03.

Sentada na mesa oval carcomida da única DP de Lisiantos, Adriana escondeu um bocejo tomando outro gole de café frio e brincando com o copo de plástico entre os dedos. Observando atentamente os outros quatro policiais que tomavam notas enquanto o delegado falava, a investigadora olhou de relance para Luís, que escorado contra a parede, de braços cruzados, devolveu o olhar com um suspiro cansado. Discretamente, o relógio de pulso de Adriana indicou que Bernardino Almeida, o delegado, falava há vinte minutos sem qualquer interrupção.

O delegado da DP de Lisiantos era um tipo baixinho e rechonchudo, de cabelos castanhos que não cobriam completamente sua careca lustrosa e uma voz retumbante, que fazia as persianas tortas da sala tremularem vez ou outra. Os dedos do delegado, que mais pareciam salsichas, moviam-se para cima e para baixo enquanto ele falava sobre a importância do caso, da instituição policial, do faro dos investigadores, de como era a hora da verdade para aquela compacta, porém valente, força de Lisiantos. Que os quatro policiais ali presentes seriam os olhos, ouvidos, braços e pernas dos investigadores de Porto Alegre, o coração do nosso...

— Obrigado pelas palavras, delegado — interrompeu Dante, fazendo todos os rostos se virarem para ele. Bernardino, como era de se imaginar, não gostou de ser interrompido justo quando estava prestes a escolher um adjetivo grandioso para a capital do estado, mas pigarreou e assentiu. Dante agradeceu com um sorriso. — Já que nem todos aqui estavam presentes na cena do crime, sou Dante Bueno e estes são Luís Machado e Adriana Souza, meus colegas da DH de Porto Alegre. Estamos aqui pra auxiliar na investigação do caso ocorrido ontem.

Os quatro policiais assentiram brevemente. Os únicos que Adriana reconhecia eram os dois agentes que consolaram o coveiro na capela, o policial rechonchudo que atendia pelo nome de Jorge, e o magricela, chamado de Sérgio. Os outros dois eram um mistério. A única mulher além da própria Adriana era uma jovem policial de cabelos negros presos num rabo-de-cavalo chamada Miranda. O outro colega era um tipo soturno, com uma cicatriz esbranquiçada na bochecha direita que deixava sua barba falhada e do qual Adriana não se recordava do nome. Rafael? Renato? A única certeza dela era de que o nome dele começava com a letra R.

— As circunstâncias foram bem impressionantes na cena do crime — comentou Luís. As sobrancelhas dele se vincaram quando seus olhos castanhos questionaram silenciosamente cada rosto ao redor da mesa. — O que temos até agora sobre Érica Baldini?

Miranda afastou as folhas que usava para escrever e puxou uma pasta de informações. Os outros policiais locais franziram o cenho, exceto o que possuía a cicatriz. O policial que Adriana não sabia o nome sorriu com o canto dos lábios, acentuando ainda mais sua cicatriz.

Adriana se inclinou para ver melhor as fotos. Dante e Luís fizeram o mesmo.

— Compilei um material ontem à noite — informou Miranda, espalhando alguns recortes de jornais, fotos de Érica Baldini e matérias impressas de jornais online na mesa. — Não é muito, mas podemos começar traçando um perfil detalhado da...

— Ótima ideia, Miranda — elogiou o delegado, interrompendo a jovem. Ele sorriu como um pai, erguendo as sobrancelhas espessas para ela. — Por que não pega um café pra nós enquanto isso?

O silêncio que caiu sobre a sala foi sepulcral. Os velhos ventiladores de teto rangeram, e Miranda trincou a mandíbula. Adriana semicerrou os olhos para o delegado, decidindo que definitivamente não gostava de sua pessoa rechonchuda e altiva. Antes que ela se levantasse ou dissesse qualquer palavra, o policial da cicatriz se ergueu da cadeira e disse:

— Não se incomoda, Buarque. Explica as tuas... tuas anotações que eu cuido do café.

Ele saiu pela porta antes que o delegado pudesse reclamar. Um pequeno silêncio se seguiu antes que Miranda, agora duplamente animada, seguisse com a explanação.

