19.

Felipa foi muito mais fácil de abordar do que Pedro. Os investigadores não precisaram nem se esforçar para cercar a filha de Teodora, que entre uma palavra digitada e outra percebeu a aproximação deles. Como era de se esperar, Felipa sorriu com o canto dos lábios, lambendo o pirulito de maneira provocativa e com o olhar esverdeado pousado em Luís.

— Aí vem o FBI — brincou ela, quando os dois se aproximaram. — O que mandam, tiras?

A regata e os shorts rasgados, aliados à meia arrastão e aos cabelos cor-de-rosa, faziam de Felipa uma personagem esquisita naquela praça repleta de crianças, senhoras rechonchudas e patinhos numa lagoa simpática. Adriana sorriu quando a moça lambeu o pirulito outra vez, seus olhos mirando os dois com uma malícia brincalhona cativante.

— Viemos conversar — disse Luís num tom firme, quase como se estivesse falando com Bárbara sobre algum assunto sério. — Poderia nos dar alguns minutos?

Felipa pensou, deixando os momentos se alongarem enquanto girava o canudo do pirulito entre o polegar e o dedo indicador. Quando seu sorriso de duende cresceu para cima de Luís, Adriana soube que a bomba estava pronta para ser lançada.

— Conversar? — ironizou Felipa, fazendo Luís franzir as sobrancelhas castanhas. Ela sorriu, mordendo o lábio inferior. — Pra quando vai ficar aquela nossa revista profunda, investigador?

Debaixo da barba por fazer, as bochechas de Luís esquentaram, mas desta vez ele estava preparado. Adriana observou o olhar de desafio de Felipa, que esperava por uma resposta como uma criança espera pelo Papai Noel no Natal. Seu parceiro enrijeceu os ombros e disse:

— Eu sirvo pra ser o teu pai, guria.

Se ele pensava que aquilo intimidaria a moça, se enganou. Se enganou profundamente. Felipa chupou o pirulito e riu, ficando a uma distância curta de Luís. Ele franziu o cenho, encarando a jovem de cima. Estralando os lábios, Felipa disparou:

— E isso não deixa tudo mais gostoso, investigador?

Luís ficou mortificado. Incapaz de pronunciar qualquer palavra ou sequer olhar para Adriana, ele resmungou e se calou, ignorando a risada faceira de Felipa.

Vendo-a assim, alegre por ter deixado alguém sem graça, Adriana entendia os motivos de Vitória para considerá-la sua neta favorita. Felipa não tinha limite algum, e apesar da língua afiada da jovem deixar Luís sem graça, Adriana tinha de admitir que, por si só, ela era um espetáculo à parte.

Antes que seu parceiro pudesse enfiar a cabeça no lago para se ver livre da língua ferina de Felipa, Adriana pigarreou. Os cabelos da filha de Teodora, cor-de-rosa como algodão doce, sacudiram quando ela virou a cabeça.

— Viemos conversar, Felipa — disse a investigadora. — Teria um minuto?

— Esse é o problema de vocês. Muita conversa e pouca ação. — Ela revirou os olhos, enfiando o pirulito na boca. — Todo mundo aqui sabe quem esfolou a jornalista feito um coelho.

— Sabe?

— É óbvio que sim. Foi a minha mãe.

— Como tu pode ter tanta certeza?

— Porque é isso o que ela faz. — Felipa deu de ombros. — Aposto cinquenta paus que a jornalista descobriu algum podre da família e a minha mãe arrancou o couro dela.

Adriana se lembrou da fotografia das duas abraçadas no gramado, sorrindo para a câmera. O que foi que aconteceu? Felipa chupou outra vez o pirulito, ignorando o olhar enojado de Luís. Depois de ouvir o lado de Teodora — que a jovem certamente não fazia ideia —, Adriana sentiu vontade de dar uns tapas em Felipa, mas desistiu enquanto a encarava. A vida vai se encarregar disso por mim.

— É só isso que vocês queriam saber? — a jovem perguntou num tom entediado.

— Não — interrompeu Luís. — Aonde tu tava na sexta-feira do crime, às 19h?

Ela riu para Luís.

— O senhor parece interessado demais em mim... — disse ela. Ele trincou a mandíbula, fazendo-a chupar o pirulito de maneira provocativa outra vez. Dando de ombros e voltando à atitude entediada, Felipa respondeu: — Tava por aí.

— Por aí onde? Com quem?

— O senhor não me parecia o tipo ciumento. Que decepção.

