30.

A primeira coisa que Adriana ouviu quando recobrou a consciência foi o som de um temporal de proporções homéricas. O segundo som, que de certa forma complementava o primeiro, era o segundo Noturno de Chopin em Mi. A melodia era familiar, tão conhecida quanto o abraço de seu pai, ou a maneira como ele sorria quando estava ao piano.

Adriana sentava-se em seus joelhos e dedilhava o piano sem jeito, se familiarizando com o instrumento que regeu a maior parte da vida de seu pai. Depois que a mãe dela morreu, toda manhã seu pai, professor de piano, tocava o segundo Noturno de Chopin, e Adriana ouvia a melodia triste se alastrar pelos corredores do apartamento num silêncio respeitoso. Só o amor e a música são imortais, meu amor, ele dizia com um sorriso triste quando terminava de tocar. Quando a doença o levou, tão logo Adriana entrou para a faculdade, ela colocava aquele Noturno para tocar toda manhã, mantendo a tradição e sussurrando as mesmas palavras do pai quando a música terminava.

O cheiro que ela sentiu foi o de produtos químicos. Forte, ácido e hospitalar. Com a cabeça latejando pela pancada, a investigadora grunhiu e franziu o nariz. Quis se levantar, mas ficou no lugar, presa pelos punhos numa mesa de metal. Confusa, grunhiu outra vez. O mundo entrava lentamente em foco, um mundo escuro, de luz amarelada e baixa. A visão não a ajudava, então ela se guiou mais uma vez pelos sons e cheiros.

O terceiro som, tão sutil debaixo de Chopin, foi o de uma faca sendo afiada em pedra áspera. A lâmina ia e voltava, ia e voltava acompanhando o ritmo da música. Adriana piscou e engoliu em seco quando sua visão entrou em foco.

Não sabia que ambiente era aquele, mas acreditava ser um porão. A luz era parca, amarelada, e haviam ferramentas presas às paredes forradas com madeira grosseira, estantes desorganizadas e aquele cheiro de formol no ar.

Adriana virou o rosto para a esquerda e viu Mathieu num canto da saleta, de cabeça baixa e mãos cruzadas em frente ao corpo. Quis chamar por ele, mas nenhum som saiu de seus lábios. Ao lado dele, numa mesinha de metal enferrujada, ela viu a pistola que havia trazido. O que... houve? Virou o rosto para a direita. Na escuridão distinguiu o gramofone, culpado por tocar interminavelmente o Noturno de Chopin. O som das facas se afiando ficaram mais próximas, e Adriana ouviu uma risada calma, quase assoprada.

— Ah, finalmente a investigadorra acordou, Mathieu.

A voz aveludada do Sr. Lafue fez tudo entrar em foco. A mesa metálica, as presilhas de couro nos pulsos dela, o cheiro de formol, o som das lâminas sendo afiadas. É a resposta. Essa é a resposta. A boca de Adriana ficou seca. Ele se aproximou, segurando a faca recém-afiada com maestria. Estranhamente, suas mãos não tremiam. Com a garganta dolorida, ela disse:

— Foi... o senhor que a matou.

Ele riu novamente. Adriana se retraiu quando a mão quente e nodosa do Sr. Lafue descansou sobre seu antebraço. Com dois tapinhas carinhosos, ele a mirou com um sorriso contido, quase sublime.

— Matei? Não, minha criança. — O Sr. Lafue se aproximou do rosto dela, como um médico prestes a fazer uma operação, e sussurrou: — Eu dei a ela a dádiva da eternidade. Invés de morrer, transformar-se em livro. Um destino nobrre.

Adriana virou o rosto para Mathieu, que mantinha a mesma posição no canto, os olhos fixos no chão empoeirado e rústico daquele porão mal-acabado na loja. O Sr. Lafue, percebendo onde estava a atenção de Adriana, sorriu e se virou para uma bancada oculta nas sombras.

