11.

— Ainda não possuímos nenhuma nova informação sobre o caso — disse a repórter em frente à Delegacia de Polícia de Lisiantos, mirando a câmera diretamente. — O delegado afirma que os investigadores estão prestes a realizar prisões, mas quinze dias já se passaram e os dados conclusivos ainda estão sendo elaborados, de acordo com o Instituto Médico-Legal de Porto Alegre. A declaração do delegado Bernardino de Almeida foi a seguinte...

Apoiada numa das mesas da delegacia, Adriana e os outros viram o rosto rechonchudo de Bernardino aparecer na televisão. Com um suspiro cansado, viram, outra vez, Bernardino enrolar os jornalistas com sua falsa importância. Quem deixou esse cara ser delegado? Adriana apertou a borda da mesa com força, trincando a mandíbula.

Os outros cruzaram os braços, ouvindo a televisão com uma pitada de vergonha alheia evidente. Miranda tinha o nariz franzido, como se tentasse entender as palavras do delegado. Ricardo ostentava no rosto marcado uma verdadeira expressão de dor. Sérgio e Jorge, sentados de braços cruzados, balançavam a cabeça. Luís era o único que andava de um lado para outro, bufando.

Quando Bernardino ousou dizer que o assassino não passaria outra noite impune, Luís explodiu:

— Esse cara. Ele tá trabalhando no mesmo caso que a gente? — Ninguém respondeu. — E onde tá o Dante, hein?

Ele mal terminou de falar e Dante apareceu pelos fundos, carregando uma pasta. Adriana só precisou olhar para ele para perceber que, enfim, estavam com os laudos da Perícia. Os olhos de Dante brilharam, e ele sorriu como uma criança na loja de doces. Finalmente, Adriana pensou, pedindo para que os outro a seguissem para a sala. Nervosos, fecharam a porta da divisória quando Dante largou os laudos no centro da mesa.

Ninguém ousou falar, e por um momento, ouviram apenas o som dos ventiladores de teto. As sobrancelhas de Dante se uniram, e com uma expressão séria, ele disse:

— Bem, teoricamente o delegado deveria tá aqui pra...

— É, mas ele não tá — interrompeu Luís, tomando um lugar na mesa. A boca de Dante era uma linha fina de reprovação. Com um suspiro irritado, Luís arrematou: — Ele tá numa coletiva de imprensa e nos envergonhando na televisão. Vamos logo com isso, Dante.

Ele semicerrou os olhos, mirando cada colega à procura de um apoio que não veio. Adriana prendeu a respiração. Por fim, Dante deixou uma risada ansiosa escapar, puxando os laudos para si.

— Tudo bem, vamos nessa. Não tive tempo de ler tudo, mas Gaspar me inteirou dos pormenores. — Ele abriu a pasta, mostrando fotografias do corpo esfolado de Érica aos colegas. Dante respirou fundo, mirando as imagens da Perícia com as mãos na cintura. Seus olhos escureceram quando ele disse: — Eu nem sei por onde começar.

— Do começo, Dante — incentivou Adriana.

Ele assentiu para as fotografias, procurando a melhor maneira de começar. Apoiando as mãos nas mesas, Dante engoliu em seco. Os outros se aproximaram e esperaram.

— Certo. Érica foi encontrada assim no Cemitério da Assunção, às 21h de sexta-feira. — Dante bateu com a ponta dos dedos nas fotografias sobre a mesa. — Exceto pela pele, nenhum órgão foi retirado ou alterado. E não há indícios de violência sexual.

Luís trocou um olhar confuso com Adriana, que umedeceu os lábios. Pelo menos isso. Dante procurou um papel de dentro da pasta enquanto Miranda fazia anotações num bloco. Quando encontrou a folha certa, continuou:

— Pelos exames, os peritos afirmam que a causa mortis foi decorrente de um... um choque hipovolêmico. — Ele leu, franzindo as sobrancelhas para o laudo. Virando-se para os colegas, explicou: — Um tipo de choque circulatório que, se não tratado, pode levar a óbito. Basicamente, Érica morreu por conta de uma hemorragia profunda, o que pode ser deduzido pelo estado do corpo. Os peritos estimam que o óbito tenha ocorrido às 20h, duas ou três horas após o início do procedimento de esfola. Mas é aí que vem a parte interessante.

