nada daquilo.
Ao invés de uma saleta abandonada com caixas, uma extensão daquele porão assustador ou uma saída, Adriana se viu, para seu completo e absoluto terror, no início de uma biblioteca escura e repleta de livros que ela já imaginava do que seriam feitos. O único raio de luz naquele lugar maldito vinha da luminária em cima de uma mesa de metal à esquerda, repleta de tesouras, bandagens ensanguentadas e livros.
A investigadora buscou a saída com os olhos, mas não teve sucesso. As estantes, numerosas naquele porão que só parecia crescer, formavam um labirinto macabro, escondendo qualquer possível saída de sua visão. Com pressa, Adriana pegou uma pequena lanterna de cima da mesa e, prendendo a respiração, embrenhou-se entre as estantes. Preciso sair daqui. Preciso sair daqui.
Foi quando, entre as estantes que cheiravam a mofo, couro e pó, Adriana ouviu a porta se fechar. Não estava mais sozinha na biblioteca macabra do velho livreiro. Sem pensar, ela desligou a lanterna e esperou. Uma luz vacilante varria as estantes, e Adriana não demorou a ouvir a risada assoprada do velho preencher cada canto de sua mente.
— Já está indo, investigadorra? Tão cedo?
Ela não respondeu, ciente de que qualquer som que emitisse denunciaria sua localização. O velho conhecia cada corredor daquela biblioteca sinistra, e possivelmente ainda empunhava a pistola que arrancara das mãos de Mathieu. Adriana engoliu em seco, ignorando a dor no braço esquerdo esfolado, e seguiu com passos lentos. A luz do que parecia ser um lampião lambiam as estantes e as paredes em volta, mas ela sabia que parar significaria a morte. Ou coisa pior.
— Sinto muito por ter perdido a cabeça com Mathieu — disse ele de lugar nenhum, sua voz se estendendo sobre a cabeça de Adriana como uma presença macabra. — Todos os jovens são tolos, mas o corretivo foi dado. A senhorra vai ir embora justo agora?
Lafue riu, e Adriana seguiu pelo corredor, inabalável. Arquejava de dor no braço esfolado, e a lanterna que trazia, agora inútil, escorregava de seus dedos suados. Continue. Continue. A palavra se repetia em sua cabeça, e ela seguia em frente. Se fosse rápida, poderia dar a volta em Lafue e fechá-lo naquela sala até que os reforços chegassem. Ela parou quando a luz amarelada dele quase denunciou sua posição.
— Vamos conversar, investigadorra. Confesso que não gostei da sua atitude de me esfaquear pelas costas, mas entendo sua ansiedade. — Ele fez uma pausa, e Adriana fez o mesmo, temerosa de que ele ouvisse seus passos ou sua respiração. Colada às estantes empoeiradas, esperou. Lafue riu. — Está prrestes a deixar este mundo para se tornar... fonte de conhecimento. Minha Marie vai adorrar ter a senhora na estante dela.
Ele recomeçou a busca, e Adriana seguiu em frente. Ainda precisava investigar o papel de Vitória Albuquerque, Marie, naquele esquema, mas primeiro precisava bater o Sr. Lafue nos próprios domínios.
A luz do lampião dardejou pelos livros, e entre o vão das estantes, ela viu o velho no corredor em frente, procurando por ela como um cão perdigueiro. Adriana parou, trincando a mandíbula e apertando a faca entre os dedos. Através do vão, percebeu que o ombro direito dele estava ensopado de sangue.
— Tudo o que fiz, investigadorra, foi por ela. Minha Marie sempre gostou de ser presenteada com livros. — A luz dançou entre os livros. Adriana respirou fundo, colando-se às estantes para não ser vista. — Ela pedia por livros, mas eu percebi que poderia dar muito mais, vê? Eu poderia dar... vidas a ela. As vidas que nunca... que nunca tivemos. Um dia Marie entenderrá que eu dei a ela muito mais do que livros. Um dia ela entenderrá que eu fui capaz de... matar por ela.
Com a boca seca, Adriana enfiou a lanterna desligada no bolso, e com a faca em punho, seguiu em frente. O lampião do velho, assim como sua voz, parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Virando um corredor, Adriana respirou fundo. Precisava dar a volta em Lafue, se afastar dele sem que o velho percebesse sua presença e sair dali. O velho empunhava a pistola carregada, e ela sabia que ele não teria misericórdia caso precisasse atirar. Com o suor escorrendo pelo rosto, ela seguiu entre as estantes.