— Mathieu foi um exímio ajudante — disse ele, como um professor que elogia o melhor aluno da classe. Adriana captou o som metálico de lâminas. Mathieu, em seu canto, não ergueu o rosto. — Um pouco... descuidado desta última vez, investigadorra, mas nada que chegue a comprrometer nosso ofício. Talvez esse seja o mal da juventude. Deixar o corração nublar os julgamentos do dever.

Mathieu não ergueu a cabeça, mas Adriana percebeu suas mãos pálidas se tensionarem. Da mesa, ela tentou se erguer, mas as amarras nos punhos cortavam sua circulação. Ofegante, ela sentiu o suor brotar de suas costas. O Sr. Lafue ainda remexia nas próprias lâminas quando Adriana, pela primeira vez, sentiu medo.

Chopin, as lâminas, o cheiro de formol e sua posição deixavam claro que depois daquela noite ela não veria o dia de amanhã. Que ela nunca mais veria o dia de amanhã. Adriana quis chorar, mas sua garganta fechava em um misto de ódio, medo e vazio tão absoluto que o choro ficou contido, preso em algum recanto obscuro de sua alma.

— O senhor é louco — disse ela.

Érrica também disse o mesmo, investigadorra. — Ele riu, sem se virar para Adriana. — Mas não vejo do mesmo modo. É tudo uma questão de... de perspectiva.

Então, o zumbido de um celular. Mathieu ergueu a cabeça e o Sr. Lafue se voltou na direção do som. Adriana vislumbrou a própria bolsa ao lado do velho, que sorriu quando tomou seu celular nas mãos. Mesmo de longe, ela conseguiu ler o nome de Luís no identificador de chamadas. Porra, não.

— O Sr. Machado realmente não desiste da senhorra. — O Sr. Lafue sacudiu o celular em frente a ela. — Ligou tantas vezes enquanto a senhorra estava desacordada que tivemos de tirar o som para não sermos... interrompidos.

— Luís e a Polícia inteira sabem que estou aqui — blefou ela. — O reforço vai chegar e...

— Não misturre seus desejos com a realidade — o Sr. Lafue ralhou, seu semblante encarquilhado abandonando a alegria macabra. — Ninguém virrá, e sabemos o que irá acontecer.

Ele se aproximou e sorriu.

— Quem sabe eu possa vender a senhorra ao investigadorr quando tudo isso acabar? — perguntou ele. Adriana mirou no fundo de seus olhos cinzentos e a ausência de sentimento neles fez sua pele se arrepiar. — Ele não adorra livros? Imagine que sorte ter a senhorra descansando numa das estantes dele?

Ela grunhiu e se debateu na mesa, ao que o Sr. Lafue riu e se voltou para sua bancada. No silêncio embalado por Chopin e pela chuva, Adriana encarou o teto do porão por alguns segundos.

— Se é assim que termina — disse ela, quando reuniu a coragem —, me conte como aconteceu. Eu preciso saber.

O velho livreiro parou e deu um suspiro, apoiando-se na bancada. Um sorriso de canto adornou seus lábios quando ele balançou a cabeça.

— Ah, a senhorra quer ganhar tempo? Acha que seus amigos vão chegar? — Ele não esperava uma resposta. Com um ar risonho, o Sr. Lafue deu de ombros. — Faço isso há mais tempo do que a senhorra pode imaginar. Existe um mercado, uma demanda de colecionadorres.

— E Marie é uma colecionadora? — perguntou ela. Com o coração palpitando, continuou em tom de desafio: — Marie ou Vitória Albuquerque? Estou confusa.

