09.

Não foi nenhuma surpresa quando Luís parou o carro em frente a uma fachada de muros brancos, com seguranças engravatados e mal-encarados na portaria. Além de anotarem a placa do carro, os homens pediram os distintivos dos dois, observaram o interior do carro e passaram informações por rádio algumas vezes antes que o portão automático fosse finalmente aberto. E quando Luís embocou o carro pelo caminho de cascalhos, Adriana pensou estar entrando no cenário de uma novela de época.

Após um jardim de rosas admirável e um gramado milimetricamente aparado, um casarão em estilo antigo, todo branco, dividia a propriedade pela metade. Adriana tinha certeza de que já vira aquela casa em alguma minissérie de época, algum seriado de televisão sobre a Inglaterra de séculos passados. Se não fosse pelos seguranças engravatados perambulando pelo gramado, acompanhando-os silenciosamente com olhos e movimentos discretos, seria admissível que homens e mulheres em trajes antigos surgissem de trás das árvores.

Luís estacionou em frente à casa, e os dois ficaram em silêncio, ouvindo os passarinhos piarem do lado de fora. Ele abraçou o volante, erguendo os olhos para o casarão. Com uma risada debochada, disse:

— A casa de um homem é seu castelo. — Ele virou o rosto para Adriana. — Parece que alguém levou o ditado muito a sério...

— Pessoas ricas — disse ela, naquele tom que explicava tudo. — O que tu esperava?

Ele riu de volta, e ambos desceram do carro. A brisa da primavera sacolejou um dos imensos canteiros de rosas que margeavam a casa, trazendo o aroma das flores ao nariz de Adriana. Luís aproximou-se, e o olhar dela encontrou brevemente o de um segurança. O homem fez um aceno curto de cabeça e voltou a patrulhar outra área do jardim.

— Tu viu quantos caras na casa? — perguntou Luís, ajeitando as mangas da camisa. — Corro o risco de dizer que Teodora tem mais seguranças no jardim do que Lisiantos tem policiais.

— Contei nove caras só no gramado — comentou ela, observando o resto da propriedade, procurando por pontos de interesse. — Do que Teodora tem tanto medo?

Antes que Luís pudesse responder, uma jovem de uniforme negro e coque terrivelmente apertado apareceu pela lateral da casa, em frente ao carro. Seu ar profissional não permitiu que Luís estendesse a mão e se identificasse. Com um sorriso frio, a jovem inclinou a cabeça e disse:

— A Sra. Albuquerque os aguarda na área da piscina. Queiram me acompanhar, por favor.

Ela virou as costas e pôs-se a caminhar, nenhum fio de seu coque ousando sair do lugar. Sem alternativa, Luís e Adriana seguiram-na pelo caminho de cascalhos, para a parte posterior da imensa propriedade da família Albuquerque.

Em silêncio, Adriana admirou a grande varanda de pedra nos fundos da casa que se abria para um gramado em declive com mais rosas, arbustos e um lago artificial. Mais seguranças trocaram mensagens por rádio enquanto os dois atravessavam o gramado, acompanhando os movimentos deles com olhos treinados. A jovem empregada permaneceu calada até chegarem ao limite da propriedade, onde se depararam com uma área de piscina que faria inveja a qualquer clube de Porto Alegre.

Com espreguiçadeiras de madeira ao redor de uma piscina quase olímpica e mesas de ferro, a área da piscina seria o local perfeito para qualquer edital de moda verão. Um jovem careca, queimado pelo sol, limpava a piscina, observado pelos olhos sagazes de uma velha senhora sentada elegantemente a uma mesa circular de ferro fundido.

Por um segundo, frente todo aquele luxo, Adriana sentiu-se pequena. O apartamento que dividia com suas plantas e memórias em Porto Alegre seria uma caixa de sapatos se comparado à enormidade do lar da família Albuquerque. Ou uma caixa de sardinhas, ela pensou de maneira azeda. A velha senhora, finalmente percebendo a presença deles, fez um gesto rude para o rapaz da piscina, que sumiu de maneira silenciosa.

— Sentem-se, por favor. — Ela indicou as cadeiras vazias com um gesto. — Fico grata que tenham aberto espaço na agenda para uma velha como eu. Café, chá?

