07.

O semblante do rapaz empalideceu ao ouvir aquelas palavras, os óculos escorregando pelo nariz altivo que era uma cópia do de seu pai. Pedro piscou mais algumas vezes, e algo naqueles olhos castanhos arregalados fizeram Adriana estremecer. Nervoso, ele estendeu a mão e cumprimentou os investigadores. Adriana sentiu a palma suada do rapaz contra a sua, e nada afastou o pressentimento que a invadiu.

Pedro tá com medo. Ela ainda não sabia do quê ou de quem, mas até um cego veria que o rapaz não se sentia confortável na presença deles. Seus olhos castanhos pulavam de um a outro, brilhando por trás das lentes arredondadas. Aquilo na testa pálida de Pedro seria suor?

— Muito prazer — disse ele, um sorriso ansioso surgindo em seu rosto. Com uma olhadela rápida ao pai, ele assentiu. — Não quis atrapalhar. Posso voltar outra hora com os resul...

— Na verdade, gostaríamos de uma palavrinha — interrompeu Luís, sorrindo para o rapaz. — Se não for incômodo, é claro.

Pedro Camargo de Sá pareceu levar um soco no estômago. Ele engoliu em seco, seu pomo-de-adão avantajado tremelicando ligeiramente.

— Na verdade, eu tava de saída — disse ele, buscando apoio no pai. Martin franziu o cenho. — Só vim falar sobre os resultados e já tava...

Ele se calou, e Luís pressionou-o com seu melhor olhar de policial. Adriana costumava ver o parceiro usar o mesmo olhar com Bárbara, quando ela sempre se esquivava de responder se estava namorando com o baterista cabeludo da banda que participava ou não.

— Só algumas perguntas, Pedro. — Ela indicou a cadeira que previamente ocupava e sorriu para Luís antes de arrematar: — Prometemos ser rápidos. O que nos diz?

— Ele ficará, investigadores. — Martin sorriu para os dois, ignorando o olhar desesperado do filho. Apertando discretamente o ombro ossudo do rapaz, ele completou: — Mas se não se importam, preciso voltar à vinícola. Mesmo no final de semana os imprevistos não param de chegar.

— Teremos outras oportunidades para continuar a conversa — disse Luís, e Adriana assentiu.

Quando a porta do escritório se fechou atrás de Martin, Pedro se sentou. As costas rígidas e os olhos presos ao relógio de pulso vintage que usava. Adriana aproveitou para observá-lo.

Pedro poderia se passar, facilmente, por uma versão mais jovem do pai. Os mesmos cabelos castanhos volumosos, o mesmo nariz reto e altivo e até as mãos, com as pontas dos dedos quadradas, eram idênticas às do pai. A única diferença entre eles, Adriana percebeu, era que os olhos de Pedro ainda eram nervosos, cheios de juventude e curiosidade. Se não fosse por isso, e pelos cabelos grisalhos que coloriam as têmporas de Martin, eles seriam iguais.

— Eu combinei de sair com uns amigos. — Ele engoliu em seco, coçando o pescoço e puxando o celular do bolso traseiro da calça. — Eles vão me ligar, e eu...

— Quando eles ligarem, tu sai — disse Luís com um sorriso amigável, apoiando-se na mesa e cruzando os braços. Pedro assentiu para os próprios joelhos. — Quando foi a última vez que tu viu Érica com vida?

— Não sei. Ela vinha aqui muitas vezes por dia. — Pedro apertou o celular entre as mãos. — Meu pai a ajudava com algumas informações pro livro. É tudo o que sei.

— Tua madrasta disse que vocês conversavam bastante — disse Adriana como quem não quer nada. — Que quando teu pai não podia atender ela, era tu quem fazia as honras. Vocês dois eram próximos?

Pedro ajeitou os óculos e, nervoso, coçou o pescoço outra vez, deixando uma marca vermelha na pele branca. Então, enquanto ele pensava na melhor resposta, algo chamou a atenção dela.

