25.

Adriana levantou os olhos quando Dante lhe alcançou outro copo de café. Cansada, ela sorriu mesmo sem vontade, brincando com o copinho enquanto ouvia a voz grossa de Bernardino discursar sobre o último crime na sala de reuniões da DP. Ele gesticulava, erguendo o dedo indicador gorducho e tentando levantar o moral destruído do grupo de policiais que o encarava sem realmente prestar atenção.

A morte de Verônica completava, naquele dia, uma semana. Uma semana de jornalistas tentando invadir a delegacia, uma semana de comentaristas massacrando a polícia de todas as maneiras possíveis em todos os meios de comunicação possíveis e imagináveis. O caso do Esfolamento de Érica Baldini completava dois meses, e justo quando estava perdendo força nos telejornais sensacionalistas e blogs mal-acabados, a morte de Verônica reacendeu a chama na mídia. Que timing perfeito.

Quando Bernardino fez uma pausa para respirar, Dante pigarreou discretamente. Os policiais, ávidos para se livrarem da falação inútil do delegado, agarraram-se à interrupção feito um colete salva-vidas. Dante tamborilou os dedos em cima de uma pasta e assentiu para Bernardino.

— Obrigado pelas palavras, delegado. É realmente importante contar com seu... auxílio. — Dante sorriu sem graça para o delegado falastrão e espalhou algumas fotos do corpo de Verônica na mesa. Os policiais se inclinaram para enxergar melhor. — Aqui estão algumas fotos tiradas pela Perícia. Recebi os laudos ainda hoje.

— E quais os resultados? — perguntou Miranda, ignorando o olhar torto de Bernardino.

Sem fazer mistério, Dante deu de ombros e suspirou, entregando aos colegas as cópias dos laudos.

— Nada além do esperado. Morte decorrente de disparo de arma de fogo, sem sinais de agressão ou violência sexual. Foi, basicamente, uma execução. O assassino atirou na parte de trás da cabeça da vítima, que possivelmente não deve ter visto sua chegada.

— E o exame de balística? — perguntou Sérgio, virando a folha da própria cópia.

— Também sem grandes resultados. — Dante girou uma fotografia na direção deles. — Os peritos acreditam que o projétil seja de uma .38 e que tenha sido disparada de uma distância de até dois metros. Quem manejou isso sabia bem o que estava fazendo.

— E a hora da morte? — Jorge perguntou, apertando as mãozinhas gorduchas. — Eles conseguiram estimar isso?

— Conseguiram — Dante respondeu e olhou para Adriana, que assentiu. — Mas acredito que a investigadora Souza possa falar melhor sobre isso.

Vamos lá. Adriana pegou o celular na bolsa e procurou o printscreen que tirara da própria tela na noite do assassinato de Verônica. Mostrando aos outros policiais, disse:

— Recebi uma ligação da vítima às 23h10, marcando um encontro na praça, porque, aparentemente, ela conhecia a identidade do assassino de Érica. Saí no mesmo instante, a pé, e cheguei à praça por volta das 23h20. Ouvi um disparo e corri na direção do lago. Não saberia precisar a hora, mas acredito que o disparo tenha sido efetuado entre minha chegada e, no máximo, 23h30.

Ela olhou para Dante, que assentiu e disse:

— A Perícia acredita o mesmo, mas...

— Acho que é importante a investigadora explicar o motivo de não ter acionado a Central quando recebeu a ligação de uma testemunha importante como essa.

Adriana virou o rosto para Bernardino, que apoiava as mãos na ponta da mesa. Os ventiladores rugiram do lado de fora da sala, e Adriana trincou a mandíbula. Mais essa agora. Os outros policiais esperavam por uma resposta, lendo os laudos da perícia e observando o delegado com o canto dos olhos.

— Tive receio de que a testemunha mudasse de ideia, senhor — respondeu ela. — E caso tenha se esquecido, a delegacia de Lisiantos já estava às escuras por volta desse horário, assim como todo o resto da cidade.

— Não é o procedimento padrão a ser executado em casos de...

— Algumas vezes é necessário agir rápido, senhor — interrompeu Ricardo. O delegado fechou a cara. — Se a investigadora levasse mais tempo, possivelmente não teria ouvido o disparo.

— E talvez Verônica tivesse desistido de revelar o que sabia — concordou Dante. — O problema é a forma como foi feito. Pra um cara que prende uma mulher e a esfola viva sem nenhum tipo de anestésico, matar assim parece meio... destrambelhado. Como se não fizesse parte do plano.