Luís trincou a mandíbula. Felipa sorriu outra vez, girando o pirulito na boca como uma criança malcriada. Os dois se avaliaram, e Adriana percebeu uma veia saltar na têmpora de Luís. Apontando o pirulito para ele, Felipa disse:

— Tava com um amigo. — Ela sorriu maliciosamente. — Quer saber os detalhes?

— Pelo amor de Deus! — exclamou ele. — Tu não consegue levar nada a sério, guria?

— Acho que não. — Felipa riu e encarou Luís. — Quem sabe o senhor não consiga meter algum senso de responsabilidade na minha cabeça? Aproveite que eu não resisto a homens de barba.

As narinas dele se inflaram, e Adriana tocou seu braço antes que pudesse fazer uma besteira. Felipa riu outra vez, erguendo a cabeça. Ela percebeu uma mancha no pescoço da jovem. Um chupão exatamente como no pescoço de... Adriana franziu o cenho quando o pensamento a atingiu como um soco. Depois daquela manhã intensa com Teodora ela achou que nada a mais a surpreenderia. Olhando para o pescoço pálido da jovem e a marca avermelhada logo abaixo da orelha, a investigadora descobriu que estava errada. Como não percebi isso antes?

Adriana apertou discretamente o braço de Luís e, com os olhos pregados em Felipa, pediu:

— Esqueci meu celular no carro. Pode pegar para mim?

— Mas tu nem veio... — Luís olhou para Adriana como se ela estivesse louca.

— É importante. — O olhar dela foi o suficiente para que ele se calasse. — Acho que deixei no painel do carro. Pode dar uma olhada?

Sem entender, Luís assentiu lentamente. Seus olhos castanhos perguntaram o que tu pretende?, mas Adriana sorriu. Confie em mim. Com um olhar azedo para Felipa, ele se virou na direção oposta, caminhando para fora do parque com as mãos nos bolsos. A jovem lambeu outra vez o pirulito e riu.

— Agora posso dizer com certeza que o investigador é gostoso tanto de frente quanto de costas. Com todo o respeito, é claro. — Felipa sorriu como um duende, deixando claro o que implicava. Decidida a não entrar em seu jogo, Adriana observou-a atentamente. — O que tu manda?

— Tu tem namorado, Felipa?

Uma sombra escureceu os olhos da jovem. Seu sorriso sumiu durante dois segundos antes de voltar mais provocativo do que nunca. Ela puxou o pirulito da boca com um estalido, encarando Adriana com uma malícia que teria feito Luís se atirar no lago.

— Por quê? A investigadora tá interessada em preencher a vaga?

Adriana sorriu com o canto dos lábios. O olhar de desafio da jovem pairou sobre ela, que decidiu que a única maneira de arrancar algo de Felipa seria à base de honestidade brutal.

— Por enquanto não. — Adriana sorriu. — Há quanto tempo tu se encontra com Pedro?

O sorriso faceiro de Felipa desapareceu na hora. Seus olhos esverdeados pegaram fogo, e Adriana percebeu que havia tocado na ferida dela. O silêncio entre as duas só era quebrado pelo risinho das crianças, que alimentavam os patinhos do lago com pedaços de pão.

— Com quem? — perguntou ela, voltando à atitude blasé habitual. — Não sei do que tu tá falando.

— Sabe sim, Felipa. Tu sabe muito bem do que eu tô falando. — Adriana sorriu, erguendo o dedo indicador para o pescoço pálido e repleto de colares da jovem. — Isso aí no teu pescoço não apareceu do nada. Assim como os chupões no pescoço do Pedro. Há quanto tempo vocês tão juntos? Era ele o amigo que tava contigo na sexta-feira do crime? Era contigo que ele ia se encontrar no café quando o seguimos?

Felipa a encarou de volta, sua atitude provocativa e ousada desaparecendo. Te peguei. Adriana ergueu as sobrancelhas como se dissesse vamos lá, diz que tô errada, mas a jovem atirou o pirulito numa lata de lixo e sorriu de volta.

— Existem muitos outros homens interessantes na cidade, investigadora. Seu parceiro, por exemplo, é um deles.

— Mas tu não o conheceu na cidade, né? — Adriana replicou de imediato, vendo o sorriso de Felipa sumir outra vez. — Se conheceram na Europa enquanto estudavam, não? Na Itália, mais precisamente. Tiveram um romance e, quando descobriram de onde eram, decidiram manter em segredo. Apesar de tudo, a família vem primeiro lugar, né, Felipa?