Fizeram como ordenado, e enquanto ela se servia e empurrava delicadamente uma xícara em direção a Luís, Adriana aproveitou para observá-la. A Dama de Ferro de Lisiantos.

À primeira vista, Vitória Albuquerque seria comparada a qualquer senhora endinheirada e extravagante que frequentemente aparece nos filmes como uma tirana inclemente ou um simples alívio cômico. Vestida de maneira sóbria, uma blusa branca e calças negras, Vitória possuía a atitude altiva que é difícil de ser dissociada daqueles que possuem muito dinheiro.

Apesar da pele enrugada, dos cabelos loiros quase brancos e das maneiras aristocráticas, Adriana percebeu a semelhança de Vitória e Teodora pelos olhos, ambos verde-escuros e misteriosos. A única diferença entre mãe e filha era a postura. Vitória, diferentemente de Teodora, possuía vitalidade, uma inquietação latente que a tornava anos mais jovem do que sua filha.

— A senhora nos pegou de surpresa pela ligação. — Luís mirou-a por cima da borda da xícara, fazendo um sorriso brincalhão surgir nos lábios de Vitória. — Não estamos... acostumados a ser convocados por testemunhas.

— Sou apenas uma velha senhora sem ter o que fazer, investigador. — Ela riu, mas seus olhos verdes brilharam. Adriana sorriu para ela, percebendo nas rugas de seu rosto a malícia divertida das mulheres mais velhas. — Já que estou com tempo livre, melhor contribuir com a polícia, não?

— Toda ajuda é necessária. — assentiu Luís, inclinando a cabeça num gesto polido. Mirando Vitória com atenção, perguntou: — A senhora conhecia Érica Baldini?

— Certamente — respondeu Vitória, como se a pergunta fosse óbvia demais para ser feita. Alisando o guardanapo de pano com a ponta da unha pintada de cinza-claro, ela suspirou: — Bem, posso dizer que éramos amigas. Passávamos muito tempo juntas por conta do livro.

— Quando foi a última vez em que a senhora viu Érica? — perguntou Adriana, afastando a xícara intocada para o lado.

Vitória ergueu as sobrancelhas, olhando para cima como se seus pensamentos fossem se materializar no ar. Incapaz de precisar o dia, a senhora deixou um sopro de ar escapar pela boca, inflando ligeiramente as bochechas.

— Érica estava sempre aqui. É difícil dizer. — Após uma pequena pausa, ela completou: — Mas tenho certeza de que estávamos juntas na quinta-feira pela manhã. Não sei se foi a última vez que nos vimos, mas Érica estava aqui na quinta.

As palavras de Rosa sobre o estado de espírito de Érica naquele dia assaltaram Adriana. Ela tava eufórica, como uma adolescente que mal pode esperar pra ir a um show de rock. Umedecendo os lábios, Adriana perguntou:

— A senhora percebeu algo de anormal nela neste dia? Algo de diferente?

— Não, eu... — Vitória calou-se. Seus olhos escureceram ligeiramente. O que foi que a senhora lembrou? Vitória piscou, mirando Adriana. — Agora que a senhora mencionou, lembrei-me de um acontecimento... estranho.

O estômago de Adriana se revirou, e ela sentiu as palmas das mãos suarem. Com o canto dos olhos, percebeu Luís enrijecer as costas na cadeira, parando a xícara a meio caminho da boca. Vitória encarava o reflexo do sol na piscina, perdida na recordação.

— Estávamos na biblioteca — começou ela numa voz arrastada, como se a cena se desenrolasse em sua frente. — Érica sempre gostou de folhear nossos livros, principalmente os exemplares raros que temos. Naquela manhã perguntei a ela se jantaria conosco na sexta, e ela disse que não, que tinha uma entrevista agendada.

Vitória riu, balançando a cabeça. Encarou Adriana por um segundo, erguendo as sobrancelhas de maneira sugestiva. Ela entendeu imediatamente o que a velha senhora queria dizer. Luís olhou para as duas, perdido na conversa. Vitória explicou, um tom brincalhão envelopando suas palavras:

— Uma entrevista agendada sexta-feira à noite. Com uma jovem bonita como ela? — Vitória riu quando Luís abriu a boca, finalmente entendeu o significado de suas palavras. Ela apoiou o cotovelo na mesa, inclinando-se na direção dele. — O tempo passa e as coisas mudam, mas nem tudo muda, investigador. Enfim, eu ri no momento, e como tinha intimidade com Érica, perguntei: uma entrevista ou um encontro? Ela corou, e pela primeira vez a vi sem palavras.