— A morte da vítima foi queima de arquivo — disse Miranda. — Talvez ele tenha sido ameaçado por ela, e tratou da situação como conseguiu quando soube que Verônica se encontraria com a investigadora.

— Mas como ele sabia do encontro? — perguntou Sérgio.

— Talvez o cara estivesse seguindo a vítima — sugeriu Ricardo. Após um silêncio desconfortável, completou: — Ou talvez até... até seja alguém próximo a ela.

Adriana entendeu na mesma hora o que o policial queria dizer. Em casos de homicídio, geralmente o marido ou a esposa da vítima eram os principais suspeitos. Qualquer altercação era motivo para meter uma bala na cabeça do cônjuge, e Martin não ficaria livre dessa acusação até que tudo fosse esclarecido.

— Eu e Dante estamos saindo pra conversar com os Camargo de Sá — disse Adriana. — Se Verônica conhecia a identidade do assassino, é possível que Pedro e Martin possam nos dar alguma luz.

— E nós? — perguntou Jorge. — O que fazemos agora?

— Esse é o trabalho do delegado — respondeu Adriana, se levantando e pegando a bolsa. Recebendo um resmungo de Bernardino, ela deu um meio sorriso aos colegas. — Voltamos já. Vamos nessa, Dante?

---

Adriana apertou com força a alça da xícara e sorveu o café a contragosto. Na sala elegantemente mobiliada, Martin Camargo de Sá a encarava do sofá com uma expressão talhada em pedra. Usando um terno negro bem cortado, que combinava com suas olheiras profundas, ele tomou o café sem esboçar qualquer outra reação que não a abstenção de qualquer sentimento.

Por mais que o abominasse, Adriana não podia evitar sentir um pouco de pena do empresário. Sua esposa havia sido morta com um tiro na nuca, encontrada boiando no lago da praça, e somente depois de uma semana ele tivera permissão para enterrar seu corpo, que ficara retido no IML de Porto Alegre para a realização da autópsia. E para coroar a desgraça, Martin sabia que era o principal suspeito do assassinato da esposa. Porque de um jeito ou de outro, sempre é o marido.

Não querendo deixar o silêncio cortante se alongar, Dante tomou um gole de café e pigarreou, ajeitando-se no sofá.

— Muito obrigado por abrir um espaço na sua agenda, Sr. Camargo de Sá. — Os olhos castanhos de Martin se voltaram para Dante como se percebesse sua presença pela primeira vez. — Como mencionei pelo telefone, estamos aqui para conversar sobre...

— ...sobre o assassinato de minha esposa — interrompeu ele, trincando a mandíbula. — Faça suas perguntas, investigador. Não torne a conversa mais longa do que o necessário.

Dante assentiu. Ao lado do pai, Pedro olhava para o chão, girando a pequena xícara no pires. Adriana semicerrou os olhos para o rapaz, não observando nada além de uma tristeza introspectiva e de seus óculos escorregando pelo nariz aquilino. Estranhamente, a falta de Verônica deixava a casa mais silenciosa do que a investigadora se lembrava.

— Onde o senhor estava na noite do ocorrido, por volta das 23h? — perguntou Dante.

— Provavelmente em meu escritório. — Martin suspirou, como se a questão fosse óbvia demais para ser respondida. — Os senhores me fizeram a mesma pergunta no dia seguinte ao do crime, enquanto eu ainda estava tentando enterrar minha esposa. Não avançaram o suficiente na investigação para surgir com novos questionamentos?

Dante sorriu, mas Adriana sorveu um grande gole de café quente. Não responda, ela se aconselhou. Não caia no jogo dele.

— Estamos apenas conferindo suas respostas, senhor. — O policial sorriu, fazendo um gesto de cabeça educado. — Há alguém que possa comprovar seu álibi?

Martin ficou em silêncio, e Adriana secretamente torceu para que não houvesse uma só pessoa capaz de atestar o álibi do empresário. Não gostava de seus modos altivos, como se tivesse o poder de obrigar todos se ajoelharem a seus pés com um estalar de dedos.

— Eu estava de saída e o vi no escritório — disse Pedro, fazendo sua voz ser ouvida pela primeira vez no dia. — Me despedi e saí pra um... compromisso.

