04.

Foi difícil para Adriana acreditar nos próprios olhos quando Luís entrou na pequena estradinha de terra que desembocava à Vinícola Albuquerque.

O caminho de terra que cortava os vinhedos levava a uma das maiores casas que Adriana já vira. Em estilo colonial, o casarão que abrigava os negócios da família Albuquerque parecia saído de um filme de época, com suas janelas brancas e telhas avermelhadas. Adriana desceu do carro com o olhar encantado por aquele clima antigo, pelas escadarias de pedra que levavam à entrada principal do casarão e pelas vinhas que se estendiam ao redor da propriedade. Era como entrar direto em outro tempo, uma realidade perdida num passado distante.

Mas em vez de serem recebidos por uma dama em roupas antigas, viram uma moça de cabelos crespos, saia negra e blusa social branca aparecer no topo da escadaria. Segurando uma pasta com o monograma dourado da Vinícola Albuquerque na capa e um pequeno walkie-talkie, a moça desceu os degraus com uma expressão que misturava irritação e eficiência.

— Os investigadores de polícia? — perguntou ela. Luís assentiu, fazendo a jovem apertar um botão no walkie-talkie e dizer: — Obrigada, Hermes. Queiram me acompanhar, por favor.

Com um sorriso profissional, a moça virou as costas e subiu as escadas. Os dois policiais a seguiram de perto, e quando ela abriu as portas do casarão, Adriana se viu surpreendida pela brusca mudança de ambiente.

O interior do casarão não guardava nada do clima colonial do exterior. Exceto por detalhes de rodapé e chão, todos os móveis e objetos ali eram modernos, cromados. Uma recepcionista atendia o telefone atrás de um balcão arredondado, em frente a um grande monograma da Vinícola Albuquerque. Os sapatos de salto da moça que os acompanhava voltou a fazer seu clack clack contra o piso de madeira antiga, guiando-os por um corredor onde as paredes eram repletas de prêmios e condecorações recebidos pela vinícola.

— Sinto muito por Hermes — disse a moça, mas era claro que, na verdade, não sentia. Adriana observou como o nariz dela se enrugou ligeiramente antes de dizer: — Nossos seguranças não são autorizados a permitir a entrada de... de visitantes sem hora marcada.

Logo que chegaram em frente à vinícola, Hermes, o segurança que mais se parecia com um gorila halterofilista do que com um ser humano, barrou-os na entrada. Nem Adriana e Luís mostrando os distintivos foi o suficiente para intimidar o funcionário, que esperou por uma ordem superior para permitir que os dois seguissem pela estrada de terra que levava ao casarão. Luís, é claro, não estava nem um pouco feliz com a situação.

— A polícia não precisa marcar hora — retrucou ele, imediatamente trazendo um sorriso contido aos lábios de Adriana. — Ainda mais durante uma investigação de homicídio.

De repente a moça parou diante de portas de vidro temperado e sorriu com desdém, abraçando-se à pasta da empresa com autoridade. Luís sustentou o olhar dela com a mandíbula cerrada. Como se estivesse se divertindo com a irritação impertinente de um menino, a jovem sorriu e abriu a porta.

— A Sra. Albuquerque virá encontrá-los em instantes. Fiquem à vontade.

Assim que eles entraram, ela fechou a porta e sumiu. O único som que ouviram foi o clack clack dos sapatos da jovem que não demoraram a diminuir e, por fim, desaparecer. Luís deixou o ar escapar pelo nariz antes de dizer:

— Não se fazem mais funcionários como antigamente.

Adriana riu, balançando a cabeça e se virando para o escritório de Teodora Albuquerque.

Diferentemente do resto do casarão, onde tudo possuía a necessidade assustadora de demonstrar profissionalismo, o escritório de Teodora era um ambiente aconchegante, com estantes de madeira escura recheadas de livros sobre vinhos, uma sofá de couro marrom, tapetes no chão, uma mesa de vidro com o computador e algumas fotos emolduradas em porta-retratos antigos. Adriana deu uma volta despreocupada pela sala enquanto Luís observava os livros. Então, ela se deteve em frente à mesa, franzindo o cenho.

Enquanto o computador mostrava um protetor de tela com a marca refinada da Vinícola Albuquerque, a atenção da investigadora se fixou num pequeno porta-retrato em cima da mesa. Na fotografia, uma mulher de meia-idade e cabelos negros, era abraçada por dois rapazes mais jovens, um de terno e o outro de camiseta. Os três olhavam para a câmera com um sorriso alegre, e Adriana julgou estar diante de Teodora e de dois jovens que poderiam ser seus filhos.