Um comichão assaltou as mãos de Adriana. Trocando um olhar rápido com Luís, ela não conseguiu não pensar em Pedro, no medo dele ao ficar sozinho com os dois no escritório de Martin. Com cuidado, a investigadora perguntou:

— Érica disse com quem se encontraria?

— Não, mas ela ficou tão sem graça que fui obrigada a dizer para que ignorasse minha curiosidade de velha. — Vitória tomou um gole de chá, limpando a boca enrugada no guardanapo. — Érica nunca ficava sem jeito, mas naquele dia... naquele dia eu a vi corada, sem graça como nunca. Isso ficou na minha cabeça porque decidi que pediria perdão à Érica na sexta, mas ela não apareceu...

Porque talvez já estivesse sendo esfolada, ou morta. Adriana afastou o pensamento tomando um gole de café gelado. Seu estômago reclamou da decisão, mas ela não deu ouvidos. Não conseguia parar de pensar, após aquela declaração de Vitória, que Érica se envolveu de fato com alguém da cidade.

Mas quem, fora Pedro, poderia ter mantido um romance com Érica? Qualquer um. A resposta não agradou Adriana, que involuntariamente apertou a alça da xícara de porcelana fina com raiva. Odiava todas as possibilidades que aquela pergunta trazia.

— Bom-dia.

Arrancada dos próprios pensamentos pela voz conhecida, Adriana virou a cabeça para trás, deparando-se com Teodora Albuquerque. O grupo sentado à mesa ficou em silêncio, até Vitória sorrir e dar duas batidinhas na cadeira vazia a seu lado.

— Que bom que está aqui, minha filha! Sente-se, sente-se. — Vitória serviu um xícara de café à Teodora enquanto ela se sentava, depositando uma pequena sacola de tecido no gramado. — Estávamos aqui falando sobre Érica.

— Imaginei.

Teodora sorriu, mas como era de se esperar, o sorriso não iluminou seus olhos verdes. Mirando-os por cima da xícara decorada, Teodora sorveu um gole de café silenciosamente. Outro pequeno silêncio se abateu sobre o grupo, e naqueles instantes, enquanto Vitória pedia mais bolinhos a uma empregada, Adriana observou.

Avaliando os movimentos calculados dela, a investigadora tentou vislumbrar a pequena cicatriz em seu pulso direito, mas sem sucesso. Um bracelete largo, dourado, envolvia o punho da empresária. Adriana desviou os olhos quando percebeu que Teodora a encarava, a xícara firme entre o polegar e o indicador. Luís e Vitória mantinham uma conversa paralela sobre bolinhos enquanto Adriana e Teodora se encaravam. Qual foi o teu motivo? O que te fez chegar a esse ponto?

Vitória tocou o braço de Teodora, fazendo-a virar o rosto em sua direção. A velha senhora sorriu, seus olhos brilhando para a filha.

— Coma um bolinho, meu amor. Vai se sentir melhor.

Teodora sorriu quando a mãe depositou um bolinho decorado em seu prato. Sem graça, voltou-se para os investigadores.

— Mães. Sempre achando que temos cinco anos de idade, não?

Vitória e Luís concordaram, sorrindo por trás de suas xícaras de porcelana. Como não conhecera a própria mãe, Adriana limitou-se a um sorriso curto.

Morta numa tentativa de assalto quando Adriana tinha cinco anos de idade, as lembranças eram praticamente inexistentes. Lembrava-se vagamente de um vulto de mulher de cabelos castanhos e do som de uma voz doce, que acompanhava seu pai ao piano. A mãe era uma figura sem forma nas memórias de Adriana, que possuía poucas fotografias dela e do pai para sanar a saudade que às vezes vinha sem avisar.