— A esposa do Sr. Camargo de Sá, por exemplo — disse o velho, como se sussurrasse nos ouvidos dela. Adriana parou. — Aquilo foi tão... desnecessário. Ouvindo conversas atrás das portas, investigando. Uma pena ter acabado como acabou. Minha Marie adorraria ter recebido um presente com o... material da Sra. Camargo de Sá.
Foi ele também, Adriana pensou. O silêncio, embalado pelo temporal que não dava trégua, cresceu. Lafue era o culpado de tudo daquilo. Primeiro todas as moças da lista, depois Érica e Verônica. Todas aquelas mulheres morreram pelas mãos dele, por um capricho, um amor do passado que ele nunca superou. Engolindo em seco, Adriana se apoiou na estante. Sua cabeça rodava, e suas pernas ameaçaram derreter. Durante todo o tempo foi aquele velho maldito, brincando de Deus em seu porão imundo, usando as mulheres como um material.
— As mulheres fazem perguntas, são curiosas demais, investigadorra. A Sra. Camargo de Sá e Érrica se meteram onde não deviam! — A luz lambeu as estantes outra vez, forçando Adriana a parar para não ser vista. — Se tivessem cuidado dos próprios assuntos, nada disso estaria acon...
Mas ele foi interrompido por uma porta sendo bruscamente aberta. Assim como o velho, Adriana estaqueou. O silêncio pareceu durar milênios, até que o som da chuva trouxe uma voz até ela:
— Adri! Adri, onde tu tá?
O som da voz de Luís fez o peito de Adriana se comprimir. A felicidade inundou-a, mas como tudo o que é bom, durou pouco. A luz errante do lampião do Sr. Lafue a trouxe de volta, e ela não foi capaz de articular uma resposta. Com a faca em punho e renovada pela presença de Luís, Adriana correu, não mais se importando se seus passos faziam barulho contra o chão frio daquele porão-biblioteca macabro. Luís ainda gritava o nome dela, os passos ecoando em sua direção. Entretanto, quando Adriana virou o corredor para encontrá-lo, sentiu uma mão agarrar seus cabelos.
O velho abraçou-a por trás, pelo pescoço, jogando o lampião longe e enfiando o cano da pistola contra a têmpora de Adriana. Ela grunhiu e se debateu, mas o aperto de Lafue era firme, impenetrável. Ele a sufocava com o braço, e da posição de refém, Adriana viu Luís mirar contra a cabeça do velho.
— Ora, parece que o investigador chegou parra a festinha! — O velho riu, e Adriana sentiu o suor dele contra pele de seu pescoço. Luís não abaixou o braço ou desviou a atenção, o que fez Lafue fechar a cara. — Abaixe a arma, investigador. Não querremos um banho de sangue aqui.
Os olhos de Luís encontraram os de Adriana, que ainda resistia ao abraço do velho livreiro. Impaciente, Lafue apertou o braço ao redor de seu pescoço, sem abaixar a pistola. Luís permaneceu em posição de disparo. Um raio iluminou a biblioteca, e Adriana percebeu que o parceiro estava numa distância de sete passos. Um erro e está tudo acabado.
— Calma, amigão — disse Luís num tom conciliador. — Não complique ainda mais a sua situação atirando numa policial.
— Acha que sou idiota? Não vou atirrar numa policial. Infelizmente, nenhum de vocês sairá vivo daqui esta noite. — Lafue pressionou a arma contra a cabeça de Adriana, que ainda lutava para se livrar dele. — Largue a arma, investigador.
O parceiro hesitou, estudando as opções. Luís era um dos melhores atiradores que Adriana conhecia, e ela sabia que daquela distância ele seria incapaz de errar. Mas Adriana também sabia que ele nunca colocaria sua cabeça a prêmio. Os segundos se alongaram e Lafue rosnou.
— Estou ficando impaciente...
— Não larga a arma, Luís!
O velho puxou-a pelo pescoço e engatilhou a pistola.
— O que vai ser, investigador?
— Tudo bem, tudo bem! — Luís ergueu as mãos em sinal de rendição. Ele se abaixou e deixou a pistola no chão, chutando-a para frente. Com o rosto impenetrável, ordenou: — Cumpre a tua parte do acordo, Lafue.