— Como eu dizia, essas informações são importantes pra traçarmos o perfil da vítima. O que sabemos até agora é que Érica Baldini, 30 anos, foi encontrada morta em circunstâncias... pouco convencionais na noite de ontem — disse Miranda, passando uma foto da jornalista de cabelos curtos para Adriana. A jovem policial sorriu, olhando para cada um como se fosse revelar a chave do mistério. — Érica era âncora do Jornal Meia Hora, até pedir um ano sabático pra tratar de projetos pessoais. De acordo com as informações, ela tava escrevendo um livro, uma biografia familiar aqui em Lisiantos.

Dante franziu o cenho, pegando uma das matérias impressas de Miranda e correndo os olhos pelas linhas. Adriana e Luís fizeram o mesmo, lendo informações sobre o pedido de afastamento da jornalista. Miranda passou cópias aos colegas, que assentiram lentamente para as páginas que, infelizmente, possuíam apenas uma figura.

— O que choca nesse caso é a brutalidade — comentou Luís, virando a página e ainda lendo a matéria. — Érica chegou aqui há muito tempo? Essas notícias são de seis meses atrás.

— Ela chegou na mesma época — Jorge, o policial rechonchudo e alegre disse, seus olhinhos nervosos dançando entre Adriana, Dante e Luís. — Foi um alvoroço quando descobriram que os Albuquerque fariam uma biografia familiar. Os Camargo de Sá ficaram possessos quando souberam que os rivais seriam retratados como os fundadores da cidade.

Adriana não foi a única dos investigadores de Porto Alegre a franzir o cenho para aquela afirmação. Ela trocou um olhar confuso com Luís. As picuinhas de cidade pequena, ela pensou, grata por viver num lugar onde nem o vizinho de porta sabia seu nome. O policial com a cicatriz no rosto voltou com o café, e Miranda devolveu-lhe um sorriso agradecido. Dante ergueu os olhos para Jorge, esperando uma explicação.

— Quem? — inquiriu Adriana, fazendo Jorge sorrir maldosamente e apertar as mãozinhas gorduchas umas contra as outras. — Essas pessoas são importantes pra investigação porque...

— Os Albuquerque e os Camargo de Sá são as duas famílias mais ricas da cidade — Sérgio, o magricela, disse. Jorge fechou a cara ao perder a oportunidade de fazer fofoca. Novamente, Sérgio adotou uma atitude relaxada na cadeira. — Eles são concorrentes antigos nos negócios, desde os tempos da fundação de Lisiantos, na verdade. Cada família jura que fundou a cidade, mas ninguém se importa. É tudo uma disputa de poder.

— Ora, como tu pode dizer isso, Sérgio?! — repreendeu o delegado, fazendo as pobres persianas oscilarem e Sérgio e Jorge se encolherem nas cadeiras. — Tanto os Albuquerque quanto os Camargo de Sá são os pilares desta tradicional cidade da...

— Que tipo de negócios? — perguntou Adriana, interrompendo o protesto ultrajado de Bernardino. Sérgio ainda tinha os olhos arregalados, evitando mirar seu superior depois daquela reprimenda, e Jorge também não parecia muito inclinado a falar. — Então?

— Vinícolas — disse o policial da cicatriz. Todos os rostos se viraram para ele, e Adriana percebeu um ligeiro rubor cobrir seu rosto. — As duas famílias são as grandes produtoras de vinho da serra. Competem por... por mercados. Principalmente o de Porto Alegre.

— Alguma personalidade importante dessas famílias que valha à pena ser... observada? —questionou Dante.

— Teodora Albuquerque — respondeu ele, coçando a cicatriz. — Ela comanda a Vinícola Albuquerque e pelo o que se sabe a mãe dela, Vitória Albuquerque, foi quem teve essa ideia de... de biografia familiar.

— E dos Camargo de Sá? — perguntou Adriana.

— Martin Camargo de Sá, talvez? — sugeriu Miranda, olhando para o policial com a cicatriz, que se limitou a assentir silenciosamente. Debaixo dos olhares confusos dos investigadores, Miranda rapidamente explicou: — Ele é como Teodora, mas comanda a família e a Vinícola Camargo de Sá. Não sei se ele pode ser enquadrado como suspeito, mas...

— Bem, por enquanto todos são suspeitos. — Adriana sorriu para a jovem policial, que assentiu pensativa. Após um breve silêncio, a investigadora se levantou e apoiou as mãos na mesa, olhando para a foto de Érica antes de se virar para os novos colegas. — Já que vocês conhecem a cidade, pensamos em usar isso como vantagem. Sérgio e Jorge, façam uma lista das pessoas mais influentes da cidade que possam ter conhecido ou apenas visto Érica.