Olhando para o pescoço pálido do rapaz, Adriana percebeu manchas roxas cobertas por uma maquiagem mal feita, apressada. Chupões. Os traços subiam pelo pescoço de Pedro como um distintivo, um alvará de posse. A tentativa fracassada de esconder os hematomas apenas os deixaram mais evidentes. Quem seria a autora daquelas marcas? Teria sido Érica, na última vez em que conversaram sozinhos naquele mesmo escritório?

Se Pedro estivesse em seus vinte, vinte e dois anos, a diferença de idade entre ele e Érica não seria tão gritante. Ela desconhecia o histórico amoroso dos dois, mas aquelas marcas roxas — e principalmente a tentativa porca de escondê-las — faziam as engrenagens do cérebro de Adriana girarem incessantemente.

Adriana sentiu Luís cutucar suas costelas e virou-se para ele. Pedro parecia confuso. Só então ela entendeu que ele havia respondido enquanto ela nadava em considerações próprias. Com um sorriso apologético, a policial disse:

— Sinto muito. Eu tava longe. O que...

— Eu disse que minha relação com ela era normal — repetiu Pedro, olhando para Luís como se buscasse a validação de sua resposta. — Érica era... legal. Inteligente. Não sei muito da vida dela.

— Alguma vez teu pai e Érica se desentenderam? — ela questionou.

— Não — respondeu ele. Mentira, pensou Adriana. Ele umedeceu os lábios, olhando para os livros atrás dos policiais. Com a pressão exercida pelo olhar fixo de Luís, retificou: — Não que eu saiba. Eu realmente preciso ir. Se me dão...

— Teu celular ainda não tocou, cara. — Luís indicou o aparelho nas mãos do rapaz com um gesto de cabeça. — Ainda temos mais algumas perguntas, e deixa eu te dizer que essa tua resistência pode...

Antes que Luís terminasse de falar, o toque vibrante do celular de Pedro encheu o escritório. Como quem pede desculpas, ele olhou para os dois.

— Eu preciso ir. Sinto muito.

E antes que eles pudessem protestar, o rapaz atendeu a chamada e deixou a sala com o celular grudado à orelha.

---

— O que tu achou?

Foram as primeiras palavras de Luís tão logo deixaram a propriedade dos Camargo de Sá. Após serem guiados pelo mordomo até o lado de fora com um sorriso educado, dirigiram para longe dos portões da casa imponente, e só falaram quando tiveram certeza de estarem sozinhos.

Adriana coçou a testa, fechando os olhos por um momento. A cada pessoa que falavam, os fatos daquele caso se confundiam. Ninguém parecia disposto a ajudar a polícia, fosse por medo ou qualquer outro motivo. O Sr. Lafue se acovardara, Teodora os dispensara, Martin se esquivara e Pedro, o que mais a interessava no momento por ter seu nome escrito diversas vezes no diário de Érica, parecia temer as perguntas deles. Por quê?

As únicas dispostas a falar eram Verônica e Rosa, sendo que a única motivação da primeira era transar com Luís. Apoiando o cotovelo na porta, Adriana suspirou.

— Não sei. Fora Rosa, ninguém aqui parece disposto a ajudar de verdade.

— O que tu quer dizer com isso? — rebateu ele, dividindo a atenção entre ela e o trânsito.

— Tu percebeu que todo mundo aceita conversar com a gente, mas assim que a gente começa a fazer as perguntas, eles arranjam compromissos ou inventam desculpas? — Adriana suspirou, apoiando a cabeça na mão direita. — Sei lá, é como se todos tivessem com medo de alguma coisa.

— O famoso rabo-preso, se tu quer saber minha opinião. — Luís riu, mas quando ela não o acompanhou, ele deixou um suspiro escapar. — Tu sabe como essa fase da investigação é, Adri. Ninguém quer se comprometer. Esse Pedro, por exemplo. Aí tem coisa.

Ela ficou em silêncio, pensando se deveria dividir com Luís ou não suas ideias sobre o possível relacionamento de Pedro e Érica. Melhor não. Ainda não, pensou enquanto ele dirigia, falando sobre Martin e Pedro. Ela odiava dividir suas ideias com ele se não tinha, pelo menos, uma ponta de certeza. Por mais que os fatos apontassem para um relacionamento escondido, Adriana precisava pensar. As variáveis neste caso só cresciam. E se Pedro tivesse uma namorada? E se Érica e ele apenas conversaram, como Verônica dissera?