— Um compromisso? — perguntou Dante, erguendo as sobrancelhas. Adriana ajeitou-se no sofá, ignorando o olhar amedrontado de Pedro do outro lado da mesinha de centro. — Com quem tu estava?

Todas as atenções se voltaram para o rapaz. Para Adriana, era bastante claro o que e com quem Pedro estava na noite do crime. Os chupões de Felipa Albuquerque subiam pelo pescoço pálido do rapaz, que ainda insistia em cobri-los com uma camada de maquiagem vagabunda. De súbito, Adriana se lembrou das marcas que Luís deixara em seu pescoço após a noite que passaram juntos. Não pense nisso, a vozinha sussurrou na cabeça dela. Sem graça, Pedro pediu ajuda à investigadora com um olhar que ela não correspondeu.

— Estive com alguns... alguns amigos em Porto Alegre — disse ele, pigarreando. Martin olhou para o filho como se suas palavras não pudessem lhe interessar menos. — Fomos a uma festa e acabei dormindo por lá.

— Certamente alguém poderia comprovar seu álibi? — perguntou Dante.

O rosto comprido do rapaz perdeu a cor. O tremor de suas mãos foi quase imperceptível quando ele acenou positivamente a cabeça e sorriu sem vontade.

— Sim.

— Ótimo, então não há com o que se preocupar. — O policial sorriu de volta e tamborilou os dedos no braço do sofá elegante. Virando-se para Martin, inquiriu: — O senhor possui alguma arma de fogo na residência, ou porte de arma?

As sobrancelhas castanhas de Martin se uniram por um instante, claramente classificando a pergunta como uma daquelas que não se ouve todo dia. Pedro, ainda ruborizado pela mentira que fora obrigado a contar para encobrir seu encontro com Felipa, tomava uma xícara de café atrás da outra.

— Nem uma coisa nem outra, investigador — respondeu Martin. — Exceto pelo exemplar emoldurado em meu escritório, que pertenceu a meu tataravô, não há nenhuma arma de fogo na casa.

Dante assentiu, e Adriana ficou grata a ele por conduzir aquela conversa. Depois da cena que Martin fizera na DP por conta da prisão de Pedro, o empresário caíra no conceito da investigadora, que agora era incapaz de ver em Martin qualquer outra coisa que não o homem rico, arrogante e caprichoso.

— Sua esposa, Verônica, disse ao senhor que sairia?

Ele pensou por um instante.

— Sim. Verônica apareceu em meu escritório, me deu um beijo e disse que... — Martin se interrompeu, trincando a mandíbula. Dante esperou, e Adriana percebeu que o empresário girava a aliança de casamento no dedo, juntamente com o anel de Teodora. — Verônica me disse que precisava sair para ajudar a uma amiga.

O estômago de Adriana despencou como um elevador quando Martin a encarou. Eu sou a amiga, ela pensou com um calafrio. Se lembrava do tom de voz animado de Verônica ao telefone, de como havia pensado que não tinha tempo para suas brincadeiras de detetive. Com a boca seca e antes que Dante pudesse continuar, Adriana depositou a xícara vazia na elegante mesinha-de-centro e cruzou as mãos sobre os joelhos.

— Recebi uma ligação de sua esposa na noite do crime, afirmando que ela descobrira a identidade do assassino de Érica Baldini. O senhor tinha conhecimento disso?

O rosto de Martin se alterou. A expressão debochada e cansada do início dera lugar a um espanto que, a princípio, pareceu genuíno. Com o cenho vincado, o empresário abriu a boca diversas vezes, mas nenhum som saiu. Pedro, que parecia tão ignorante quanto o pai, virou-se para Adriana.

— O que a senhora quer dizer com isso?

— Exatamente o que vocês ouviram. Tua madrasta descobriu a identidade do assassino de Érica, e acreditamos que tenha sido morta exatamente por essa razão. Queima de arquivo. Ela comentou sobre isso com algum de vocês?

Os dois ficaram em silêncio, e Adriana percebeu uma gama diversa de emoções transitando entre pai e filho, exceto a que mais procurava: medo. Ambos pareciam tão chocados com a notícia quanto ela ficara ao receber o telefonema de Verônica naquela noite.

— De maneira nenhuma, investigadora — respondeu Martin, seu tom de voz assustadoramente sincero e inocente. A casa ficou silenciosa outra vez. — Verônica não me disse nada. Eu não...