Os dois assentiram, fazendo anotações num bloquinho amarelado.

— E o que eu e o Ricardo faremos? — perguntou Miranda numa voz ansiosa, gesticulando para o policial com a cicatriz.

Adriana juntou todos os arquivos na pasta e devolveu-a à policial com um sorriso.

— Quero que descubram a rotina de Érica. Onde ela ia, o que fazia durante o dia, com quem falava e todo tipo de coisa que pode não parecer importante. Tentem descobrir se Érica possuía alguma inimizade na cidade ou coisa parecida.

— Certo. — Miranda meneou a cabeça.

— Ótimo. — Adriana sorriu. — Eu, Luís e Dante sairemos pra investigar algumas coisas. Repassaremos as informações assim que possível.

Ela estava se preparando para sair quando o delegado perguntou:

— Mas e eu?

Atrás de Dante e Luís, ela se virou, olhando para ele e não conseguindo evitar o desdém que crescia em seu íntimo. Com um sorriso gentil, Adriana sugeriu:

— Por que o senhor não pega um café pra equipe?

A boca dele ainda estava aberta quando os três deixaram a sala.

---

Dante se despediu deles, rumando para o quarto que Érica costumava ocupar no hotel, e os Adriana e Luís caminharam pela rua principal de Lisiantos com as mãos nos bolsos, olhando para tudo sem prestar atenção em nada em especial. Era apenas mais um dia de primavera na pequena cidade extremamente asseada e repleta de canteiros de flores. Adriana suspirou, observando os rostos alegres dos habitantes, o sol do final daquela manhã quente contra os telhados e casas antigas da rua principal.

— Nem parece que ontem alguém foi esfolada e jogada numa cova rasa, né? — comentou Luís, sorrindo para os passarinhos que cantavam nas árvores. Adriana riu, seguindo ao lado dele. Algumas cabeças se viraram quando eles passaram, mas ela não deu importância. — Cidades pequenas são incríveis.

— Não sabia desse teu amor por cidadezinhas da serra gaúcha.

— A hipocrisia desses lugares é fascinante. — Ele apontou para um pipoqueiro. — E aí? Topa uma pipoca?

Ela parou, franzindo o cenho. Luís se voltou com uma expressão confusa quando percebeu que ela não caminhava a seu lado.

— Sério, Luís? — perguntou Adriana, e ele abriu a boca, confuso. Quando seu parceiro não viu o problema naquilo, ela franziu as sobrancelhas ainda mais. — Uma pessoa foi assassinada e tu quer comer pipoca? A gente não tá de férias, e tu me tirou da cama cedo demais pra não estarmos trabalhando.

Ele revirou os olhos, murmurando palavras que ela não compreendeu, e seguiram a caminhada.

Depois de visitar a cena do crime na noite de ontem, Adriana não conseguiu dormir quando pousou a cabeça no travesseiro. O quarto tinha o cheiro característico de lençóis limpos e o colchão era relativamente macio, entretanto Adriana mal pregou os olhos durante a noite. Imagens do anjo de pedra com seu sorriso frio e descascado assombraram seus sonhos, mesclando-se ao corpo esfolado de Érica e sua boca escancarada.

E não bastasse a noite terrível, Luís batera em sua porta às seis da manhã, com o jornal do dia e aquele irritante bom-humor matinal que ela tanto detestava. Seria sempre um mistério para ela como Luís possuía a capacidade de ser feliz antes da primeira xícara de café, ou de gostar tanto das manhãs.

— Bem, aqui estamos — disse ele, arrancando-a dos próprios pensamentos. Ela ergueu os olhos, e Luís sorriu. — Livraria Lafue. Primeiro as damas, meu amor.

Ele puxou a porta envidraçada, fazendo um sino soar acima da cabeça deles. Adriana foi invadida pelo cheiro de livros, lustra-móveis e chá de baunilha que circulava dentro da loja modesta. As paredes eram cobertas de livros ricamente encadernados, que pareciam suplicar para que o leitor tocasse suas lombadas trabalhadas. O sol que entrava pelas vitrines deixava a loja vazia amarelada e vibrante, como se fosse um espaço perdido num tempo antigo, dourado.