A mãe de Teodora Albuquerque, a senhora elegante e de sorrisos fáceis — a mesma moça da fotografia de tantos anos atrás — estava por trás daquele esquema macabro com o velho livreiro. Além do som da chuva e do velho gramofone, Adriana ouvia o som da própria respiração pesada. Um século pareceu se passar antes do velho responder:

— Minha doce Marie. — O Sr. Lafue remexeu nas lâminas outra vez, seu tom de voz embalado em nostalgia. — Nos conhecemos na France. Tão linda, tão viva. Semprre gostou dos livros. Tudo o que fiz e ainda faço é para agrradá-la. Tudo ia bem com a coleção, até...

— Até Érica chegar e descobrir o esquema de vocês — retrucou Adriana. Ela puxou os punhos e os pés, mas as malditas amarras não se soltavam. Com outro grunhido derrotado, a investigadora trincou a mandíbula. — Vocês são dois doentes.

— Marie é só uma mulher tola que nasceu para ser... cortejada.

Mathieu piscou, abrindo a boca. Adriana o encarou.

— Ela não sabe, não é? — perguntou ela. Lafue não respondeu. — Ela não sabe que tu enche a biblioteca dela com gente morta. Érica descobriu e...

Érrica descobriu o sumiço das moças. Fiz o que tinha de ser feito. — O Sr. Lafue se virou com um semblante pesado. À meia luz, seu rosto tornou-se macabro. — E chega de conversa, investigadorra. Temos trrabalho a fazer.

Ele pegou a bengala de madeira trabalhada, a belíssima bengala que tinha esculpida na pega uma cabeça de águia e puxou seu topo, revelando o brilho de uma lâmina peculiar. A lâmina spey-point brilhou em suas mãos, e Adriana soube que era o fim. O Sr. Lafue sorriu, ergueu a manga da camisa que ela usava e segurando a cabeça da águia perto demais de sua pele, sussurrou:

— Será um... incomodô no início, mas nada que a senhorra já não tenha experienciado.

Ele olhou para a cicatriz no pulso dela e sorriu antes de cravar a ponta da lâmina no braço de Adriana. Uma rajada de dor inundou seus sentidos, e o grito escapou de seus lábios quando o velho livreiro puxou delicadamente, como quem arranca um adesivo, uma pequena fatia da pele. Ela suava, se debatia, tentava se livrar daquele tormento, mas o velho continuava com as incisões delicadas, porém precisas.

Mathieu segurou seu braço, interrompendo o procedimento. O velho ergueu o rosto para o ajudante, lívido.

— Ela é policial — disse Mathieu, numa voz que em nada lembrava o francês gutural e com dificuldades de pronúncia. — Podem procurrar. É diferente.

Adriana se aproveitou do momento de hesitação do velho e se debateu, o sangue escorrendo por seu braço. A lâmina escorregou das mãos dele, cortando seu dedo indicador. O Sr. Lafue soltou um grito, mais de fúria do que de dor, e empurrou Mathieu para longe. Apertando o ferimento com um pano encardido, mirou o ajudante.

— Fique de olho. Vou enfaixar isso aqui.

Ele sumiu por uma porta de ferro atrás da cabeça de Adriana, que suava pelo esforço. A visão de um pequeno retângulo vermelho em seu braço era nauseante, e a carne viva de seus músculos pulsava debaixo da pele, irrigando o sangue para a mesa fria. Mathieu respirou fundo. Com a testa salpicada de suor, Adriana disse:

— Tu me entendia o tempo todo. — Com os lábios brancos, ela deu um sorriso fraco. — Por isso tu mudava... quando a gente falava da Érica. Tu amava ela.

Mathieu não respondeu, desviando o rosto. A chuva assolava o lado de fora daquele porão, mas o Noturno não mais tocava. Adriana engoliu em seco.

— Por isso tu tentou ajudar. Porque tu amava ela. Queria parar com... isso.

Ele socou a mesa e trincou a mandíbula. Na luz amarelada, vendo o desenho quadrado de seu rosto pálido, suas olheiras profundas e as sobrancelhas espessas, Adriana entendeu por que Érica se apaixonou por ele. Mathieu tinha aquele aspecto de artista fin-de-siècle atormentado pela própria arte e pela falta de dinheiro que conquistaria qualquer mulher jovem e bonita.