No banco do carona, Adriana relaxou, derrotada. Após ouvir que Martin tivera um incidente com Érica a investigadora pensara que mais pistas se revelariam, mas estavam num beco sem saída. Pelo menos até a Perícia enviar as análises do corpo.

— ...E tu viu aquelas estantes dele? — continuou Luís, apertando o volante e abrindo a boca como uma criança. — O cara tem quase uma biblioteca de Alexandria em casa. Como alguém consegue deixar os livros organizados assim? Impossível.

Adriana achava engraçado como o apartamento de Luís, localizado num prédio antigo no bairro Santa Cecília, era abarrotado de livros. Depois de se separar de Camila, Luís desistiu de vez de tentar pôr em ordem sua coleção gigantesca de livros. Assim que Adriana entrava no apartamento, via pilhas e pilhas de livros no chão, livros socados em estantes, livros em cima da mesa, ao lado do telefone e até no banheiro, escondidos debaixo da pia. Bárbara não passava um dia sem reclamar que as traças já tão roendo minhas blusas, pai!

Conhecendo o apartamento dele, ficava fácil compreender porque a inveja inocente que Luís nutria pelas estantes milimetricamente organizadas de Martin era uma realidade.

Adriana riu e alfinetou:

— Bem, tu pode sempre pedir umas dicas de organização pra Verônica. Ela me parecia bem... disposta.

As pontas das orelhas dele ficaram rubras, e Adriana riu com mais vontade. Quanto mais ele pedia para que ela parasse, mais ela ria. O celular de Adriana tocou, e sem olhar para o identificador, ela atendeu com a risada ainda presa aos lábios.

— Se divertindo, Adri?

A voz profunda e amistosa que veio do outro não conseguiu arrancar o riso de Adriana, que tentou se conter sem sucesso. Do outro lado da linha, Silveira, o delegado, riu também.

— Tirando com a cara do Luís como sempre, chefe — respondeu ela, se ajeitando no banco. Controlando-se, prosseguiu: — Tudo certo?

— Sim, sim — disse Silveira num tom cansado, e ela imaginou-o atrás de sua mesa carcomida, perdido entre a papelada dos casos. — Liguei pra saber do caso. Alguma novidade?

— Nada — informou Adriana. — Falamos com algumas pessoas, mas estamos no escuro sem os dados da Perícia.

Silveira ficou em silêncio, e Adriana imaginou-o coçando a bochecha e erguendo as sobrancelhas para o porta-retrato que guardava sua fotografia de casamento já amarelada pelo tempo. Obedientemente, Adriana esperou.

Desde que ela entrara para a corporação, fora, de certa forma, adotada pelo delegado de meia-idade. Silveira tomou Adriana debaixo de suas asas e, debaixo de seus olhos treinados, transformou-a numa policial de verdade. Ele ensinou-a como se aproximar de um suspeito, como ler as palavras das pessoas e como agir em situações extremas. Silveira deu-lhe o presente da experiência, e Adriana era grata a ele por tudo.

E depois de todas as dificuldades que vieram com o caso Valentina, Adriana só tinha a agradecer pela existência de Silveira e Marta, sua mulher.

— Sobre aquela folga, Adri... — começou ele. Silveira suspirou. — Foi uma ordem de cima. Não tive muito o que fazer contra a palavra do secretário. Sinto muito.

Adriana piscou algumas vezes, abrindo a boca. Apesar de boa pessoa, Silveira nunca se desculpava por cumprir seu dever, nunca. Os dois ficaram em silêncio na linha, completamente sem graça. Ele pigarreou, provavelmente coçando a sobrancelha hirsuta, e Adriana apertou o celular contra a orelha, o rosto corado.

— Sem problemas, chefe. Ossos do ofício, né?