O cheiro e o clima da pequena Livraria Lafue trouxe o pai de Adriana imediatamente a seus pensamentos. A música triste que ele dedilhava ao piano todas as manhãs quando ela era criança, o cheiro de café de seu abraço apertado, as luzes amareladas que coloriam o piano de madeira com milhares de tons vibrantes se grudaram às lembranças dela com forçar. Naqueles segundos solitários, Adriana sentiu falta do pai, falta de ser criança outra vez.

Luís, entretido com as estantes recheadas, perdido entre os títulos, não percebeu que Adriana estivera com a cabeça longe. Ela sorriu para as costas do parceiro, que não resistia ao chamado de uma livraria, e tocou seu ombro. Ele piscou, como se finalmente percebesse onde estava, e riu.

— Achou algo interessante? — perguntou Adriana.

— Tu nem imagina — disse ele como quem pede desculpas por reconhecer uma falha de caráter que não deseja ser corrigida. — Tu sabe que eu amo livrarias.

— É, eu sei. — Ela riu. De perto, o perfume de Luís se potencializou, fazendo o nariz de Adriana coçar. Observando os olhos famintos dele para as estantes bem organizadas, ela empurrou-o com o ombro. — Desde os tempos da faculdade tu não consegue resistir a elas.

— Eu não consigo resistir a muitas coisas desde os tempos da faculdade, Adriana.

Eles ficaram em silêncio, ouvindo os sons que chegavam da rua principal de Lisiantos. Ele não sorria, e os olhos castanhos que antes não se desgrudavam das estantes abarrotadas de livros fixaram-se no rosto dela, tentando prever uma reposta. Luís e seus malditos jogos de palavras que nunca falhavam em deixá-la sem graça, sem saber ao certo o que dizer. Jogos de palavras sobre aquela vez, é claro.

Ela comprimiu os lábios, semicerrando os olhos. Estava prestes a reprimir Luís, a dizer que já havia pedido mais de mil vezes para que parasse com aquelas brincadeiras idiotas, mas foi interrompida por uma voz masculina com um sotaque estrangeiro:

— Sinto muito pela demorra. Desejam alguma ajuda?

Adriana se virou para o balcão. Um senhor idoso e curvado, ancorado por uma bengala de madeira trabalhada apareceu através de uma porta. Os cabelos brancos, os óculos de aro redondo, o colete de malha e a calça cáqui faziam-no se parecer com todos os avôs de todos os filmes que Adriana já vira. Os três ficaram em silêncio por um instante, até Luís estender a mão ao senhor.

— Bom dia, senhor. Sou Luís Machado, investigador de polícia. Esta é Adriana Souza, minha parceira. Estamos aqui por causa do...

— Da tragédia com a Srta. Baldini, oui — disse o velhinho com um suspiro, apertando a mão de Luís. A pronúncia da letra R dele era carregada, e Adriana sorriu para o livreiro, reconhecendo em seu sotaque um sinal de coragem. — Sou Gustave Lafue, dono da loja.

Luís assentiu, e Adriana percebeu que as mãos nodosas do senhor tremiam ligeiramente. O peso da idade chega pra todos, ela pensou com uma pontada de pena. Gustave Lafue limpou as lentes dos óculos com um lenço branco que sacou do interior do colete e mirou-os com seus olhos cinzentos opacos.

— Em que lhes posso ser útil, investigadorres?

— O senhor conhecia a vítima? — perguntou Luís. Adriana se afastou para observar as estantes e a disposição dos livros. O parceiro continuou: — Ela alguma vez visitou sua loja?

Oui, oui — respondeu o livreiro. Adriana não se virou para eles, preferindo continuar com sua ronda despreocupada pela loja e os ouvidos abertos. — A Srta. Baldini era uma jovem encantadora. Adorava os livros tanto quanto eu. Foi uma pena o ocorrido.

— Esse exemplar foi adquirido aqui? — Luís mostrou ao Sr. Lafue a foto que havia tirado do livro na cena do crime. O velho livreiro apertou os olhos para enxergar melhor, assentindo finalmente. — Saberia dizer a data exata em que Érica o comprou?