Dante respirou fundo, apertando as bordas da mesa. Adriana encarou-o e sentiu o chão faltar quando ele disse:

— Os exames não indicaram nenhuma substância estranha no corpo de Érica.

Luís franziu o cenho. Os ventiladores velhos giraram e giraram, e nenhum dos presentes quis colocar em palavras o que aquilo significava, ninguém quis fazer a próxima pergunta. Porque todo mundo sabe o que isso significa.

— O que tu quer dizer com isso, Dante? — perguntou Luís.

— Que Érica tava acordada enquanto era esfolada, provavelmente consciente do que acontecia.

Após um silêncio pesado, Luís disse o que todos pensavam:

— Puta que pariu.

— Pois é, mas isso não é tudo. — Dante empurrou o celular de Érica para o centro da mesa. Seu olhar parou em Adriana. — Às 18h de sexta-feira, Érica tentou ligar pra polícia.

— Pera aí, como assim? — questionou Luís. — O celular da Érica tava com a Rosa. Ela esqueceu no restaurante, na quinta-feira.

— Pois é. — Dante colocou em cima da mesa outro saquinho plástico, com o mesmo modelo de celular dentro. — A chamada não foi efetuada do celular que tava com a Rosa, mas desse aqui. O aparelho foi encontrado no cemitério, não muito longe do corpo.

— Por que ela teria dois celulares? — perguntou Luís. — Isso não faz sentido.

— Um pro trabalho, outro pro pessoal. — Dante deu de ombros. — O celular que tava com a Rosa só tinha ligações pra jornalistas, pra editora que ia publicar o livro e pra Vinícola Albuquerque. Já esse, encontrado no cemitério, tinha ligações pra amigos e pra DP de Lisiantos.

— E a DP recebeu essa ligação? — Adriana questionou após um breve silêncio. — Nenhum registro?

— Ela não conseguiu completar a chamada. É quase como se...

— Como se o celular tivesse sido... interceptado por alguém— completou Miranda. Dante assentiu de uma maneira sombria. Girando a caneta nas mãos, com o pensamento longe, Miranda sentenciou: — Érica sabia que ia morrer. Se ela ligou às 18h, e os peritos estimam que o óbito tenha ocorrido às 20h, duas ou três horas após o início da esfola...

— A esfola estava prestes a começar ou já havia começado quando ela tentou pedir ajuda.

Adriana sentiu a própria voz arranhar a garganta, as palavras soando distantes, quase desconexas. Olhou para a mesa, para as fotografias dos músculos avermelhados de Érica, para a ponta de seus dedos que eram apenas restos de ossos pontudos. Com a pele arrepiada, Adriana engoliu em seco, cravando os dedos no encosto da cadeira.

Imaginou Érica fugindo do agressor, escondendo-se e vendo no celular a última esperança de se salvar. Essa, Adriana pensou com um gosto amargo na boca, era a pior parte de ser policial. Sempre chegamos quando não há nada mais a ser feito.

— E a arma do crime? — perguntou Jorge, olhando de relance para Sérgio. — O que a Perícia concluiu?

Dante mostrou ao colega fotos aproximadas que a Perícia tirara. De perto, as fibras dos músculos expostos se assemelhavam a novelos de lã vermelha vibrante. Jorge virou a cabeça para observar melhor as fotografias, mas Adriana percebeu que seus olhinhos miúdos evitavam parar muito tempo na mesma imagem.

— É possível perceber incisões muito bem-feitas ao longo do corpo de Érica. Os peritos também sugerem que o assassino parece ter uma mão bem firme pra realizar os cortes com tamanha precisão numa vítima desperta. — Dante assentiu, olhando para os outros. — De acordo com os laudos, o instrumento usado foi uma faca de lâmina reta, de 4mm a 6mm de largura, com uma possível curvatura que gerou as marcas de corte nos músculos de Érica.

— Uma faca específica pra esfola. Lâmina spey, talvez — disse Ricardo, como se falasse consigo mesmo. Adriana e os outros se viraram para ele, que corou com a atenção indesejada. Coçando a cicatriz, explicou: — É um tipo de lâmina que...