Adriana sabia que jogava alto. Além das próprias deduções e observações, não possuía nada de concreto; nenhuma mensagem interceptada, nenhum telefonema obscuro ou confissão. A investigadora, guiada pelo instinto, pressionava Felipa como podia.

— Vocês dois tão com medo de abrir o relacionamento por causa da competição entre as famílias, da rivalidade. — Adriana sorriu como a professora que dá uma lição num aluno desobediente. — É por isso que Pedro pedia ajuda à Érica, Felipa? Porque ele queria te assumir sem transformar a vida de ninguém num caos?

Felipa Albuquerque cruzou os braços num silêncio contrariado. As crianças riram outra vez à beira do lago, atirando pedacinhos de pão aos marrecos. A jovem ergueu as sobrancelhas bem delineadas.

— Quem tá dizendo isso é tu.

— Tu é dura na queda, Felipa. Isso ninguém pode negar. — Adriana riu. — Minta o quanto quiser pra mim, mas uma hora ou outra esse teatro vai cansar e vocês não vão poder mais se esconder. — Felipa trincou a mandíbula. — Prestem atenção nos chupões. Vocês quase me enganaram.

Adriana piscou um olho para Felipa e se afastou, apertando a alça da bolsa. Contou até cinco mentalmente quando a jovem finalmente chamou-a de volta. Bingo. A investigadora se virou e esperou. Felipa remoeu as palavras sem desmanchar a pose de durona.

— Ninguém daqui entenderia — disparou ela. — Principalmente minha mãe. Ela nunca entenderia.

A imagem de Teodora chorando no escritório grudou-se ao cérebro de Adriana enquanto ela observava a jovem de cabelos cor-de-rosa, shorts rasgados, meia arrastão e botas de combate. Sem graça, a investigadora assentiu.

— Talvez ela entenda melhor do que tu imagina.

Com um aceno curto de cabeça, Adriana virou as costas e saiu do parque sem olhar para trás.

---

Quando Adriana voltou ao carro, Luís se recusou a dar partida até que ela explicasse o que diabos queria com Felipa. Sem alternativas, Adriana viu-se obrigada a contar sobre o relacionamento secreto entre a jovem e Pedro, deixando de fora a parte sobre Teodora e Martin. Luís ouviu em silêncio, erguendo as sobrancelhas a cada palavra de Adriana. Quando ela terminou, ele riu e disse um quem diria, hein? antes de girar a chave e levá-los de volta à DP.

Tão logo entraram no prédio envelhecido, Luís puxou Dante para uma salinha reservada — a mesma do almoxarifado-barra-sala-de-interrogatório — e pediu a Adriana que contasse os detalhes do encontro a Dante. Com as sobrancelhas espessas franzidas, Dante concordou com eles após ouvir os detalhes. Era melhor pesquisar a história de Felipa e Pedro a fundo antes de comunicá-la aos outros. Até porque nem sabemos se isso tem alguma relação com o caso, ele disse, dando de ombros. Fazendo uma careta, Dante concluiu: E porque as notícias parecem... voar nessa cidade. Adriana e Luís assentiram. Contra fatos, não havia argumentos.

Enquanto Bernardino dava outra entrevista coletiva, os policiais seguiam com a rotina de levantar dados sobre as testemunhas, reler o inquérito e conversar pela enésima vez com lojistas e conhecidos de Érica para, pela enésima vez, ouvir as mesmas respostas. Olhando para os rostos entediados, para as persianas tortas, os móveis carcomidos, ventiladores velhos e o mural atulhado de panfletos sobre o combate às drogas, Adriana percebeu que o inquérito entrava naquela região em que os policiais conheciam como o limbo da investigação.

As principais testemunhas foram ouvidas, os dados da Perícia eram conhecidos de cor pelos investigadores, mas nada realmente acontecia. Era como flutuar em águas paradas sem esperança alguma de se mover, subir ou afundar. O sentimento de não sair do lugar, de correr contra o tempo — e contra o Ministério Público, que pressionava a todo instante por resultados — era sufocante. Adriana olhou para os rostos cansados dos policiais e percebeu que até o entusiasmo de Miranda começava a esmorecer. E o pior é que esse sentimento não passa.