Adriana se aproximou justo quando o Sr. Lafue fazia a careta de quem tenta se lembrar de algo há muito esquecido. As rugas ao redor de seus olhos se acentuaram quando ele devolveu num tom incerto:

— Talvez logo quando chegou à cidade? — disse ele, deixando escapar uma risada encabulada. — Je suis désolé. A cabeça não funciona muito bem depois de tantos anos de uso.

Os dois investigadores sorriram de maneira compreensiva. De súbito, o semblante enrugado do Sr. Lafue se iluminou.

— Minha cabeça pode não ser o que era antes, mas posso verificar o livro de registros. Ajudaria?

— Qualquer informação neste estágio da investigação é bem-vinda — afirmou Adriana, grata pela disposição do livreiro. O Sr. Lafue sorriu e se moveu com dificuldade para trás do balcão de madeira, arfando e se apoiando na bengala trabalhada. Luís franziu o cenho, e Adriana saiu na frente: — O senhor precisa de alguma ajuda?

Non, non — disse ele, se abaixando com destreza e ressurgindo atrás do balcão com o rosto vermelho e um livro encadernado em couro marrom nas mãos nodosas. Seu dedo esquelético acariciou a página, procurando pelo nome de Érica. — Guardo aqui os registros de quem adquire exemplares mais antigos. Vejamos onde está a Srta. Baldini. Aqui. O Morro dos Ventos Uivantes. O preferido dela, pelo o que me contou.

Na caligrafia tremida do Sr. Lafue, Adriana distinguiu o nome de Érica Baldini em tinta negra nas páginas amareladas do registro. Nomes e mais nomes compunham o livro, mas Adriana não se prendeu a eles. A última afirmação do livreiro fê-la erguer os olhos.

— O senhor e Érica eram próximos? — perguntou ela.

— Mais por causa do trabalho dela — explicou ele, empurrando os óculos que escorregavam por seu nariz aquilino. — A Srta. Baldini escrevia a biografia da família Albuquerque, e eu a ajudava a esclarecer alguns fatos sobre a história de Lisiantos.

— O senhor está há muito tempo aqui? — perguntou Luís, virando a página do livro de registros sem verdadeiramente prestar atenção no que fazia. Adriana olhou brevemente para o parceiro, que esclareceu: — Há muito tempo na cidade, digo.

— Cinquenta anos — respondeu ele, e os dois investigadores o miraram com sobrancelhas erguidas. O Sr. Lafue riu. — A Srta. Baldini utilizava meus conhecimentos para recrriar alguns fatos históricos sobre a cidade. Vi muitas coisas desde que fugi da França e da guerra para adotar Lisiantos como minha casa.

— Imaginamos — concordou Adriana. — Principalmente sobre a rixa entre os Camargo de Sá e os Albuquerque, não?

O semblante relaxado do velhinho se alterou para uma expressão cansada, que acentuava as rugas de seu rosto. Ele suspirou, fechando o livro de registros com pesar. Luís, por sorte, recolheu as mãos antes que seus dedos fossem esmagados pelas centenas de páginas amareladas.

— Pode-se dizer que sim. Estou em Lisiantos há tempo suficiente para reconhecer que os Albuquerque e os Camargo de Sá são... poderrosos.

— Qual foi a última vez em que o senhor viu Érica com vida? — questionou Luís.

— Na sexta-feira, talvez. É difícil lem...

— E como ela estava? Alegre, assustada...?

O Sr. Lafue ergueu as sobrancelhas, e Adriana teve vontade de enfiar o cotovelo nas costelas de Luís por toda aquela pressão que não deixava o pobre homem pensar. O velhinho coçou as sobrancelhas, como quem tenta se lembrar de algo corriqueiro, e disse, sem graça:

— Parecia normal, pelo o que me lembrro. — Após um silêncio, o Sr. Lafue adicionou: — Ela trabalhava muito, escrrevendo o livro para os Albuquerque. Não sei se notei... algo.

— Acredita que algum deles possa ter feito mal a ela? — perguntou Adriana, inclinando-se contra o balcão. — Os Albuquerque ou talvez os Camargo de Sá?

O Sr. Lafue entrou num silêncio reflexivo, seus olhos perdidos em memórias do passado. Adriana trocou um olhar tenso com Luís, que trincou a mandíbula. O Sr. Lafue se recompôs e sorriu como o guardião de um mistério.