— Acho que sim. — Ele pigarreou outra vez e trocou de assunto. — Falei com o Dante sobre o celular de Érica e a invasão ao quarto. Esses policiais pensam que tão lidando com o quê? Enfim, tô levantando algumas informações sobre a vida pessoal de Érica, e liguei pra avisar sobre os jornalistas. Eles tão loucos por aqui, e acho que Gregório...

— Ele já entrou em contato. — Ela riu.

Silveira suspirou.

— Que novidade. Gregório fareja essas coisas de longe. — Ele fez uma pausa e, num tom grave, arrematou: — Aqui na cidade não se fala de outra coisa. Nenhum jornalista ainda?

— A gente chegou ontem, Silveira.

— Nunca é cedo demais pra esses abutres, Adri. — Silveira suspirou outra vez. — Me mantenham informado sobre tudo, ok?

— Digo o mesmo. — Adriana coçou o nariz, ignorando o olhar curioso de Luís, que prestava mais atenção nela e na ligação do que no trânsito. Irritada, ela fez um gesto para que ele olhasse para frente, e disse: — Valeu, chefe.

— Sem problemas, menina.

Ele encerrou a chamada, e ela olhou para Luís, que parecia prestes a explodir de curiosidade. Adriana riu, balançando a cabeça e devolvendo o celular ao bolso da traseiro. Luís ergueu as sobrancelhas, fazendo a curva e entrando na rua principal de Lisiantos. Ela explicou brevemente a conversa, e suspirou quando terminou.

— Vamos voltar à DP. Dante e os outros talvez tenham novas informações.

Luís assentiu, mirando-a brevemente com seus olhos castanhos brincalhões.

— Trabalho interno pelo resto da tarde, então?

— Trabalho interno pelo resto da tarde. — Ela suspirou, deixando os ombros caírem.

— Que comece a diversão.

Luís ganhou a rua, e Adriana ligou o rádio, tentando afastar o pensamento de Pedro, mas sem sucesso.

---

Ela apagou a luz e saiu do banheiro, massageando o pescoço após uma ducha quente e revigorante. Depois de passar horas debruçada sobre as anotações dos colegas, Adriana sentia-se grata por retornar ao silêncio do quarto do hotel, onde seus pensamentos podiam respirar em paz.

O clima frenético da DP sugara o resto de energia que ela ainda possuía após a conversa com Martin e Pedro. Dante não conseguira nada de novo com a maldita camareira — que insistia em afirmar que não vira o rosto do homem encapuzado — e os outros, encabulados pela falta de resultados interessantes, limitaram-se a murmurar pedidos de perdão ou simplesmente dar de ombros.

Érica Baldini, nos seis meses em que desfrutara da companhia dos habitantes da cidade, não havia infringido a nenhuma lei e muito menos criado desavenças. Todos os pedestres e donos de estabelecimentos que a avistaram ou falaram com Érica diziam gostar dela, de sua curiosidade e de sua mania engraçada de anotar tudo num caderninho. Todos, sem exceção, ficaram desolados com a morte dela.

A única que não se deu por vencida foi Miranda. Indo de um lado a outro na DP, a jovem policial lia e relia as próprias anotações, comparando-as aos depoimentos sobre Érica. Enquanto os outros pareciam querer se render e deixar o caso seguir, Miranda fazia buscas no computador, e pedia o auxílio de Ricardo, o policial com a cicatriz, para imprimir notícias sobre a morte da jornalista. Ela procurava nas entrelinhas das próprias anotações um caminho, uma explicação para o assassinato brutal de Érica.

Miranda fazia Adriana se lembrar de si mesma quando iniciou na polícia, daquela gana que todo novato tinha de mostrar serviço. Miranda olhava para as mesmas imagens há quinze minutos, como se pudesse ver uma solução escondida, a chave do enigma que cercava aquela morte tão cheia de peculiaridades. Quando Adriana tocou o ombro da jovem, ela simplesmente suspirou.

— Algo não bate — dissera ela, balançando a cabeça para a fotografia sorridente de Érica e as manchetes do assassinato. — Todos gostavam de Érica, todos diziam que ela parecia uma boa pessoa. Algo não bate.