Ele se calou, confuso demais para continuar. Pedro, tão atônito quanto o pai, desistiu de se entupir de café para ouvir com atenção. Adriana pigarreou e ergueu as sobrancelhas, pega de surpresa pela mudança na postura de Martin.

— Sua esposa foi morta porque o assassino não queria que a informação que ela obtinha chegasse à polícia. Verônica estava diferente de alguma maneira? Disse ou fez algo antes de sair que não parecia... comum?

— Creio que não. Verônica estava... estava como sempre. Um pouco animada, mas nada além do habitual...

— Tente se lembrar — insistiu Adriana, inclinando o corpo para frente. Os olhos dela encontraram os castanhos de Martin por um segundo. — O que ela disse exatamente antes de sair?

— Ela entrou no escritório, me beijou no rosto e disse que sairia para ajudar a uma amiga. Disse que voltaria logo, e que na verdade... — Martin se interrompeu outra vez e piscou. Suas costas ficaram eretas e Adriana sentiu o click de memória atingir o empresário do outro lado da mesinha de centro. — E ela disse... disse que a ajudaria a descobrir a verdade. Que farsa iria terminar e a que cidade inteira ficaria sabendo.

Adriana ficou em silêncio. Ela sabia a identidade do cara. Martin piscou, tentando unificar, dar forma àquelas palavras. Pedro franziu o cenho. Dante inclinou-se no sofá, seus olhos treinados presos aos do empresário.

A cidade inteira ficaria sabendo? — repetiu Dante. — O senhor faz ideia do significado disso?

— Não. Verônica sempre foi muito... falante. — Ele deu um sorriso triste. — Às vezes era difícil acompanhar sua linha de raciocínio.

A farsa iria terminar. A frase ecoou pelo cérebro de Adriana, um arrepio cruzando seu corpo. Como Verônica descobrira a identidade do assassino que a polícia tentava há dois meses capturar?

Os quatro ficaram em silêncio, cada qual perdido nos próprios pensamentos. Ou Martin realmente não sabe, ou é um ótimo ator, a investigadora pensou quando o interrogatório de Mathieu voltou a sua memória. Se Martin seguira Érica, o que o impediria de puxar o gatilho contra a própria esposa?

— Analisaremos com cuidado sua declaração. — Adriana sorriu sem vontade e recebeu um olhar gelado de Martin como resposta. — Agora sobre o assassinato de Érica. O senhor nega ter seguido a vítima no dia do crime?

— Perdão...? — Martin devolveu num tom que exigia explicação. — Não creio que entendi o que...

— O senhor foi visto seguindo Érica Baldini no dia do crime — respondeu Adriana, a impaciência temperando sua voz. Ela ergueu as sobrancelhas. — Nega?

— Nunca ouvi tamanho absurdo em toda minha vida. Quem afirmou tal idiotice?

— Informação confidencial. Tem um álibi, senhor?

Ele mirou-a com fúria, mas um sorrisinho cresceu em seus lábios. Martin Camargo de Sá umedeceu os lábios e inclinou a cabeça para um lado, seus olhos castanhos encarando Adriana como se pudesse fazê-la sumir naquele instante.

— Do que estou sendo acusado, investigadores?

— Pai, deixa eles...

Martin ergueu uma das mãos, calando o filho.

— Do que exatamente estou sendo acusado?

— Se o senhor possuir um álibi, de nada — respondeu Adriana.

— Não basta me acusarem de assassinar minha esposa, acreditam que também matei Érica? — Martin encarou Adriana e sorriu com o canto dos lábios. Ele inclinou-se para frente, e quando deixou a xícara em cima da mesinha, o anel que trazia um detalhe em pedra verde brilhou por um instante. — Parece que estou dando trabalho à polícia ultimamente, não?

— Isso é uma confissão?

Adriana tremia. Queria pegá-lo em contradição, deixá-lo sem saída, entretanto Martin era uma raposa velha. Cada palavra que saía de sua boca era calculada, pensada. O semblante dele se fechou antes de dizer:

— Não matei Érica, e muito menos minha esposa. — Martin se levantou. Dante e Adriana fizeram o mesmo, Pedro sendo o único a permanecer sentado e de fora do clima pesado que se instalara na elegante sala-de-estar da casa. — E acredito que a partir de agora seja melhor os senhores tratarem direto com meus advogados.

Adriana trincou a mandíbula e saiu, deixando os agradecimentos para Dante.

---

— Pelo menos a gente tem uma pista.