— Acredito que todos têm seus segredos, investigadorra — disse lentamente o livreiro, fazendo a pele da investigadora se arrepiar. Uma tristeza mal disfarçada tomou seus traços envelhecidos, e ele continuou: — Não sei o que pode ter acontecido à Srta. Baldini, mas sei que remexer em segredos pode ser perigoso. Ainda mais quando são segredos de famílias poderrosas como os Albuquerque e os Camargo de Sá.

Excitado com o rumo que a conversa tomava, Luís apoiou as mãos no balcão e perguntou:

— O senhor sabe de algo que...

— Sinto muito — interrompeu o Sr. Lafue sem graça. Suas mãos trêmulas e nodosas estenderam um cartãozinho da livraria à Adriana. Ela percebeu que os olhos do livreiro evitaram os dela quando ele disse: — Desejo sorte nas investigações. Se souberrem como posso lhes ser útil, não hesitem em me procurar.

Com o cartão nas mãos, Adriana sorriu sem vontade e tocou o ombro de um Luís não tão satisfeito. Tinha certeza de que, pelo menos naquela manhã, não arrancariam mais nada do velho senhor.

---

— Perda de tempo dos infernos — retrucou Luís num tom amuado tão logo a porta da Livraria Lafue se fechou atrás deles. — Esse velho sabe mais do que aparenta.

Adriana sorriu com o canto dos lábios. Era típico de Luís achar que as testemunhas escondiam mais do que o necessário, segredos que, invariavelmente os levariam a uma resolução rápida do caso. Seu parceiro tinha as mãos na cintura, e a barba por fazer realçava sua expressão insatisfeita e cansada enquanto se afastavam da livraria. Luís era o tipo de policial que não liberava quem quer que fosse antes de um pente fino completo, fato que às vezes deixava Bárbara, sua filha adolescente, em maus lençóis.

Apesar de se divertir com a irritação usual de Luís, Adriana não podia negar que as palavras do Sr. Lafue a deixaram incomodada. Segredos, poder... aquelas palavras cabiam num seriado policial de quinta categoria, mas na vida real? Dificilmente. Após anos de corporação, Adriana sabia que por trás de assassinatos haviam motivos banais. Um olhar enviesado, uma desconfiança de traição, qualquer fato minúsculo era razão para terminar com a vida de alguém. Mas casos como o de Érica, onde o corpo apresentava sinais de tortura e brutalidade, eram uma medonha exceção.

E pelas circunstâncias não se deve relevar a possibilidade de violência sexual. Adriana estremeceu ao pensar naquilo. Luís ainda resmungava sobre o Sr. Lafue, mas ela estava absorta demais nas próprias considerações para ouvir. Quem sabe não existiria um namorado ciumento em Lisiantos, algum desafeto do passado, ou um admirador secreto que ultrapassou todos os limites imagináveis e seguiu-a até ali para executar um plano macabro? Todas as opções seriam possíveis.

Pelas fotos que Miranda apresentara-lhes na DP, Érica era uma jovem bonita, de cabelos loiros cortados curtos e batom vermelho. Adriana se lembrava de vê-la na bancada do Jornal Meia-Hora, organizando suas folhas com um sorriso profissional. A imagem do corpo esfolado de Érica assaltou-a e Adriana respirou fundo, fechando os olhos por um momento. Se o Sr. Lafue sabia de alguma coisa, era seu dever denunciar. Se não por ele, pelo menos por Érica, com quem conviveu durante aqueles seis meses.

— Puta que pariu, mas já?

Quando Adriana abriu os olhos percebeu aquilo que fizera Luís desviar o foco de suas reclamações contra o pobre Sr. Lafue. Na frente de uma banca de jornais, estampada em todas as primeiras páginas, estava a imagem de peritos entrando e saindo do cemitério local. As manchetes em letras garrafais no Diário de Lisiantos diziam ASSASSINATO BRUTAL NO CEMITÉRIO TIRA O SONO DOS HABITANTES. Adriana engoliu em seco.

Luís se enfiou na banca, ignorando o bom-dia amistoso do senhor gorducho de bigodes grisalhos e boina. Antes que ela pudesse argumentar, seu parceiro atirou algumas notas amassadas em cima do balcão, pegou um exemplar do jornal e voltou ao seu lado, folheando as páginas com pressa.

— Nenhuma surpresa eles já terem conseguido a notícia — disse ela, sentindo-se mortalmente cansada. — Pensei que pelo menos desta vez os jornalistas poderiam ficar de fora.