O nariz e os olhos entregam todo mundo, Adriana pensou, avaliando a fotografia com um sorriso. Ela se lembrou do pai, de como todos diziam que ela herdara seus olhos verdes brilhantes, e a memória aqueceu seu peito. Ela devolveu o porta-retrato à mesa quando a porta de vidro foi aberta. Luís se afastou da prateleira, e a investigadora ergueu o rosto.

A Teodora Albuquerque que aparecia diante deles era a mesma da fotografia, mas Adriana não conseguiu encontrar traços de seu sorriso despreocupado quando pôs os olhos nela. Enfiada num terninho branco elegante, com os cabelos negros soltos e a mão repleta de anéis descansando na maçaneta da porta, Teodora parecia mais uma representação da mulher da fotografia do que o exemplar verdadeiro.

Como se os notasse pela primeira vez, ela piscou, seus olhos verdes opacos indo de Luís à Adriana lentamente. Havia algo que diferenciava a Teodora real da Teodora da fotografia, algo que, à primeira vista, a investigadora não conseguia precisar ao certo. Um curto silêncio se seguiu, interrompidos apenas pelo clack clack dos saltos da moça do lado de fora da sala.

— Sra. Albuquerque? — Luís estendeu a mão, quebrando o silêncio. — Sou Luís Machado e esta é minha parceira, Adriana Souza. Somos investigadores da Delegacia de Homicídios de Porto Alegre e estamos aqui pra conversar sobre Érica Baldini.

Completamente aérea, Teodora franziu o cenho como se Luís falasse uma língua estrangeira que ela não compreendesse. Com um sorriso cansado, ela apertou a mão que lhe era estendida e dirigiu um cumprimento de cabeça educado à Adriana.

— Muito prazer — disse Teodora, sua voz tranquilizadora. Ela fechou a porta e indicou o sofá e as cadeiras de sua mesa. — Sentem-se, por favor. Sinto muito pelo segurança e por fazê-los esperar. Não era minha intenção.

Desarmado por aquela gentileza inesperada da mulher mais rica da cidade, Luís piscou, trocando um olhar ligeiro com Adriana. Ela sorriu de volta e ambos se sentaram de frente para Teodora, separados apenas pela mesa de vidro. Teodora sorriu outra vez para eles.

— Aceitam um café ou um chá?

— Não, muito... obrigado — agradeceu Luís. Sem graça, ficaram em silêncio novamente. Adriana deixou os olhos passearem pelo rosto de Teodora, que os fitava como se tivesse todo o tempo do mundo nas mãos. Luís pigarreou e disse: — Isso é apenas uma conversa informal, Sra. Albuquerque. Por estarmos investigando o caso, e por sua proximidade com a vítima, gostaríamos de esclarecer algumas informações, sim?

— Claro. O que desejam saber?

Fácil demais, Adriana pensou, e nem precisou olhar para Luís para saber que ele sentia o mesmo. Os olhos cansados de Teodora os incentivava a continuar, dispostos a responder a qualquer questão que surgisse. Outro silêncio se seguiu, e Adriana sentiu-se mal pelo perfil que ela e Luís criaram para Teodora Albuquerque no carro, enquanto dirigiam até a vinícola.

Deve ser só outra dondoca louca que trata mal os funcionários, Adri, Luís dissera, e ela concordara sem contestar. Por mais triste que fosse, a realidade era que ninguém ficava rico como os Albuquerque ou os Camargo de Sá sendo gentil. Ninguém construía um império daquele tamanho sem criar alguns inimigos pelo caminho.

A postura de Teodora surpreendeu Adriana e desarmou Luís, que viera pronto para rebater todos os comentários esnobes da diretora da Vinícola Albuquerque. Ficaram em silêncio, e antes que a quietude se alongasse mais, Adriana sorriu brevemente para a mulher sentada em sua frente e perguntou:

— A senhora conhecia Érica Baldini?

Teodora pareceu surpresa pela pergunta, erguendo as sobrancelhas negras por um momento. Sem titubear, respondeu:

— Sim. Érica escrevia a biografia de nossa família a mando de minha mãe. Era uma jovem verdadeiramente encantadora. Não merecia o fim que teve.

Adriana assentiu, simpatizando com a mulher. Seus olhos opacos fitaram o fundo da alma da investigadora, que percebeu ali uma melancolia profunda que não combinava com a posição que Teodora ocupava.

— A biografia que Érica escrevia — interveio Luís gentilmente. — Pode nos falar sobre ela?