Adriana suspirou e saiu do carro com uma carranca de desgosto. Dante e ela haviam debatido sobre as declarações — e a postura altiva de Martin — tão logo deixaram a casa dos Camargo de Sá, concordando que certos pontos precisavam ser esclarecidos. Do lado de fora, Adriana comprimiu os lábios. Apoiado no volante e olhando para ela, Dante riu.

— Relaxa. Vou voltar à DP e reportar as descobertas ao delegado. Sem chance de eu conseguir te convencer a voltar comigo, né?

Ela apoiou as mãos na janela do carro e fez uma careta.

— Se eu tiver de lidar com Bernardino, juro por Deus que vou vomitar todo o café caro que tomamos.

Dante riu, seus cabelos cor de areia parecendo um ninho de passarinhos que o ar-condicionado deixava ainda mais revolto. O cheiro de bala de iogurte — as preferidas dele — saía pela janela e deixava Adriana quase tonta. Dante deu de ombros e sorriu.

— É justo — afirmou ele. — Te cuida, Adri.

Ela sorriu e Dante acelerou, se afastando em direção à delegacia. Parada na calçada, sozinha novamente, Adriana apertou a alça da bolsa nos ombros. Senhoras risonhas, repletas de sacolas coloridas, iam e vinham pelas calçadas, entrando e saindo de lojinhas de chocolates e floriculturas. Quando ergueu os olhos e finalmente percebeu onde estava, Adriana se viu em frente à confeitaria que ela e Luís pararam para comer torta.

Adriana nunca entendeu como, de todas as tortas do mundo, Luís elegeu a de nozes como sua preferida. Era lei, em todas as confeitarias que iam, Luís pedir um pedaço da torta de nozes, como se o sabor recomendasse ou não um lugar. Ali em Lisiantos não foi diferente. Ela se recordava dele sentado na mesa, se deliciando com aquilo que ele afirmava ser a melhor torta de nozes que já tive o prazer provar! da última vez em que estiveram ali. Como sempre, Adriana apenas rira da felicidade infantil dele.

E agora, olhando para a fachada da confeitaria, ela não podia evitar a saudade que sentia dele. De como Luís sempre tinha aquela palavra de confiança quando tudo o que Adriana queria era desistir do caso. De como ele a fazia rir, daquela mania irritante de tratar o carro como um filho e de como ele invadia o quarto de hotel dela para ver desenhos na televisão. Ela sentia falta da presença de Luís, de dividir as informações do caso, de estar junto, e como Adriana também não era de ferro, sentia falta do cheiro, do toque dele. Principalmente porque não consigo parar de pensar naquela maldita noite...

Mesmo sabendo o que encontraria, pegou o celular da bolsa. Algumas mensagens e ligações de Otávio e Gregório, mas nenhuma de Luís. Adriana achou engraçado o — ex? — namorado reaparecer justamente quando não desejava mais notícias dele. A pessoa pela qual ela mais ansiava por notícias não dava sinal de vida. Adriana apertou o celular e enfiou-o de volta à bolsa com uma careta.

Desistindo de entrar na maldita confeitaria, a investigadora pensou no que fazer em seguida. Precisava de um lugar calmo, onde pudesse tomar um café, pensar nas declarações de Martin e não se lembrar de Luís. Enquanto olhava em volta, por cima das cabecinhas grisalhas das senhoras alegres, avistou uma figura que se distanciava daquele cenário de turistas. Apertou os olhos e reconheceu o homem alto, de cabelos negros e perpétua expressão melancólica em menos de um segundo. Sem pensar duas vezes, foi atrás dele. Uma oportunidade como aquela não acontecia duas vezes.

Quando Adriana alcançou Mathieu, sentia o ar faltar. Enquanto recuperava o fôlego, ela percebeu um cigarro entre os dedos dele deixava sua perpétua atitude de tristeza e desinteresse ainda mais francesa.

— Tudo bem, Mathieu? Podemos conversar um pouco?

Ele franziu as sobrancelhas negras, e só então Adriana se lembrou que ele não falava português. Que ótimo, ela pensou. Antes que o silêncio ficasse estranho demais, Mathieu pegou o próprio celular e estendeu-o à Adriana. Um aplicativo de traduções a encarou de volta, e ela rapidamente digitou o que dissera, virando a tela para o ajudante do Sr. Lafue, que leu a mensagem traduzida e assentiu.

O homem que seguiu Érica. Tu tinha certeza de que era Martin?