— O senhor realmente não entendeu, não é? — O livreiro mirou em direção a Luís, que de mãos erguidas, não se moveu. — Ninguém sairá vivo daqui hoje. Isso, infelizmente, inclui o senhor.
E tudo aconteceu em menos de uma fração de segundo. Lafue atirou contra Luís uma, duas, três vezes. Os estampidos da arma quase ensurdeceram Adriana, que se aproveitou do momento de distração do velho para se jogar no chão empoeirado e rastejar para longe. Lafue cambaleou, pegou o lampião e grunhiu. Jogada no chão, ela não emitiu nenhum som.
— Eu vou pegá-la por bem ou por mal, putain! — ele exclamou. — Já matei seu parceiro. Uma vagabunda como você não serrá difícil de eliminar! Aparreça!
A luz amarelada tremeluziu dentro do cômodo macabro, até passos nervosos ecoarem através dos corredores. O velho, de repente tomado por um novo sentimento, saía da biblioteca. Numa voz maníaca, Lafue gritava aonde você se enfiou?! Surpreendentemente, Adriana ouviu a voz grave de Mathieu num francês irritado, ao longe. O velho seguiu aquele chamado, até o som da porta se fechando calar a voz do ajudante. Então, silêncio e chuva. Estava livre dele.
No chão, Adriana era tomada pela inércia. Seus olhos estavam secos, e todos seus músculos pulsavam de dor, clamando por um descanso que nunca parecia chegar. Luís. Preciso chegar a Luís. Se arrastando, ela o viu caído no chão, sua camisa azul ensopada de sangue. Não.
Foi impossível não pensar em Maurício, naquele apartamento sujo do centro e em suas últimas palavras. Adriana se arrastou, negando todos os pensamentos que levavam, invariavelmente, a um desfecho similar ao de três anos atrás. Se ela perdesse Luís, enlouqueceria. Pelo menos disso tinha certeza.
— Luís, fala comigo — pediu ela, se ajoelhando ao lado dele. Adriana afastou os cabelos de Luís para ver melhor seu rosto. Engoliu em seco quando viu onde o sangue se concentrava na camisa. Braço esquerdo e abdômen. — Pelo amor de Deus, não faz isso comigo. Fica comigo, Luís.
Os olhos dele se abriram lentamente, justo quando Adriana estava à beira das lágrimas. Ele gemeu de dor, e ela esperou, incerta.
— Adri...?
— Eu tô aqui. Fica comigo — ela pediu outra vez, exatamente como pedira a Maurício. — Não fecha os olhos.
Ele tentou se sentar, mas grunhiu com o esforço. Adriana ajudou-o. Com o rosto banhado em suor, Luís sorriu com o canto dos lábios.
— Precisa mais do que isso pra me matar. Foi tudo de raspão, mas bati... a cabeça. — Ela sorriu de volta. Luís tossiu, e Adriana percebeu um filete de sangue escorrer por sua testa. — Minha arma. O velho.
— Deixa ele pra lá. Tu precisa de ajuda.
Adriana puxou-o para mais perto, abraçando seus ombros largos. Luís tinha os lábios brancos, mas negou com um gesto de cabeça. Entregando a ela a pistola, ele disse:
— Termina... o que a gente começou.
— Eu não vou te deixar aqui sozinho, Luís — disse ela. — Nem pensar.
— A polícia... já sabe.
— O quê?
— Eu liguei. No caminho. Eles sabem, Adri. — Luís sorriu. — Dante sabe. Termina logo com isso.
Adriana apertou a pistola entre os dedos. Seus olhos captaram o sangue seco do braço esfolado e a ira cresceu dentro de seu peito. Aquele velho maldito merecia pagar. Ela ergueu os olhos pra Luís, que encostado numa das estantes, tinha no rosto maltratado uma careta.
— Tu vai ficar bem, Luís? De verdade?
— Vou. Quando isso terminar... a gente sai. Pra comer torta.
Ela sorriu para o parceiro e se ergueu do chão, engatilhando a arma. Cada corredor que virava, esperava ser surpreendida pelo lampião do velho, mas não foi o que aconteceu.
Quando Adriana chegou à porta, depois de zanzar pelas estantes empoeiradas repletas de livros encadernados com sabe-se lá o quê, ela respirou fundo. Empurrando a porta com a ponta dos dedos, Adriana voltou à sala de esfola. Tudo estava igual. O ruído do gramofone e o som dos pingos de chuva permaneciam como a trilha sonora macabra daquele lugar maldito.