Adriana esticou-se na cama, pensando nas palavras de Miranda. Algo não bate. Os habitantes de Lisiantos, de acordo com ela, eram apenas elogios para Érica. A florista, o atendente da padaria, Rosa e até o padre concordavam que a jornalista era uma boa pessoa. Que nada em sua conduta justificaria um final tão brutal como aquele.

O que levaria uma pessoa boa como Érica a terminar com o corpo completamente esfolado, jogado numa cova semiaberta e com pétalas de rosa formando um coração macabro ao seu redor?

Adriana fechou os olhos com força, querendo esquecer que estavam, invariavelmente, num beco sem saída. Ela relaxou na cama, esperando que o sono chegasse, mas foi alertada pela vibração do celular em cima da mesinha de cabeceira, indicando o recebimento de uma nova mensagem. Afoita com a possibilidade de ser Otávio, Adriana agarrou o celular, trincando a mandíbula ao ler outra das mensagens automáticas da operadora.

Nenhuma notícia de seu namorado desde ontem. E lá se vai mais um relacionamento. Adriana suspirou, devolvendo o celular à mesinha de cabeceira e tentando não pensar no fato de que assim que voltasse a Porto Alegre, seu namoro com Otávio não duraria mais um mês. O relógio digital marcava quase uma hora da manhã quando ela afundou no travesseiro fofo, querendo parar de pensar nem que fosse por alguns segundos e dormir profundamente.

Mas a batida característica na porta não permitiu que a tão desejada noite de sono se iniciasse. Porra, justo agora? Com o passo lento, já ciente de quem seria seu visitante, Adriana abriu a porta com uma careta. Luís encarou-a do corredor bem organizado do hotel, usando uma camiseta cinzenta, calças de abrigo e uma expressão ansiosa. Os olhos dele viajaram pelo pijama curto dela, e Adriana suspirou, apertando a maçaneta da porta.

— O que foi agora, Luís?

— Eu não consigo dormir, e acho que é uma ótima hora pra falarmos sobre o caso. — Ele passou por ela sem ser convidado e mirou-a do meio do quarto. Luís sorriu com o canto dos lábios. — Ou minha parceira estaria incrivelmente ocupada para tal?

— Eu planejava dormir. — Ela cruzou os braços quando ele se deitou na cama, afundando as palmas das mãos no colchão. — O que tu tá fazendo?

— Por que o teu colchão é melhor do que o meu? — perguntou ele, franzindo o cenho. — Que injusto. Pensei que todos os quartos fossem iguais.

— Luís — repreendeu ela.

— Certo. Já entendi. — Ele se ajeitou na cama. — Mas o problema é que Dante tá na avó dele, e eu tô sem sono e sem nada pra fazer nesse fim de mundo. Tu não adora trabalhar? Tô te dando uma oportunidade de ouro, princesa.

Em vez de aceitar dividir o quarto com Luís no hotel, Dante preferiu passar as noites na casa de sua avó, em Gramado, distante alguns minutos de Lisiantos. Ela sabia que a escolha tornava a rotina de Dante mais cansativa, entretanto era preferível à dividir o quarto com a tagarelice de Luís, que não parava por um segundo. Um. Segundo.

Adriana olhou para o mostrador do relógio, que marcava uma hora da manhã em ponto, e suspirou. Apontando o dedo para o parceiro, disse:

— Só os pontos principais.

— Só os pontos principais — concordou ele.

Ela se sentou ao lado dele na cama, apoiando as costas na cabeceira e recapitulou:

— Érica vem pra cá pra escrever um livro sobre uma das famílias mais antigas da região. Começa a pesquisar e conversar com as pessoas. Então, na sexta-feira à noite, é encontrada morta numa cova semiaberta, com pétalas de rosa formando um coração ao redor do corpo, um livro e, pra coroar, com a pele toda arrancada. Confere?

— Confere — respondeu Luís.

— O coveiro viu o possível assassino cavando a cova, mas o cara fugiu quando percebeu que não tava sozinho. O possível assassino...

— Que era um anjo da morte ou algo do tipo, segundo o coveiro — interrompeu ele.