Mathieu leu a nova mensagem e tragou o cigarro com força, assentindo. Entediado, seus olhos fitaram Adriana como se perguntassem era isso? Sem se abalar, Adriana voltou a digitar no tradutor.

Se tu tem certeza, as coisas podem se complicar para ele. Principalmente depois do assassinato de Verônica.

Mathieu tragou novamente e deu de ombros. Contendo a raiva, Adriana digitou outra vez.

O que tu esconde?

Ele sorriu com o canto dos lábios, tragou uma última vez e atirou o resto do cigarro fora, estendendo a mão para o próprio celular. Seus dedos longos digitaram uma resposta rápida:

Nada.

É assim que tu quer brincar, Mathieu? Adriana trincou a mandíbula e escreveu novamente, quase enfiando o celular no rosto quadrado e pálido do ajudante. Não acredito em ti.

Ele deu de ombros e sorriu como se dissesse não há nada que eu possa fazer. Adriana apertou o celular entre os dedos e mirou-o nos olhos, aqueles olhos negros, profundos como um poço esquecido, e disse:

— Tu sabe de alguma coisa, Mathieu. Eu sei que sabe. Se tu não me ajudar, nada disso vai valer a pena. Érica vai ter morrido pra um maluco filho da puta que vai continuar solto.

Mathieu a encarou outra vez, mas a investigadora não viu confusão em seu rosto ou em seus gestos. Por trás dos olhos negros, Adriana viu tristeza e uma dor impossível de ser formulada em palavras. Ele estendeu a mão de dedos longos — que estranhamente lembravam mãos de pianista — e pediu o celular de volta. A contragosto e sabendo que nada mais arrancaria dele, Adriana devolveu o aparelho e trincou a mandíbula antes de dizer:

— Obrigada pela tua colaboração, Mathieu.

Adriana mal dera três passos quando sentiu os dedos dele envolverem seu braço. Irritada, virou-se e o encarou com o nariz erguido. Para sua surpresa, Mathieu umedeceu os lábios e, olhando para os lados como se temesse ser descoberto, sussurrou:

Érrica descobrrir o motivo dos... desaparrecimentos — disse ele com dificuldade, sem soltar o braço da investigadora. A falta de hábito com o idioma era clara, e deixava sua voz mais grave do que o usual. Adriana mirou-o como que enfeitiçada pelas palavras. Mathieu engoliu em seco. — Érrica saber que as moças sumir.

— Ela te disse isso?

Mathieu respondeu com um aceno de cabeça. A curta distância entre eles potencializava o cheiro dele de livros envelhecidos, cigarro e sabonete barato. Adriana pensava, longe, no significado das palavras de Mathieu. Ele sacudiu-a para chamar sua atenção e, novamente, umedeceu os lábios rachados.

— O registrro. Olhe o registrro, porrque ela olhar e saber de onde vir. Tentei ajudar, mas foi... tarde.

— Quem foi, Mathieu? — perguntou Adriana, a boca seca. — Quem matou Érica? Quem matou Verônica? Quem tá fazendo isso?

— Ser o registrro. Tudo igual, de novo e de novo. — Ele olhou-a uma última vez e engoliu em seco, apertando o braço dela. — Prrometa que vai olhar os registrros e os livrros de Érrica.

— Eu prometo, mas quem...?

— Você saber. Conhecer eles. — Mathieu a soltou, seus olhos injetados. — Prreciso ir.

Eles. O estômago de Adriana se retorceu quando ele fez menção de ir embora. Sem pensar, a investigadora segurou seu pulso. O ajudante de livreiro virou-se, sua expressão atormentada.

— Mathieu, me diz quem tá fazendo isso — pediu ela. — O Sr. Lafue sabe?

Non. Ele non saber — respondeu ele, nervoso. — Eu saber, mas não poder dizer. Descubrra. Eles não vão parrar.

Mathieu desvencilhou-se do aperto de Adriana e, com a expressão de quem pede mil perdões, afastou-se pela rua. Entorpecida pelas palavras de Mathieu, a investigadora não conseguiu se mover. Eles. Mais de um. O assassino era mais de um homem ou uma mulher. No que Érica e Verônica se meteram?

Adriana quis gritar por Mathieu outra vez, mas sentiu o celular vibrar dentro da bolsa. Quando tomou o aparelho nas mãos, viu dez chamadas perdidas de Dante.

Ainda com as pernas bambas, ela tomou o rumo da delegacia de Lisiantos.



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