Mesmo com a bomba que Teodora largara em seu colo durante a manhã e a descoberta do relacionamento de Felipa e Pedro — possivelmente o casal mais improvável do ano —, eles não tinham nada. Qualquer um, por qualquer motivo, poderia ter esfolado Érica e jogado seu corpo numa cova semiaberta. Mas só alguém com um bom motivo teria cercado o corpo com pétalas de rosa em forma de coração.

— Podemos conversar um instante, investigadora?

Adriana se virou e deu de cara com o rosto marcado de Ricardo. Luís aproximou-se devagar, fingindo procurar uma folha entre a papelada de Adriana. Sem graça, Ricardo coçou a cicatriz e pigarreou.

— À sós. Se não for incômodo.

— Claro. Vamos até a sala do delegado.

Com a cabeça pipocando de perguntas, Adriana seguiu na frente, abrindo a porta para Ricardo passar. Como tudo o que vinha de Bernardino, a sala dele tinha o cheiro de sua colônia barata e enjoativa, além de um mapa de Lisiantos que datava de 1906. Apoiando-se na mesa, Adriana se virou para Ricardo, que olhava para a toda sala, exceto para a investigadora.

— Então? O que tu precisa?

Do cós das calças, Ricardo puxou uma pequena faca embainhada em couro. Adriana piscou quando ele sacudiu a arma, depositando-a em cima da mesa organizada de Bernardino. Os dois ficaram em silêncio. A investigadora alternava o olhar entre a expressão sem graça do policial e a faca embainhada com uma pergunta que não precisava ser feita. Sem saber o que dizer, ele pigarreou.

— A faca utilizada no crime. — Quando ele percebeu o olhar fixo dela, continuou num tom apressado: — Não a faca, mas... mas o mesmo tipo de lâmina. Spey-point.

Adriana assentiu. Mais sem graça do que antes, Ricardo tomou a lâmina de volta, abrindo o botão da bainha e puxando a faca para fora. Contra a luz branca da sala de Bernardino, Adriana pôde observar a peculiaridade daquela lâmina; o vinco reto no topo, a curva sinuosa que descia ao cabo trabalhado, o brilho do aço. Para a surpresa dela, a faca era menor do havia imaginado. Ao todo, lâmina e cabo não passavam dos 15cm.

— A empunhadura é de chifre de cervo. Aqui. — Ele virou o cabo para ela. Adriana pegou a lâmina, sentindo o peso entre os dedos e as ranhuras da empunhadura. Ricardo apontou para o cabo e disse: — É um bom material. O chifre de cervo previne que a faca escape das mãos durante o manuseio.

Ela apertou a empunhadura e ergueu os olhos para ele. O policial devolveu o olhar antes de colocar as mãos na cintura e desviar o rosto. Aquilo estava ficando estranho demais para o gosto de Adriana. Ainda com a lâmina nas mãos, ela ergueu as sobrancelhas. Como uma criança que precisa confessar uma traquinagem à mãe, Ricardo mirou-a com a cabeça baixa.

— Eu, hã, cresci com meus avós numa fazenda em Bento. — Coçando o pescoço, ele fungou. — Eu passei boa parte da minha adolescência ordenhando vacas e...

Esfolando animais. Ele se calou, admirando os próprios sapatos. Adriana apertou o cabo, esperando que Ricardo continuasse. Quando o silêncio deu a entender que ele não diria outra coisa, a investigadora perguntou:

— A esfola é fácil de fazer?

— Pra um iniciante, não — respondeu ele, coçando a cicatriz. — O corte deve ser preciso, só o suficiente para separar a pele da... da carne em si. É necessário ter mãos firmes. Por isso esse tipo de lâmina é o mais indicado. E é preciso de força pra, hã, pra puxar.

Ele fez um gesto com as mãos, afastando os punhos cerrados um do outro, como se quisesse demonstrar a operação. Adriana assentiu, pensando no que Érica deveria ter passado nas mãos do assassino.

— Mas os animais, quando esfolados, são mortos antes, não?

— Sim — respondeu Ricardo. Após um breve silêncio, ele adicionou: — Se é difícil esfolar um animal morto, é praticamente impossível esfolar um com vida. Como eu disse, o corte é delicado, mas firme. Com o animal se mexendo e ganindo, é certo que a esfola será malfeita.

— Quanto tempo leva? — Ele franziu o cenho. Adriana explicou: — Pra esfolar um animal. Quanto tempo?

— Depende da lâmina, do tamanho do animal, do esfolador... — Sem graça, Ricardo pigarreou e a encarou. — Mas acho que esfolar uma pessoa é algo... algo completamente diferente.