— Ele descobrriu tudo. — Mathieu a encarou. Com o rosto mais atormentado ainda, sussurrou com uma raiva que assustou Adriana. — Você deverria ter acabado com isso. Para Érrica ficar... em paz. Os livros da velha. São feitos... de gente.

A investigadora piscou, se lembrando do último encontro com Vitória na biblioteca dos Albuquerque. Os livros que Érica consultava. Ela adorava nossas edições antigas. Adriana umedeceu os lábios secos.

— Tu pode me ajudar. Ajudar Érica. A morte dela e de nenhuma outra vai ser em vão se tu me ajudar. — Adriana fez uma pausa antes de adicionar numa voz cuidadosa: — Por favor, me tira daqui, Mathieu.

— Pra quê? Pra ir emborra? — retrucou ele, furioso. Com a expressão chorosa, Mathieu apertou a mesa de metal. — Por que não... descobrriu? Ele não vai parrar. Eu falei.

— Por que tu não me contou? — Adrian engoliu em seco. — Por que tu não me falou... sobre Vitória?

Mathieu balançou a cabeça como se sentisse dor.

— Ela não saber. Os livrros que Érrica olhava na casa dela... ela não saber. Quem ia desconfiar disso? — Ele fez uma pausa. — Mas ele sabe tudo. Tentei... ajudar as moças. Todas elas. Ele sempre... descobrrir.

Ela ficou em silêncio, respirando com força. Todos aqueles livros que Érica folheava na extensa biblioteca dos Albuquerque eram encadernados com pele humana. Romeu e Julieta, Don Juan, Orgulho e Preconceito. Todos eles encadernados com pele humana. Um calafrio tomou o corpo de Adriana.

Após uma pausa, Mathieu acrescentou com fúria:

Por que você não descobrir?

— Ainda dá tempo. Não deixa Érica e as outras... ficarem sem justiça. Me ajuda, por favor.

Ele considerou por um momento.

Os olhos de Mathieu eram similares aos do animal acuado, aos da criança que busca proteção no colo da mãe. Seu debate interno durou menos de um segundo, mas ele soltou as presilhas de couro dos pés e do pulso direito de Adriana. Mathieu estava prestes a soltar o pulso esquerdo, braço que começara a ser esfolado, quando o velho empurrou a porta.

Adriana ficou imóvel e o ajudante se afastou para o canto do porão, aturdido pela visão do Sr. Lafue.

Putain — resmungou o livreiro, voltando ao seu lado com o dedo indicador enfaixado. Com o rosto contorcido, o Sr. Lafue se apoiou na mesa e a encarou, seus olhos cinzentos infinitamente mais ameaçadores do que antes. — Vamos ver quanto tempo a senhorra consegue aguentar. Quem sabe eu possa encadernar o Código Penal com a pele da senhorra e enviar de prresente para minha Marie?

Ele devolveu-lhe um sorriso amarelo e pegou a faca outra vez. Adriana engoliu em seco, maldizendo o timing do velho. Se não fosse por seu pulso esquerdo, ainda preso à mesa de metal, ela poderia dar uma bordoada no rosto encarquilhado dele e fugir. Mathieu deixara a última presilha meio frouxa, o que facilitava a movimentação de Adriana numa tentativa de se soltar. Se ao menos ela conseguisse desviar a atenção do Sr. Lafue de si mesma, poderia ter uma chance de dar um murro na cara do velho — parte essencial de seu plano — e escapar.