Teodora pegou a sacola de tecido e colocou-a no colo, puxando um calhamaço de papéis de seu interior. Adriana franziu o cenho, ao que ela rapidamente explicou:

— Após nossa conversa ontem, encontrei este material na gaveta de uma das escrivaninhas que Érica costumava trabalhar. — Teodora esticou uma parte do material à Adriana e outra a Luís, que limpou as mãos no guardanapo antes de receber os papéis. — São alguns rascunhos do que ela escrevia, assim como algumas fotografias antigas. Espero que ajude.

Adriana folheou rapidamente o material, encontrando anotações com a letra rápida de Érica, lembretes coloridos colados em páginas de texto impresso, correções feitas à caneta vermelha e cópias de fotografias em sépia. Enquanto passeava os olhos pelos escritos, Adriana percebeu que nada de pessoal enchia as páginas. Pelo pouco que leu, os rascunhos relatavam a história da vinícola Albuquerque, da produção do vinho e das flores de Lisiantos.

Sem parecer indelicada, Adriana agradeceu, vendo pouco potencial naquelas folhas soltas. Luís ainda lia os textos de Érica quando ela perguntou:

— Podemos ficar com o material?

— Por favor — respondeu Teodora, tomando outro gole de café. — Érica costumava trabalhar mais no diário, como havia comentado, mas era comum utilizar folhas soltas para rascunho. Caso encontre algum outro escrito, faço questão de entregá-los a vocês.

Teodora sorriu, e Adriana fez o mesmo. Enquanto Luís era servido novamente por Vitória, Teodora ajeitou um dos anéis, procurando pelas palavras certas. A investigadora esperou. Com outro sorriso cansado, Teodora concluiu:

— Eu sinto muito se os desagradei de alguma maneira. Não foi minha intenção ser rude, ou... — Ela suspirou. — Estou sob muita pressão na vinícola, e relembrando nossa conversa, percebi que não fui muito receptiva ontem. Espero que me perdoem.

Adriana encarou-a. Luís, que interceptou as palavras de Teodora no meio, não foi capaz de desviar os olhos dela. Vitória escondeu-se atrás da xícara, observando com seus olhinhos sagazes o desenrolar da cena. A tristeza na voz e na expressão cansada de Teodora, a toda-poderosa gerente da Vinícola Albuquerque, era desconcertante. Por sorte, seu parceiro salvou Adriana, que não encontrou as palavras certas para dizer.

— Não há o que perdoar. — Luís sorriu. — Entendemos perfeitamente.

Teodora agradeceu com um gesto de cabeça.

— Obrigada pela compreensão. Se houver qualquer coisa que possamos fazer para...

Um ronco de motor engoliu as palavras de Teodora, e os olhos dela brilharam por uma fração de segundo. Lentamente, sua cabeça altiva virou-se na direção do som, como uma corça que sente a presença de um predador nem tão distante. Adriana percebeu que os dedos de Teodora apertavam a alça da xícara com força, numa tentativa falha de camuflar o tremor de suas mãos.

A mudança que se operou nela foi similar à que ocorrera quando mencionaram a família Camargo de Sá no escritório da vinícola. Teodora trincou a mandíbula, suas narinas se dilatando quando o ronco do motor ficou mais forte, mais próximo. Foi então que Adriana entendeu que ela não tremia de medo, mas de fúria.

Enquanto Teodora lutava para manter a pose, Vitória parecia no céu. Seu sorriso se alargou, seus olhos verdes reluziram e seu espírito, ao simples ronco de motor, rejuvenesceu, iluminou a área da piscina com uma alegria quase infantil.

Quando o carro conversível estacionou no caminho de cascalhos e a motorista desceu, batendo a porta com uma atitude despreocupada, Adriana franziu o cenho. O reconhecimento não demorou a ocorrer. Levou a metade de uma fração de segundo para que entendesse.

O café gelado revirou em seu estômago quando viu a jovem de cabelos cor-de-rosa se aproximar deles como se fosse a rainha daquele castelo que os Albuquerque chamavam de casa. Quando a moça chegou perto o suficiente para que sentissem o cheiro insuportável do cigarro mentolado entre seus dedos, Teodora enrijeceu na cadeira.

— Dando uma festinha, mamãe?

A recém-chegada soltou uma risada debochada, tragando seu cigarro com força e tirando os óculos-escuros do rosto. Teodora encarou a jovem, que manteve o olhar com o queixo ligeiramente erguido.

Foi então que Adriana entendeu que estava diante de mãe e filha.

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