Teodora Albuquerque deixou uma risada em forma de sopro escapar pelo nariz reto. Com um sorriso contido, ela uniu as mãos sobre o tampo de vidro da mesa.

— A ideia foi de minha mãe, Vitória Albuquerque — disse ela, como quem pede desculpas por algo que não se pode corrigir. — Somos uma família antiga, e como neste ano a vinícola completa oitenta anos, minha mãe decidiu contratar alguém pra escrever nossa história. Entrevistamos alguns candidatos, mas algo em Érica nos chamou atenção.

— Saberia nos dizer o quê? — perguntou ele.

Adriana trocou um breve olhar com Luís, que assentiu para Teodora, incentivando-a a continuar. A mulher simplesmente deu de ombros, seus olhos verdes novamente perdidos em algum canto da sala. Os três ficaram em silêncio, esperando pelas palavras de Teodora. Por fim, ela sorriu da maneira triste e respondeu:

— Ela parecia realmente se importar com o trabalho. Érica, diferentemente dos outros, não ficou impressionada pelo conjunto de porcelana refinado ou pelo tamanho de nossa casa. Ela queria... ela queria contar a história, entendem?

O corpo esfolado de Érica brilhou nos pensamentos de Adriana, que engoliu em seco. O clack clack dos sapatos de salto da moça que os atendera voltou a encher a sala, sumindo segundos depois. Teodora os encarou, esperando pela próxima pergunta.

— A senhora chegou a ver algum resultado do trabalho de Érica? — perguntou Luís, olhando para Adriana, que diante de Teodora sentia-se incapaz de formular perguntas. — Algum rascunho do livro ou algo do gênero?

— Creio que não — respondeu ela, franzindo o cenho como quem tenta se lembrar. — O trabalho na vinícola não me deixa muito tempo livre, então Érica tratava de todos os pormenores com minha mãe. Érica me entrevistou algumas vezes, visitou a vinícola e anotava tudo num diário de capa azul.

— Um diário de capa azul? — perguntou Adriana.

— Sim — respondeu Teodora, sorrindo outra vez. — Ela carregava aquele diário para todos os lugares. Apesar de se recusar a se hospedar em nossa casa, Érica trabalhava muitas vezes em nossos jardins, escrevendo no diário. Sempre achei... curioso alguém jovem como ela preferir papel e caneta às facilidades do computador.

— Se a senhora visse esse diário certamente poderia reconhecê-lo? — perguntou Luís, ao que Teodora assentiu. — Saberia dizer que tipo de informações Érica mantinha ali?

— Infelizmente não, mas ela o carregava a todos os lugares.

— E novamente sobre a biografia — continuou ele. — O que exatamente seria contado?

— Acredito que minha mãe possa responder com mais propriedade — respondeu Teodora, seu sorriso apologético novamente se fazendo presente. — Mas acredito que seria um trabalho focado na história da família e da vinícola. Desde a chegada de nossos antepassados à Lisiantos até os dias de hoje, com a produção do vinho e seu crescimento na região.

— A biografia certamente incluiria a família Camargo de Sá?

Adriana não pretendia soar tão direta, mas não pôde evitar. Teodora Albuquerque enrijeceu na cadeira, e seu semblante se alterou num átimo. Seus lábios, revestidos por um batom de cor neutra, se apertaram ligeiramente e seu maxilar se contraiu. Adriana percebeu que Teodora entrava em ebulição silenciosamente, escondendo suas verdadeiras emoções por trás de um sorriso rígido.

E ela sempre acreditou ser perigosas as pessoas que possuíam o dom de esconder o que verdadeiramente sentiam. Teodora umedeceu os lábios, sorriu de uma maneira tensa e disse:

— Acredito que sim. Os Camargo de Sá são... uma importante família da região.

— Eles competem diretamente com a família Albuquerque pelo mercado de vinhos, não?

Luís fez a pergunta num tom casual, deixando implícito muito mais do que gostaria. Adriana trocou outro olhar com ele ao perceber que Teodora já não sorria mais. Seus olhos verdes tornaram-se irascíveis numa fração de segundo, tão frios quanto o saguão de entrada da Vinícola Albuquerque.

— Entende algo de indústria, Sr. Machado?

— Sou apenas um policial, Sra. Albuquerque — respondeu Luís, com falsa humildade. — Entretanto, estou louco para ouvir o que a senhora tem a dizer.