— Quem dera, mas escuta isso — respondeu Luís, sem erguer os olhos do jornal. Depois de umedecer os lábios, ele leu: — "Um corpo esfolado foi encontrado na noite de ontem, na cidade de Lisiantos, na serra gaúcha. A Perícia de Porto Alegre foi chamada ao local para fazer a transferência do corpo para o Instituto Médico-Legal da capital. Segundo informações, a vítima é a jornalista Érica Baldini, que atualmente escrevia um livro sobre a cidade."

— Como eles já sabem de tudo isso? — perguntou Adriana, franzindo o cenho.

Luís ignorou a interrupção e continuou:

— "Hoje pela manhã o delegado Bernardino Almeida..."

— Ah. Tá explicado.

— "... informou que o caso está bem encaminhado e que a Delegacia de Polícia de Lisiantos auxiliará os policiais de Porto Alegre à trazer justiça ao criminoso." — Luís fechou o jornal com uma expressão de nojo. — Esse cara é um bosta.

Adriana estava prestes a concordar quando o celular vibrou no bolso traseiro de sua calça. Ao ver o nome no identificador, não conteve um suspiro contrariado. Mostrou-o a Luís, que fez uma careta. Ela deslizou o dedo pela tela e atendeu a chamada da única maneira que podia:

— Gregório.

— Tu sabe que sim — a voz masculina respondeu do outro lado da linha. Adriana suspirou, sabendo que não se livraria tão cedo dele. — Como vai minha investigadora preferida?

Gregório Assunção, jornalista da Gazeta Porto-Alegrense, era uma pedra no sapato de Adriana há muito mais tempo do que ela gostaria. Desde que trabalharam juntos no caso Valentina, Gregório ligava para ela tão logo seu faro jornalístico captasse o cheiro característico de assassinato. Com uma estatura de jogador de basquete e orelhas pontudas, o jornalista sempre enchia o ambiente em que estava, fosse por sua aparência desengonçada, fosse por suas perguntas sagazes e insistentes.

A policial sorriu sem vontade, sabendo que não seria tão fácil se livrar dele, e disse:

— Melhor antes, quando não tava falando contigo.

— Teu talento cômico sendo desperdiçado na polícia é uma tragédia, princesa. — Ele riu, e Adriana imaginou-o na própria mesa abarrotada de papeis da redação, girando uma caneta entre os dedos longos. — Luís tá contigo, eu presumo?

— É, ainda não consegui me livrar dele — respondeu ela com um meio sorriso para Luís, que semicerrou os olhos. — Mas tu não ligou pra saber o que eu e Luís estamos fazendo, certo?

— Aí que tu se engana, princesa — respondeu Gregório. Quando ele continuou, Adriana quase visualizou seu sorriso insolente através da linha: — Fiquei sabendo que vocês dois tão curtindo um final de semana romântico na serra, na bucólica cidadezinha de Lisiantos. Procede?

— Não me diga que te rebaixaram à seção de fofocas da Gazeta? — brincou ela, ouvindo a risada gostosa dele. Luís franziu o cenho, pedindo para que Adriana lhe contasse o teor da conversa. Ela riu e disse: — Tu já foi melhor que isso, Gregório.

— Assim tu me deixa sem graça, meu amor — respondeu ele, e outra vez ela imaginou-o girando a caneta entre os dedos. — Enfim, liguei pra saber o que vocês dois andam fazendo quando não tão tomando vinho, passeando de mãos dadas pela cidade e transando como coelhos no hotel.

— Que gentileza a tua.

— Imagine — disse ele. Após uma breve pausa, Gregório chegou exatamente onde Adriana sabia que chegaria. — O que vocês têm para mim?

— Nada — respondeu ela tão logo percebeu que a brincadeira acabara. O jornalista ia argumentar, mas Adriana interrompeu-o: — O corpo foi encontrado ontem. O que tu espera?

— Eu espero o que todo bom homem espera — brincou ele. Quando Adriana ficou em silêncio, Gregório continuou num tom brincalhão: — Uma informaçãozinha privilegiada aqui, alguma fotografiazinha comprometedora ali. Sair pra jantar contigo um dia desses. Nada impossível, na verdade.