Ela mirou a lâmina. Quem poderia ter feito isso à Érica?, Adriana pensou, girando a faca contra a luz branca da sala do delegado. Ricardo disse:

— Eu sei que parece estranho eu saber sobre esse tipo de coisa, ter a faca, explicar o processo e tudo. Principalmente com... com o caso que estamos investigando, mas eu...

Ele se calou, trincando a mandíbula. Adriana respirou fundo, depositando a faca em cima da mesa e cruzando as mãos em frente ao corpo. O policial coçou a cicatriz do rosto e ajeitando os ombros como quem toma uma decisão importante, disse:

— Eu nunca faria isso. Sérgio me irritou, e eu sinto muito por ter explodido na frente de todo mundo. — Ricardo fez uma pequena pausa. — A minha cicatriz não teve nada a ver com facas. Eu fui ajudar a minha irmã de um cara que tava tentando es...

— Tu não precisa me contar — disse ela. — A tua vida pessoal é assunto teu, Ricardo. — Ele agradeceu com um aceno de cabeça. A investigadora sorriu. — É bom ter alguém como tu na investigação. Alguém que pelo menos entenda o método do cara. Pode me fazer um favor?

— Lógico.

— Levanta informações sobre as cutelarias da região, procura saber se alguma delas vendeu esse tipo de lâmina recentemente. Pede ajuda à Miranda, se necessário.

Ele assentiu e se virou para deixar a sala. Antes que Ricardo saísse, Adriana chamou-o de volta. O policial piscou, a mão descansando sobre a maçaneta da porta da divisória. A investigadora disparou:

— Por que tu quis falar comigo à sós? — Ela virou as palmas das mãos para cima. — Não era mais fácil ter esperado pela próxima reunião pra expor isso aos outros também?

Ricardo pensou durante alguns momentos, encarando-a de volta como se procurasse a melhor resposta. Por fim, ele deu de ombros.

— Acho que eu não quis parecer o maluco das facas na frente dos outros. — Os dois sorriram, mas Ricardo não demorou a ficar sério. — E porque acredito que... que vamos conseguir resolver tudo mais rápido com a senhora no comando.

Adriana franziu o cenho. Já havia pedido aos policiais que não a chamassem de "senhora", mas algum deles, principalmente Ricardo, ainda insistia naquilo. Ela deixou uma risada baixa escapar.

— Eu não tô no comando da investigação, Ricardo. O delegado...

— Eu sei — interrompeu ele. Sem graça, o policial adicionou: — A senhora também não tava no comando do caso Valentina Gama e o resolveu mesmo assim. Eu... eu confio no seu trabalho.

Ricardo sorriu brevemente antes de deixar a sala. As persianas se moveram durante um instante, o som da velha máquina de café encheu a delegacia e, do outro lado da porta, ela podia quase ver os policiais indo de um lado para o outro, caminhando entre as mesas e os computadores como se buscassem ocupar a mente com qualquer coisa que não a falta de respostas. Ela viu tudo isso, mas não ousou sair da sala de Bernardino.

Três anos se passaram, mas alguém sempre traz isso à tona. Se Adriana fechasse os olhos, via o rosto alegre da adolescente de cabelos castanhos, seu sorriso largo e o nariz delicado que, depois do assassinato, ganhou todos os jornais e mídias. Adriana via também o rosto da mãe desesperada, que chorava pela delegacia sem saber o que fazer, dizendo o meu amor está morto, descubram quem matou o meu amor de novo e de novo, como um disco arranhado. E Adriana se lembrava do cheiro podre daquele apartamento repleto de crucifixos pendurados no teto, bonecas sem cabeça e moscas.

Ela se lembrava do tiro, também, mas isso ela sempre procurava esquecer. O problema era que a memória sempre voltava, teimosa como a língua quando sente a falta de um dente, indo e voltando no espaço vazio sem parar. E depois do tiro...

Adriana olhou para a faca que descansava em cima da mesa e trincou a mandíbula antes de tomá-la nas mãos outra vez. A lâmina brilhou contra a luz branca da sala, e a investigadora viu os próprios olhos verdes refletidos ali. Respirando fundo, Adriana apertou a empunhadura entre os dedos, sentindo as ranhuras do cabo contra a pele.

Era hora de as coisas começarem a dar certo. Antes que eu acabe perdendo o juízo, ela pensou com um suspiro nada animador enquanto saía da sala do delegado.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top