O problema, justamente, era a parte da atenção. O Sr. Lafue fazia as incisões por seu braço como um profissional e Adriana se concentrava para não desmaiar de dor. O sangue coloria a mesa de metal, e a ardência dos cortes, tão precisos, fechavam a garganta da investigadora. Ela se perguntava como alguém era capaz de aguentar aquele tormento pelo corpo inteiro. A área esfolada em seu antebraço não chegava a míseros dez centímetros, mas Adriana cogitava desistir a cada pedacinho de pele que o velho lhe arrancava. Até que o suplício teve fim.

— Chega.

Ela e o Sr. Lafue se viraram na direção da voz de Mathieu. Os olhos de Adriana se arregalaram ao ver que o assistente empunhava sua pistola na direção do velho com uma expressão impenetrável. Os segundos ficaram suspensos, e ouvindo a chuva lá fora e o gramofone encher o porão com outro Noturno de Chopin, Adriana esperou. O Sr. Lafue endireitou o corpo, olhando para o assistente como se não o conhecesse.

— O que você está fazendo?

Ele tentou novamente em francês, mas Mathieu não respondeu, lançando olhar curto e atormentado à investigadora. Discretamente, ela mexeu o pulso esquerdo.

— Eles vão descobrrir. Ela é policial. É diferente.

— Você vai atirar em mim?

O Sr. Lafue deixou a pausa se alongar mais do que o necessário. Mathieu hesitou, a arma tremelicando em suas mãos. Adriana moveu-se um pouco mais para a direita, cada segundo mais perto de abrir a maldita presilha. Então, com um sorriso malicioso, o velho livreiro desatou a falar num francês rápido e sussurrado, como se amaldiçoasse Mathieu. Segurando a arma, Mathieu engoliu em seco, balançando a cabeça até gritar:

— Não foi assim que acontecer! Eu... — Um trovão interrompeu as palavras dele. Atormentado, o ajudante disse como quem sente uma dor intraduzível em palavras: — Eu... eu a amava.

— Amor! — Lafue cuspiu no chão, limpando a boca com as costas da mão. — O que você entende de amor? Acha que ela o amava? Érrica usou você, Mathieu. Nunca foi amor.

— Pare.

— Você sabe a verdade. — O velho sorriu, erguendo as mãos. Em silêncio, Adriana lutava contra o fecho da presilha de couro. — Érrica descobriu e se aproximou de você para poder nos investigar, e você, tolo, caiu. Esculpiu para ela aquela raposinha, abriu as portas de nossa casa para uma... para uma estrranha, Mathieu!

Mathieu balançou a cabeça, sua expressão semelhante à de quem sofre profundamente. O Sr. Lafue deu um passo à frente, erguendo as mãos em sinal de rendição. Com um sorriso dolorido, o velho livreiro disse:

— Ela nunca o amou, minha criança. Foi por isso que fizemos o que fizemos. Érrica... Érrica acabaria com tudo por uma matéria.

— Não ser por uma matéria! — Mathieu retrucou, balançando a arma na direção de Lafue. Da mesa, Adriana viu-o chorar. Atormentado, ele disse: — Você me fez... olhar. Me ameaçou com uma arma. Que tipo de monstrro faz isso?

Adriana gelou ao pensar na cena. Érica presa à mesma mesa na qual ela se encontrava agora, chorando, gritando por Mathieu, e Mathieu no mesmo canto escuro, de cabeça baixa frente o cano de uma arma, vendo a mulher que amava, que quase libertou, morrer pelas mãos do velho livreiro. Adriana mexeu o pulso. Faltava pouco para se soltar. A expressão do Sr. Lafue se endureceu.

— Eu quis lhe ensinar uma lição, criança. Nem sempre as coisas são aquilo que parrecem. — Ele sorriu e deu mais passo à frente. O livreiro abriu moderadamente os braços, como se esperasse um abraço, e disse com uma expressão branda: — Perdoo sua traição, Mathieu. Sei que deixou Érrica para trás, para que a encontrassem, porque estava... furioso. Sinto muito, minha criança.

Um segundo e mais outro. Mathieu franziu o cenho, confuso por aquelas palavras. Lafue sorriu e se aproximou.