Todos ficaram em silêncio, e Ricardo se calou e corou outra vez, percebendo o que dissera. Luís encontrou o olhar de Adriana, fazendo a pergunta de maneira silenciosa. Jorge e Miranda respiravam pesadamente, e as persianas tortas da delegacia bateram contra a janela. Sérgio franziu o cenho para o colega, como se o visse pela primeira vez.

— Como tu sabe dessas coisas, Viana? — questionou ele.

— Eu não... — começou Ricardo, olhando para eles como se buscasse auxílio. Quando ninguém se moveu, ele deixou um riso assoprado escapar. — O quê? Sou suspeito agora?

Jorge se encolheu na cadeira. Adriana trincou a mandíbula. Luís observou, pronto para intervir se chegassem no estágio físico. Isso tá saindo do controle rápido demais. Dante engoliu em seco, apertando as bordas da mesa.

— Não sei. Tu é? — perguntou Sérgio. Ricardo enrijeceu. — O que mais tu esconde, cara?

— Baixa a tua bola, Sérgio — interveio Miranda, fulminando o policial com um olhar.

— Tu parece entender bastante de lâminas — continuou Sérgio, ignorando a interrupção dela. Indicando a cicatriz no rosto de Ricardo com um gesto de cabeça, arrematou: — Quem brinca com facas...

As narinas de Ricardo inflaram e ele espalmou um copo descartável com água para longe, avançando na direção de Sérgio. Miranda meteu-se entre os dois, olhando para Ricardo com as sobrancelhas erguidas. Adriana poderia jurar que ouviu-a sussurrar um não vale a pena ao colega. O clima pesou na sala. Sérgio cruzou os braços, sorrindo com o canto dos lábios, mirando Ricardo como se o desafiasse a dar o próximo passo.

Furioso, Ricardo grunhiu e saiu, batendo a porta da divisória com força. As persianas tremeram, e Miranda saiu atrás, não sem antes semicerrar os olhos para Sérgio. Os ventiladores rangeram, e Sérgio deixou uma risada debochada escapar.

— Óbvio que a Buarque defenderia o cara — resmungou ele, sentando-se numa das cadeiras e atirando as fotos de Érica para longe. — Eu também o defenderia se tivesse transando com ele como uma maldita coelha no cio.

Jorge ergueu os olhinhos miúdos para Adriana, que fez uma careta para Sérgio e decidiu, de uma vez por todas, que não gostava dele. Em todos os lugares é necessário que haja um Bernardino. Luís espalmou as mãos na mesa, encarando Sérgio.

— Por mais que eu adore saber da vida pessoal dos outros, não recebo salário pra isso. E que eu saiba, nem tu, camarada. — Ele sorriu, ao que Sérgio cruzou os braços como uma criança birrenta que não recebe aquilo que pede. Olhando para Jorge, que apertava as mãozinhas ansiosamente, disse: — Voltem ao trabalho. É o melhor que todos têm a fazer.

Ele piscou para os dois policiais. Adriana sorriu com o canto dos lábios e seguiu Luís e Dante para fora da sala.

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Do lado de fora, nos fundos da DP, Luís esticou-se, deixando um gemido baixo escapar. Dante sorriu para um grupo de crianças brincando ali perto, e Adriana olhou discretamente para o relógio de pulso. A brisa da primavera atingiu-a com força no rosto, movimentando as bandeirinhas presas aos postes de luz. Luís descansou as mãos na cintura e olhou para as viaturas estacionadas na parte de trás da delegacia como se fosse o rei daquele pedaço de terra.

— Bem, hora de almoçar, galera. — O sorriso largo que cresceu nos lábios dele fizeram Adriana e Dante sorrir. — Ninguém combate ao crime de barriga vazia. O que nos diz, Dante?

A boca de Dante se abriu e tornou a se fechar. Suas bochechas pálidas coraram, e Adriana sorriu com o canto dos lábios. Ele apertou a pasta que trazia nas mãos, tossindo.

— Não, eu... — Dante apontou para a delegacia com o polegar. — Ainda tenho muito trabalho. Preciso fazer as cópias desses laudos, esperar o delegado chegar e fazer algumas perguntas a Gaspar. Só saí porque o clima tava horrível lá dentro.

— Mas tu não vai comer nada? — Luís pareceu surpreso, como se não cogitasse a hipótese de alguém não almoçar. — Tu é um cara grande, Dante. Precisa se alimentar.