Um gemido chamou a atenção de Adriana. Encolhido no chão, Mathieu tentava estancar o ferimento na lateral do corpo. Ela se ajoelhou e, por mais que ele fosse cúmplice do velho na história toda, Adriana não conseguia sentir por Mathieu o mesmo que ódio sentia pelo livreiro. Olhando para ele, encolhido e sozinho no chão sujo daquele porão, ela só sentia pena. Pena e asco.
Ele umedeceu os lábios com a ponta da língua e disse:
— Eu menti. Disse que a senhora... passar aqui. — Mathieu fez uma careta de dor. — Ele fugir. Medo... da polícia.
A ideia de Lafue deixar Mathieu, garoto que criara desde pequeno, por mais absurda que fosse, não assombrava Adriana. Esperar um pingo de humanidade do velho, sabendo de suas atrocidades, era o mesmo que acreditar em todo maluco do Centro de Porto Alegre que gritava que o mundo acabaria semana que vem. Com pressa, Adriana questionou:
— Pra onde ele foi?
— Pegar o carro... na colina — disse ele, a voz fraca. Adriana assentiu, e quando tentou se erguer para ir atrás de Lafue, o rapaz segurou seu braço. Com os lábios brancos, ele sussurrou: — Vitória... não tem culpa. O velho dizer pra mim que ela mandava. Mentira. Ele tem que... pagar.
— Ele vai pagar, Mathieu. Por tudo. — Adriana assentiu. — A polícia tá vindo. Vai ficar tudo bem.
Adriana já subia as escadas em direção à loja quando Mathieu chamou seu nome outra vez. Um segundo de silêncio se passou até ele dizer num semblante sério:
— Cuidado, investigadorra. Ele... ser uma raposa.
Ela engoliu em seco e assentiu. Sem tempo a perder, Adriana subiu os degraus que levavam à loja de dois em dois. Com a arma de Luís em punho, verificou que a loja continuava às escuras. Não havia nem sinal do velho no ambiente silencioso. Com um grunhido, Adriana saiu da loja apenas para atestar que Lisiantos dormia profundamente.
A colina. Preciso chegar na colina. O pedaço de terra no qual a antiga fotografia de um jovem Lafue e Vitória — Marie — fora tirada seria a rota de fuga para o velho agora, tantos anos depois. O único porém era que Adriana não fazia ideia de onde ficava o maldito lugar. Lisiantos ficava perdida entre os vales da serra, e qualquer colina poderia ser a colina. Pensa. Pensa.
O coração de Adriana palpitava. Parada em meio à rua deserta, com o temporal dificultando sua visão e fazendo arder seu braço machucado, ela observou. Perder aquele velho miserável estava fora de questão. Se por uma tragédia ele conseguisse fugir, Adriana sabia que ele se entocaria em algum buraco antes de deixar o país. E isso ela não podia permitir.
Adriana virou a cabeça, procurando. Lisiantos era a simpática cidadezinha envolvida por colinas e campos que nunca ficavam longe demais dos prédios. Entre os vãos das construções, era possível perceber elevações, depressões e pequenas planícies intocadas, as meninas-dos-olhos dos moradores orgulhosos. Mas qual delas? Adriana virou a cabeça no exato momento em que um trovão rasgou o céu, e um raio iluminou seus caminhos.
Não muito longe, uma forma escura escalava uma das colinas com dificuldade por conta da chuva. Ela não precisou ver o rosto dele para saber que aquelas mãos, pés e corpo que rastejavam e tentavam alcançar o topo pertenciam ao velho. Adriana correu na direção dele sem pensar duas vezes.
Suas mãos escorregaram pela terra e o braço machucado ardia, mas ela não desistiu enquanto não viu o topo daquela maldita colina que se abria num descampado. Lafue, não muito longe, lutava contra a chave de uma velha picape enferrujada. Suja, molhada e irritada, Adriana efetuou um disparo de aviso. O velho se virou, os olhos pegando fogo.
— Chega — disse Adriana, apontando a pistola para ele. — Fim da linha, Lafue.
Assustado, Lafue devolveu o favor e mirou na direção dela. Embalados pelo som da chuva, se encararam. A água escorria pelos cabelos brancos do velho livreiro.