— Num mercado tão pequeno é de se esperar que haja certa... animosidade entre a concorrência. — Ela sorriu, unindo as mãos por cima da mesa. Uma aliança decorada com um filete de pedra preciosa marrom brilhou em seu anelar esquerdo. — Os Camargo de Sá são nossos adversários há bastante tempo. Num ambiente competitivo, a animosidade pode ser bem-vinda às vezes.

Luís sorriu, fitando Teodora Albuquerque com uma expressão divertida. Adriana percebeu o olhar frio que a dona da Vinícola Albuquerque dirigia a seu parceiro, e aproveitou para perguntar:

— A senhora conhece o Sr. Lafue?

— O livreiro francês? — Teodora questionou num tom irritado, que se abrandou a seguir. — Sim, já visitei a loja dele algumas vezes. Minha mãe é fascinada por exemplares antigos.

— Érica alguma vez falou sobre ele?

— Não que eu me lembre — respondeu Teodora. Com um sorriso curto, disse: — Se os senhores não desejam mais nada, eu...

— A senhora tem uma bela família — interrompeu Adriana, apontando para o porta-retrato onde Teodora sorria entre os dois homens. Ela parou, piscando para a investigadora, de repente pega de surpresa pela mudança do rumo do conversa. — São seus filhos?

— Sim. — Um sorriso cansado tomou conta de seus traços. Olhando para a fotografia com o característico carinho de mãe, Teodora continuou:— Estefano, meu filho mais velho, e Mário, meu filho mais novo.

Adriana assentiu, sem tirar os olhos da interlocutora. Ela sorriu carinhosamente para o porta-retrato, fazendo menção de pegá-lo. Quando a manga de seu blazer caro subiu um pouco por conta do movimento, Adriana vislumbrou algo que fez seu sangue congelar. No pulso direito de Teodora, uma cicatriz antiga se fazia presente.

Percebendo o olhar fixo da investigadora, Teodora desistiu de pegar o porta-retrato e escondeu as mãos embaixo da mesa, puxando discretamente a manga do blazer para baixo. As duas trocaram um olhar pesado e, por fim, Teodora se ergueu da cadeira, encerrando a conversa. Adriana e Luís fizeram o mesmo, encarando-a.

— Se era só isso, investigadores...

— Apenas mais uma coisa, na verdade — respondeu Adriana com um sorriso. As narinas de Teodora se inflaram brevemente. — A senhora poderia anotar o endereço da sua residência? Gostaríamos de falar com sua mãe o quanto antes.

Teodora pegou a caneta — com a mão esquerda e os lábios apertados — e anotou rapidamente o endereço num bloco, arrancando a página e entregando-a à policial. Adriana sorriu, erguendo o papelzinho.

— Muito obrigada pelo seu tempo, Sra. Albuquerque. Vamos, Luís?

Os três trocaram um sorriso polido e deixaram Teodora com os próprios pensamentos.

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— Então, o que tu achou?

Enquanto avançavam pela estradinha de terra em direção à saída da vinícola, Adriana deixou que a pergunta de Luís se alastrasse pelo carro. Com olhadelas discretas para ela, ele seguiu dirigindo e dividindo sua atenção entre Adriana e o caminho irregular que, mais cedo ou mais tarde, daria nos portões de ferro da vinícola.

— Foi bem diferente daquilo que a gente imaginava — concluiu ela, admirando as vinhas que passavam lentamente do lado de fora do carro. Adriana não sabia como dizer aquilo a Luís, então preferiu o jeito direto, ao melhor estilo arranca Band-Aid: — Teodora já tentou se matar.

Luís franziu tanto o cenho que se pareceu com um daqueles desenhos japoneses horrendos que Bárbara, sua filha, tanto gostava. Ele abriu a boca diversas vezes, mas desistiu de falar em todas elas. O ar-condicionado roncou baixinho, embalando o silêncio dos dois até atingirem os portões da vinícola. Luís apertou o volante, ainda confuso, e começou:

— Como tu...?

— Ela tem uma cicatriz no pulso direito — informou Adriana, ignorando a expressão surpresa do parceiro. Luís dividia a atenção entre ela e a estradinha de terra que levava de volta ao centro de Lisiantos com o rosto confuso, como se lhe dirigisse uma pergunta. A irritação queimou na garganta de Adriana e ela disparou: — Ninguém tem uma cicatriz daquelas se já não tentou se matar, Luís. Vai por mim. Sei do que tô falando.

Ele não disse nada, entretanto trincou a mandíbula e dirigiu silenciosamente por alguns metros. Adriana virou o rosto para o outro lado e assim ficaram, separados pelo único assunto em que nunca tocavam.