— Quando foi que tu virou minha mãe, Luís? — Ele riu, as bochechas ainda coradas. — Eu almoço... almoço mais tarde. Quando vocês voltarem e as coisas tiverem mais calmas.

Discreta como sempre, Adriana assentiu, sabendo os reais motivos de Dante. Mas Luís, incapaz de deixar a oportunidade passar, sorriu como um duende, seus olhos castanhos se apertando. Dante franziu o cenho.

— Ele não quer mais almoçar com a gente, Adri — começou Luís, sorrindo da mesma maneira maligna. — Acho que é porque arranjou companhia melhor. Uma companhia que sabe cozinhar. Que tem olhos azuis, um restaurante. Fomos trocados.

Se Dante pudesse enfiar a cabeça num buraco, ele certamente o teria feito. A ponta de seu nariz reto estava vermelha, assim como suas bochechas. O rubor subia pelo colarinho da camisa, envolvendo-o como um cobertor. Adriana sorriu, baixando o rosto.

Desde que jantaram com Rosa, Dante era visto com uma frequência maior do que esperada no restaurante, geralmente dividindo uma mesa com a chef do Tempero do Sul. Ele fazia questão de realizar todas as refeições no restaurante, especialmente em horários mais calmos, quando o movimento permitia a Rosa alguns momentos livres. Adriana, muito mais discreta do que seu parceiro, não comentou nada.

Mas seria um milagre se Luís, que vira os dois dividindo uma mesa na semana passada, ficasse de boca fechada. Corado, Dante ergueu uma sobrancelha para Luís, como um pai prestes a dar uma bronca.

— Pensei que tu não recebesse salário pra cuidar da vida pessoal dos outros.

— Então existe algo que eu deva cuidar? — Luís brincou, cutucando Dante com os dedos indicadores. — Tu é o cara. Sempre soube.

— Eu não sei como posso ser teu amigo. Tu tem cinco anos de idade — reclamou Dante, virando-se para Adriana. — Como tu aguenta?

Ela simplesmente deu de ombros e riu. Dante balançou a cabeça e se despediu, ignorando a risadinha faceira de Luís e sumindo para dentro da DP. Adriana respirou fundo, ajeitando a bolsa no ombro.

— Rosa? — perguntou Luís, o riso ainda preso aos lábios. Ela assentiu, descendo as escadas ao lado dele. Enquanto davam a volta na delegacia, Luís grunhiu, esfregando a barriga. — Eu daria um braço pra comer aquela massa à Carbonara dela.

Adriana riu. Com uma olhadela, percebeu poucos jornalistas na porta da DP. A maioria checava os próprios celulares ou gravava boletins sobre o caso, com o prédio antiquado da delegacia de fundo. Silenciosos, Adriana e Luís mal ergueram a cabeça para os jornalistas, que se os vissem saindo do prédio, certamente pediriam uma declaração.

E depois do caso Valentina, a última coisa que eu quero é falar com a imprensa. Adriana se lembrava das câmeras apontadas para seu rosto, dos jornalistas suplicando por uma palavra, por apenas uma declaração rápida, investigadora. Eram como abutres sobrevoando a carniça, à espera de uma resolução, uma história que vendesse jornais e rendesse cliques em blogs de meia-tigela.

Passaram pela banca de jornais, onde revistas de jardinagem anunciavam a chegada do Festival das Flores na cidade com matérias de capa espalhafatosas. Quando alcançaram o carro de Luís e Adriana fez menção de abrir a porta, algo fez seus dedos congelarem.

Não muito longe, Pedro Camargo de Sá caminhava, olhando constantemente sobre os ombros ossudos. Da distância em que estavam, Adriana percebeu manchas de suor em sua camisa quadriculada, percebeu o movimento descoordenado de seus pés, seus olhos saltados atrás dos óculos de aro grosso. Quase como se tivesse se escondendo de alguém.

Luís acompanhava o jovem com os olhos quando Adriana virou-se para ele. Pedro seguiu em direção à praça, constantemente checando por cima dos ombros. Luís bateu a própria porta, mirando-a antes de dizer com um sorriso:

— Bem, eu não sei tu, mas eu sempre gostei de uma perseguiçãozinha antes do almoço.

Ela sorriu com o canto dos lábios. Não havia nada melhor para abrir o apetite.

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