— Nunca vai acabar, investigadorra. Acha que pode me impedir? — Ele riu. — Meto uma bala na sua cabeça, e ninguém nunca...
— A polícia tá vindo pra cá — gritou ela debaixo da chuva, a mira vacilando. Um raio iluminou o descampado que se abria entre eles. — Acabou. Abaixa a arma.
Lafue pareceu não ouvir. Nenhum dos abaixou a arma, permanecendo naquele duelo silencioso embalado apenas pelo temporal. Adriana sabia que tinha poucas alternativas. Se o velho decidisse fugir de carro, ela não teria como segui-lo. A pé, naquela chuva, não iria muito longe. Sua única opção, se a fuga de Lafue se mostrasse um perigo real, seria abrir fogo. E por mais que ela adorasse a ideia de brincar de tiro ao alvo com o velho, precisava dele inteiro para extrair pelo menos uma confissão.
— Eu não vou ir para a prrisão — sibilou Lafue. — Não sou culpado. Foi um ato de amor. De amor! Dei a ela todas as vidas que não pudemos ter, todas as histórrias de amor que não vivemos. Quem pode me culpar por amar?
O rosto dele se retorcia de ódio. Adriana engoliu em seco, a mira fixa na cabeça de Lafue.
— Tu é um doente.
— Doente?! Sabe o que é uma doença, investigadorra? A traição de Mathieu — retrucou o livreiro, brandindo a pistola. — Ele se enroscando com Érrica, tramando para me destruir. Para nos destruir! Eu criei Mathieu como um filho, e ele me apunhala pelas costas com a primeira putain de cabelos loiros que aparece! Mas o corretivo já foi aplicado. Não alimento mais traidores.
— Abaixa a arma — ordenou Adriana, ignorando a falação do velho. — Agora.
— Mathieu sempre foi... mole — continuou Lafue, uma careta de nojo no rosto. — Desmaiava quando via sangue, chorava e vomitava quando era adolescente. Estômago frraco. Peguei um menino e transformei num homem. Não imagina quantas vezes tive de fazê-lo entender, muitas vezes através da violência, como o mundo funcionava.
Adriana engoliu em seco. Seu braço machucado doía, mas ela não ousava abaixar a arma. Perdido em reminiscências, o velho continuou:
— Mas Mathieu crresceu, tornou-se um homem, e coagi-lo pela violência perdeu o sentido. Consegui mudá-lo, mas ele sempre tentava ajudar as moças a fugir. Me desafiava, se negava a fazer o que eu mandava, a se livrar... dos restos. — Lafue apertou os olhos para uma memória distante. — Sim, eu deverria ter visto os sinais.
— Tu torturou Mathieu tanto quanto torturou Érica e todas as outras — retrucou Adriana. A chuva escorria por seu nariz. — Ele é tão vítima quanto elas, e tu é um monstro. Vai apodrecer na cadeia.
— E quem vai acreditar na sua versão, investigadorra? Mathieu, apesar de tudo, foi meu cúmplice. Tem muito a perder se abrir a boca se ainda não tiver morrido. Seu parceirro... — O velho fez uma pausa e sorriu com o canto dos lábios. Mesmo com o temporal turvando sua visão, Adriana percebeu a malícia de seu rosto quando ele disse: — Bien, deixemos os mortos descansarrem.
Uma sombra de dúvida passou pela cabeça de Adriana. Encolhido naquela biblioteca suja, baleado e sozinho, Luís não parecia tão bem quanto seu sorriso insistia em pintar. Ele não vai morrer, ela pensou, ignorando o veneno de Lafue. Cansada, suja, molhada e machucada, Adriana queria o fim.
— Abaixa. A. Arma.
— Ou o quê? A senhora vai atirar? — Ele balançou a cabeça. — Tudo o que fiz, investigadorra, foi por amor. Ninguém pode me culpar por amar. Tantos anos, e é isso que recebo em troca. Descaso e traição!
O tom de voz de Lafue se alterou. Irritado, ele brandia a arma, e se não fosse a chuva que os assolava, Adriana poderia jurar que ele chorava, mas suas lágrimas não tinham sabor de tristeza. Lafue chorava de ódio. E Adriana se aproveitou disso para ganhar tempo.
— Que tipo de amor é esse que mata e tortura?