Amigos de longa data, os dois falavam sobre tudo. Adriana aprendera, desde que conhecera Luís, o aluno bolsista que auxiliava na organização da biblioteca, a confiar nele. Era fácil gostar dele, que sempre tinha uma palavra amiga, uma solução para os problemas. Até para questões impossíveis Luís encontrava uma solução, mesmo que quase sempre elas envolvessem a famosa frase bem, vamos encher a cara e deixar as coisas rolarem. Adriana sentia-se confortável para trocar confidências com ele, para falar sobre as manias irritantes de Otávio, rir sobre as extravagâncias de Bárbara e seu violino, beber, ficar de plantão na DH e trabalhar. Ela gostava da intimidade que tinha com Luís.

Mas havia aquele assunto, o único sobre o qual nunca falavam e que nunca falhava em separá-los. Luís não trazia à tona o que Adriana tentara fazer logo após o fechamento do caso Valentina, e Adriana, tampouco desejosa de reviver aqueles momentos, ficava grata por aquilo. Era como se dividissem um segredo, como se fossem cúmplices de um crime onde a vítima não era bem definida, bem clara.

Adriana se lembrava dos meses seguintes ao caso Valentina como um buraco negro. Todos os dias e noites eram iguais e sem graça, todos os dias e noites eram uma repetição de todas as horas passadas. Foi assim até aquela noite onde ela quis realmente acabar com tudo, sumir para sempre. Qual era o sentido, afinal? Então veio a ideia, e com ela o sangue, Luís e o gosto salgado de lágrimas e o cheiro pungente de bandagens e hospital.

Adriana engoliu em seco e encolheu os pés nos banco do carona como a protagonista adolescente de um filme dos anos 80. Luís, sem saber ao certo o que dizer, não disse nada. E muito menos reclamou por ela estar com os pés no couro hidratado do banco.

Quando as casinhas de Lisiantos tornaram-se constantes e os prédios antigos ficaram maiores, Luís olhou-a de relance e suspirou, apertando o volante. Então, antes que ela pudesse perceber, ele parou o carro. O som do motor esfriando fez Adriana se virar para o parceiro, que olhava para frente.

Nas ruas, com suas bandeirinhas roxas e brancas tremulando entre postes antigos, pedestres passeavam e riam, entrando em lojinhas ou simplesmente tomando chimarrão ao sol. Estavam em frente a uma confeitaria, e o cheiro de sonho de creme atiçou a vontade dela. Finalmente, Luís virou o rosto. Seus olhos castanhos brilharam por um momento.

— Eu não tava duvidando de ti antes — disse ele. — Fiquei surpreso. Só isso. Esqueço que tu é boa observadora.

Ela mirou o nariz reto de Luís, seus olhos castanhos profundos, a barba por fazer e o cabelo desarrumado, sentindo-se, de repente, incrivelmente idiota. Adriana baixou os olhos e balançou a cabeça.

— Tudo bem, eu... eu não quis ser grossa, eu só...

— Tudo bem, Adri — disse ele, sorrindo. Luís segurou o pulso esquerdo dela, exatamente em cima da cicatriz e olhando-a nos olhos. O calor dos dedos dele acalmou Adriana, que conseguiu formar um breve sorriso cansado. — Vamos comer torta?

— Torta? — Ela ergueu as sobrancelhas e riu com aquela mudança súbita de clima. Luís a acompanhou no riso, ainda segurando seu pulso. — Tá quase na hora do almoço, Luís.

— Toda hora é hora de torta. Vamos lá. — Ele se desvencilhou dela e puxou a chave da ignição, checando se a carteira estava no bolso traseiro das calças. — Pronta?

Adriana ia responder, mas seu celular vibrou. Luís fez uma careta.

— Se for aquele Gregório outra vez...

— Não. — Ela mostrou o visor para Luís, que reconheceu a foto de Dante com uma expressão preocupada. Adriana atendeu, franzindo as sobrancelhas. — Tudo bem, Dante?

— Já voltaram da vinícola?

O tom direto daquela pergunta fez a investigadora enrijecer no banco.

— Já. O que...

— Venham até o hotel — pediu ele. — Agora. Algo sério acabou de acontecer.

— Beleza. Estamos indo — disse ela, desligando. Luís esperou, erguendo as sobrancelhas. — Algo aconteceu no hotel. Parece que a torta vai ter de ficar pra depois.

— Eu vou cobrar.

Luís sorriu para ela e enfiou a chave na ignição outra vez. Antes que Adriana pudesse responder, estavam a caminho do hotel.

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