Adriana franziu o cenho para o parceiro. Luís deu de ombros.

— Vamos deixar a parte sobrenatural de fora, ok? — pediu ela num tom sarcástico. — O que importa é que possivelmente o homem que tentou enterrar Érica é o mesmo que invadiu o quarto dela à procura do diário.

— Isso é muito estranho — afirmou Luís. — A Perícia não encontrou o diário, mas essa... pessoa sabia exatamente onde tava. Tanto que foi rápida o suficiente pra entrar no quarto, pegar o diário e deixar só umas páginas pra trás. Páginas que incriminavam Pedro.

— Uma pessoa? — Adriana franziu o cenho para ele. — Tu mesmo disse que uma mulher não conseguiria carregar o corpo de outra, que era pura física. Que mudança é essa de opinião agora?

— Quem foi a primeira pessoa a nos falar sobre o diário?

Ela ficou em silêncio, mirando os olhos castanhos de Luís. De repente, no silêncio do quarto, soube a resposta. Puta que pariu. Com o coração batendo acelerado, o nome veio fácil aos lábios de Adriana:

— Teodora Albuquerque. — Ela umedeceu os lábios com a ponta da língua. Excitada com aquela hipótese, virou-se para Luís. — Mas a camareira disse que era um homem. Um cara alto, encapuzado. E fora que Teodora tem um álibi.

— Tem?

— A gente tava conversando com ela quando invadiram o quarto de Érica, se esqueceu? — disse Adriana. Luís assentiu lentamente, vendo o furo daquela suposição. — Ela não teria como sair da vinícola, roubar o diário e sair antes da gente chegar. Nem que fosse a Mulher Biônica.

— Mas como a camareira pode saber que era um cara se ela não viu o rosto? — rebateu Luís. Inconformada, ela balançou a cabeça. — E o coveiro com aquele papo de anjo da morte... poderia muito bem ser uma mulher.

— Certo, vamos deixar essa parte em aberto — retrucou ela, finalmente cedendo. — No almoço, descobrimos que Érica esqueceu o celular e teve um incidente com Martin. O que tu acha que rolou?

— Um incidente pode ser qualquer coisa — respondeu ele, coçando a barba por fazer. — Mal posso esperar por esse jantar com a Rosa.

— Digo o mesmo. Ela parecia gostar de Érica. Assim como o Sr. Lafue e todo mundo da cidade. — Adriana suspirou, descansando a cabeça contra a cabeceira da cama. — O problema é a forma como Érica foi morta. Alguém só faria aquilo com um motivo muito bom.

— E por enquanto todos têm um motivo — disse Luís. Quando ela se virou para ele, confusa, ele enumerou: — Teodora e Martin pra proteger algum segredo de família. Pedro num acesso de fúria passional, se é que era amante de Érica. O Sr. Lafue pra tentar encobrir algo que Érica tenha descoberto. Verônica por acreditar que Martin transava com Érica. A lista é extensa.

Adriana sorriu com o canto dos lábios. Quando Luís não entendeu, vincando as sobrancelhas, ela deixou uma gargalhada sabichona escapar.

— Não acho que Verônica mataria Érica por causa disso. Ela me pareceu ter uma opinião bem... clara sobre casos extraconjugais.

Luís revirou os olhos, as pontas das orelhas ficando rubras outra vez. Adriana riu com o desconforto do parceiro, lembrando-se do decote acentuado de Verônica e de seus toques inoportunos. Sem graça, Luís retrucou:

— Eu nunca me senti tão desconfortável em toda minha vida. Muito obrigado.

— Foi só uma cantada — rebateu ela. — Leva na esportiva, gostosão. Verônica certamente levaria, já que ela é uma ótima amazona e tem paixão por montar.

— Eu te odeio, Adriana. De verdade.

Os dois se olharam e riram, balançando a cabeça. O recreio havia terminado. Após um breve silêncio, ela continuou:

— E tu chegou a ver os chupões no pescoço do Pedro?

— Não sei se eram chupões. Tavam mais com cara de... batidas.