Adriana riu, olhando para três crianças que brincavam numa pequena praça do outro lado da rua. Luís a encarava, mal escondendo a curiosidade que o dominava. Ela apertou o celular contra o ouvido e decidiu testar seu interlocutor. Lentamente, disse:

— E o que tu tem para mim?

— O prazer da minha companhia não é o suficiente, princesa?

— Não sobre isso — retrucou ela. — Informações privilegiadas custam caro, sabia?

— Eu conheço algumas pessoas que conhecem outras pessoas que trabalharam com Érica Baldini tanto no Jornal Meia Hora quanto na Gazeta — disse ele, e Adriana olhou para Luís, de repente ansiosa por uma ideia. Ele franziu o cenho, irritado por não entender o que se passava. Gregório continuou em seu tom habitual: — Posso descobrir algo sobre Érica e facilitar teu trabalho. O mercado é pequeno. Todo mundo acaba se cruzando de uma maneira ou de outra. O que me diz, Adriana?

Ela não se deu ao luxo de considerar.

— Como resistir a uma proposta dessas? — Ela sorriu com o canto dos lábios. — Assim que eu tiver algo que possa ser passado à imprensa, tu será um dos primeiros a saber.

— Ótimo, mas se quiser deixar vazar algo que a imprensa não possa saber, pense em mim também, sim? — Ele riu de volta e Adriana imaginou-o relaxando na cadeira giratória. — Entrarei em contato assim que tiver algo de concreto.

— Nunca pensei que fosse dizer isso, mas vou esperar ansiosamente pela tua ligação.

— Ah, princesa, como as coisas mudam, não é mesmo? — Os dois riram. Após um breve silêncio, o jornalista continuou: — Então, sobre aquele nosso jantar...?

— Até mais, Gregório.

Adriana sorriu e desligou a chamada. Luís ainda esperava por alguma explicação, que ela, de primeira, não foi capaz de dar. Como não pensara em ligar para Gregório? A ajuda dele seria bem-vinda, principalmente se Érica possuísse algum trabalho arriscado ou um namorado ciumento na capital. Revitalizada, Adriana não viu a hora de receber novas informações para poder delinear o caso. Luís, de fora daquele momento sublime, fechou a cara.

— O que esse mala queria?

— O de sempre.

— Te chamar pra sair? — perguntou ele com desdém. — Esse cara é patético.

— Bem, isso também.

— Também? O que mais tem nessa jogada?

Adriana explicou brevemente que Gregório poderia auxiliá-los a descobrir sobre o passado, os trabalhos e os desafetos de Érica na capital. Em troca, é claro, de algumas informações sobre a investigação.

— Que não podem ser vazadas por lei, Adriana — relembrou ele, erguendo as sobrancelhas.

— Gregório vai se alegrar com qualquer coisa. Acredita em mim. Ele vai...

A voz dela foi cortada por um carro conversível negro que passou zunindo pela pacata ruazinha central de Lisiantos. As bandeirolas coloridas penduradas nos postes de luz balançaram quando a motorista parou no posto de gasolina, os pneus lustrosos cantando com a freada brusca. Os pedestres pararam para admirar aquele tufão, e Adriana franziu o cenho quando viu a motorista descer do carro esportivo.

Uma jovem nos seus vinte anos desceu do carro, batendo a porta com uma atitude desdenhosa. Seus cabelos cor-de-rosa desarrumados, o cigarro que pendia de seus lábios vermelhos, os shorts jeans rasgados, a blusa negra esfarrapada, as tatuagens coloridas e os óculos escuros redondos fariam dela uma personagem comum em qualquer grande capital do mundo, mas soavam deslocados em Lisiantos. Com um sorriso insolente para o frentista, ela virou as costas e desfilou para a loja de conveniência. Adriana percebeu que uma música dos Rolling Stones — incrivelmente alta — emanava de seu sofisticado sistema de som. Quando a jovem sumiu pela loja, Luís riu, cruzando os braços.

— E eu aqui pensando que as dondocas existiam só em Porto Alegre.

— Pura ilusão — comentou Adriana, deixando uma risada escapar. — Pronto pra conhecer os Albuquerque?

— Tu não faz ideia — respondeu ele com uma careta, fazendo-a sorrir. — Vamos pegar o carro.

Voltaram ao hotel, e antes que ela percebesse, estavam à caminho de uma das maiores vinícolas da cidade de Lisiantos.

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