— O tipo de amor que se arrasta por anos, milênios! — exclamou ele. — Veja a literatura, investigadorra. Todas as provas de amor são feitas de sangue. Eu dei a ela as maiores histórias de amor da humanidade feitas de vida.
— E Érica foi uma prova de amor? Ou ela foi apenas um problema que precisava ser resolvido?
— Não diminua meu gesto! Não ouse destruir o trrabalho da minha vida!
Adriana engoliu em seco. Os segundos se arrastavam, e seu braço esfolado ardia contra os pingos grossos de chuva. Com a arma em posição de disparo, ela estava pronta para tudo. Menos para o que aconteceu em seguida. Ao longe, debaixo do temporal e da rajada de vento, Adriana ouviu sirenes. Lafue virou a cabeça na direção do som e grunhiu. Seus olhos injetados miraram a investigadora. Enlouquecido, ele gritou:
— Eu não vou ser preso.
Lafue ergueu a arma contra a própria têmpora. Adriana enrijeceu os ombros. Suas mãos escorregavam pela empunhadura da pistola.
— Abaixa a arma.
— É assim que as grandes histórias terminam, investigadorra. — Como um louco, ele sorriu. — A tragédia fica viva na mente do leitor, deixa cicatrizes. Que final grrandioso para minha obra-prima!
Se o velho morresse, seria o fim. Ela não poderia enviar um cadáver para julgamento, para o presídio. A polícia ainda não confiava em médiuns para ouvir relatos do além-túmulo, então Lafue precisava ficar vivo. Mas isso não a impedia de deixá-lo machucado, caso fosse necessário. Bastante machucado.
— Abaixa a arma, Lafue — disse ela. — Última chance.
— Tarde demais, investigadorra. E assim encerro o último ato.
Então, os disparos.
Desde que Adriana entrou para a polícia, sempre foi uma das melhores de mira. Ela e Luís geralmente competiam nos estandes de tiro-ao-alvo, e era ele quem sempre paganva o happy hour, a pizza e a cerveja dela. Adriana não errava. Sua mira era certeira, letal em todos os casos. 100% de aproveitamento. A pistola era uma extensão de seu braço, seus dedos conheciam o toque do gatilho como ninguém. Há três anos, antes do caso Valentina, ela poderia atirar de costas e ainda acertar a cabeça do alvo de papel.
Mas ela não era a mesma pessoa de três anos. Pagou tantas cervejas e pizzas a Luís depois do caso que perdeu as contas. Agora, nas raras vezes em que acertava o alvo, Adriana podia se vangloriar de acertar um braço ou um ombro quando se saía realmente bem. No estande, a memória de Maurício morrendo a atingia e ela perdia o alvo, não conseguia atirar. Pensava demais, e o momento se esvaía entre seus dedos.
A sorte foi que desta vez, Adriana não pensou. Ela apertou o gatilho sabendo o que queria, e a bala rasgou a distância entre ela e Lafue tão logo ele se calou. Uma vez. Duas vezes. Aconteceu rápido demais para processar, para evocar qualquer lembrança que a afastasse dos pontos chaves. Mão. Joelho. Sem pensar.
O tempo voltava ao normal, e Adriana reconhecia o som da chuva, das sirenes, do velho. Piscou quando viu o livreiro se contorcendo na grama molhada, segurando a mão direita e gritando de dor. Sangue vertia dos dedos e do joelho dele, e ela abaixou a arma e correu em sua direção.
Com um chute, Adriana afastou a pistola que ele tentava pegar. Lafue grunhia em francês, se arrastando para longe dela. Antes que fosse mais longe, ela chutou o estômago do velho quantas vezes conseguiu. Fora de si, Adriana chutava e chutava, ouvindo o som abafado como uma música de vitória. Ia desferir outro chute quando sentiu braços a envolverem, puxando-a para trás.
— Tô aqui, Adri. Acabou. Vai ficar tudo bem. Acabou.
Ela se agarrou em Dante, e só então percebeu que chorava. Adriana agarrou a camisa do amigo, enterrando o rosto em seu peito como uma criança. Dante apertou-a contra si, e ela fechou os olhos com força, querendo sumir no abraço dele.
Acabou. Vai ficar tudo bem. Acabou.
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[NA] → Queridos, esse foi último capítulo ~oficial~ da história! Volto na sexta-feira com o epílogo e a despedida de Sob a Pele de Érica! ♥
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