Adriana virou o rosto para Luís, mirando-o com seu melhor olhar de sério mesmo, cara? Ele pareceu confuso com o silêncio ultrajado dela.

— Claro. Quem sabe ele não passou uma tarde muito prazerosa batendo o pescoço na maçaneta da porta? Tu é inacreditável, Luís.

— Não gosto de criar falsas teorias, ok? — rebateu ele. Com um olhar de relance, Luís perguntou: — E tu acha que a autora desses chupões foi a Érica?

— Ainda não sei o que pensar — admitiu ela. — Talvez sim, ou talvez Pedro tenha uma namorada. Vai saber. Ainda temos muitas variáveis na história sem os dados da Perícia.

Luís assentiu outra vez. Ficaram em silêncio, ouvindo os sons de Lisiantos. Fora um ou outro carro passando na rua de paralelepípedos, não havia nada que perturbasse a paz da serena cidadezinha. Nenhum som, nada. Por um breve momento, Adriana sentiu falta de Porto Alegre, dos carros tocando música alta na madrugada, dos adolescentes bêbados gritando e dos cães latindo.

Luís riu, coçando os olhos. Seus cabelos castanhos estavam eriçados do lado direito, deixando-o parecido com um adolescente que acaba de acordar. Ele deu de ombros.

— Mas que o guri tava nervoso com a nossa conversa, isso tava. — Luís riu. Adriana balançou a cabeça, deixando uma risada baixa escapar. Ele encolheu os joelhos e deu de ombros, mirando o frigobar. — Achei isso estranho, na verdade. Drogas, talvez?

— Acho que não. — Ela também encolheu os joelhos, abraçando-os. Uma brisa fria entrou pela janela, fazendo os braços e as pernas nuas de Adriana se arrepiarem. Ela riu. — Uma conversa com a polícia sempre vai ser intimidadora pra quem tá nos seus vinte anos.

Ele riu, covinhas aparecendo em seu rosto mal barbeado.

— Não pra ti. Se eu bem me lembro, na faculdade tu adorava conversar com os policiais quando saíamos pra balada.

— Eram as únicas pessoas sóbrias o suficiente pra manter uma conversa normal — se defendeu ela. — E as únicas que não tavam vomitando o tempo inteiro.

— Tu sempre foi diferente, né, Adriana?

— Não sei se diferente é a palavra. — Ela riu. — Talvez eu esteja mais pra... esquisita?

— Não. Acho que tu tá mais pra fascinante, mesmo.

Os olhos dela encontraram os dele. Outro silêncio preencheu o quarto, e Adriana engoliu em seco. O mesmo clima que surgira na livraria do Sr. Lafue se fazia presente outra vez. Os olhos castanhos de Luís não abandonavam os dela, como se dissessem você sabe o que eu quero dizer. E ela sabia. Como sabia.

Exatamente como daquela outra vez, há tantas eras atrás, estavam os dois na cama, esperando um pela reação do outro como numa partida de xadrez.

Adriana se levantou da cama e abriu a porta. Com as mãos na cintura e o rosto corado, disse:

— Certo. Chega de papo furado. Hora de ir dormir.

— Pensei que tu nunca fosse me convidar.

— Luís. — Ela lançou o melhor olhar de cuidado que conseguiu, ao que ele simplesmente riu, erguendo as mãos. — É sério.

— Pelo menos ninguém pode dizer que eu não tentei.

Luís deu de ombros, mas se voltou antes de sair. Aproximou-se lentamente dela, seus passos abafados pelo carpete cinzento do quarto. Quando ele estava próximo o suficiente para que ela sentisse seu perfume, Luís a encarou, inclinando-se como se fosse contar à parceira um segredo que somente os ouvidos dela entenderiam. Adriana semicerrou os olhos, e ele ergueu as sobrancelhas antes de sussurrar:

— Nenhuma chance de tu trocar de quarto comigo? O teu colchão é muito melhor do que o meu.

Ela riu, relaxando finalmente. Adriana deu dois tapinhas no rosto dele, apertando a maçaneta. Como uma mãe que encerra uma conversa com um filho desobediente, ela disse:

— Boa noite, Luís.

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