— Foi sua maneira de me punir, mas eu o perdoo, Mathieu. — Ele fez uma pausa. — Algumas lições são mais difíceis do que outras, filho.

Mathieu não respondeu. Seus olhos negros brilharam no porão escuro. Então, como se acometido por uma realização dolorosa, ele disse:

— Eu a matei. Eu deixei que você a matasse. A culpa é minha.

Um trovão retumbou do lado de fora. Adriana engoliu em seco quando ele, com lágrimas nos olhos, encostou o cano da arma na têmpora direita. Não. O tempo parou. Naqueles intermináveis segundos de silêncio, a tensão se acumulava.

— Não faça isso — disse o Sr. Lafue. Mathieu vacilou. — Não vale a pena. Me dê a arma.

O velho estendeu a mão, mas o ajudante não se moveu. Com um sorriso, o Sr. Lafue incentivou o pupilo. Adriana grunhiu. A maldita presilha não se soltava. A investigadora recebeu um olhar vazio de Mathieu, quase como se seus olhos escuros e profundos sussurrassem um me perdoe estrangulado.

Lentamente, como se esperasse uma desgraça, um milagre, ou ambos, Mathieu enfiou a pistola na mão enrugada de Lafue. O livreiro pesou a arma nas mãos, ainda virado para o ajudante. Foi então que por cima do som do temporal, do gramofone e das respirações pesadas, Adriana ouviu um click que fez seu sangue gelar. Olhou para a presilha que prendia seu pulso esquerdo e se permitiu um sorriso. Estava livre. A última tentativa desesperada de se soltar parecia ter surtido efeito.

O sr. Lafue não percebeu, e ela esperou, deitada na mesa que segundos atrás seria sua última passagem pela vida, pelo próximo passo. Adriana precisava se aproximar do velho se quisesse pegá-lo. De costas para ela, ele perceberia qualquer movimento brusco vindo da mesa, e seu plano estaria fadado ao fracasso. Enquanto ela pensava, Lafue riu para a arma, perdido em considerações.

— Sabe, Mathieu, você semprre foi um... sonhador. — O velho se aproximou do ajudante, descansando uma das mãos em seu ombro. Mathieu se empertigou, e o livreiro balançou a cabeça. — Você sempre foi um sonhador, mas também foi muito imbécile.

Sem aviso, o velho puxou o gatilho, enchendo o porão com o estampido característico do disparo. Mathieu arregalou os olhos, arregaçando a boca num grito de cortar a noite. Lafue empurrou o ajudante, que caiu e se arrastou para longe enquanto tentava estancar o sangue que vertia de seu abdômen. O livreiro limpou a boca com as costas da mão, e brandindo a arma na direção do ajudante, gritou:

— Idiota! Isso é o que você merrece por quase destruir minha vida!

Adriana decidiu que esse era o momento. Enquanto Lafue gritava e agitava a arma para um Mathieu caído, ela se esticou, ainda deitada, e pegou a faca que o velho usara para abrir aquele pequeno retângulo em seu braço. Apertando o cabo, Adriana contou até três mentalmente antes de saltar nas costas do velho.

Ele cambaleou para frente e ela enfiou a faca ensanguentada nas costas dele uma, duas, três vezes antes de a reação vir. O velho empurrou-a para o lado com um grito de dor, e Adriana, com a lâmina pulsando entre os dedos, correu para a porta mais próxima. A porta pela qual o velho havia sumido para fazer o curativo.

Tremendo, com o braço esquerdo ardendo como o diabo e portando a lâmina ensanguentada como sua última salvação, Adriana engoliu em seco quando viu onde estava. Um zumbido preencheu seus ouvidos e, novamente, sua boca ficou seca de terror. Isso não pode ser real. Isso não pode ser real.

Mas ela não pretendia ficar ali para descobrir.

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