02.

Quase uma hora e meia se passou até que os dois vissem a entrada do município de Lisiantos. Simulando um castelinho medieval que atravessava a estrada, o pórtico trazia a flor roxa que nomeava a cidade pintada entre a frase "Bem Vindo À Lisiantos, Terra Da Fertilidade" em letras garrafais. Adriana se remexeu no banco, prendendo a respiração quando finalmente entraram na cidade.

— Dante me mandou o endereço de onde eles estão — disse Luís, fazendo uma careta para as lojinhas escuras. — Vamos terminar logo com isso.

Enquanto ele dirigia pelas ruas desertas àquela hora da noite, Adriana observou a simpática arquitetura antiga de Lisiantos, com suas casinhas alemãs que lembravam os Alpes, as poucas pessoas nas calçadas bem limpas e o asseio geral do município que se intitulava a Terra Da Fertilidade. Banners de exposições e feiras de flores — especialmente lisiantos — apareciam em paradas de ônibus, vitrines de bancas de jornais e anúncios em cabines de telefones públicos. A não ser o ronco baixo do motor do carro deles, ou o miado preguiçoso de um gato vadio, nenhum som era ouvido nas ruas limpas e desertas da cidade.

Adriana quase sentiu falta de Porto Alegre, do latido dos cães de rua, das sirenes policiais que soavam de madrugada, do som de buzinas irritadas e de alguma música alta ao longe. Lisiantos, assim como a maior parte das cidades serranas que, segundo os jornais, eram reconhecidas por serem um pedaço da Europa no Brasil, parecia... morta. Se não fosse por um ou outro casal apaixonado andando de mãos dadas nas calçadas, ou dois ou três adolescentes encurvados bebendo cervejas baratas, nada perturbaria o silêncio da noite de Lisiantos.

Luís enveredou por uma estradinha de terra, se afastando da rua central, e Adriana franziu o cenho quando ele estacionou em frente ao cemitério da cidade. Uma viatura policial com a placa de Lisiantos estava estacionada entre o utilitário da Perícia Criminal. Não muito longe, dois policiais faziam uma barreira para afastar os poucos curiosos que esticavam os pescoços para dentro do cemitério. Ela enrijeceu quando Luís finalmente desligou o motor.

— No cemitério? — perguntou Adriana. — Tu tá brincando.

— Pois é. Acharam o corpo no cemitério — respondeu Luís, descendo do carro. Ele enfiou a arma no cós das calças e inclinou o corpo para encará-la com um sorriso. — Quais as chances, hein? Vamos lá, princesa. Temos um crime pra resolver.

Ele bateu a porta antes que ela pudesse reclamar daquele maldito apelido. Adriana desceu do carro, admirando o anjo de pedra fixado no pórtico de entrada do cemitério. A estátua estendia a mão direita para baixo, um sorriso de pedra lapidado num rosto nada acolhedor. Um calafrio estremeceu o corpo de Adriana, que se sentiu grata quando Luís tocou suas costas. O calor da mão dele fez a investigadora engolir em seco. Os olhares dos curiosos se fixaram nos dois, que mostraram os distintivos aos policiais guardando a entrada do cemitério, e rumaram para a cena do crime.

— Por aqui — disse Luís, guiando-a entre o labirinto de túmulos.

Quase no outro extremo do cemitério, Adriana visualizou a clássica linha de isolamento policial. Um perito passou por eles, cumprimentando-os com um gesto de cabeça. Um jovem policial ergueu a mão esquerda, apoiando a direita no coldre que trazia na cintura.

— Sinto muito, senhores, mas a área está isolada e...

— Nós sabemos — interrompeu Luís numa voz autoritária, mostrando o distintivo. — Luís Machado e Adriana Souza, investigadores da Delegacia de Homicídios de Porto Alegre. Onde está o corpo?

O policial piscou algumas vezes antes de assentir e erguer a fita de sinalização para que passassem. Os três caminharam lado a lado em direção às luzes brilhantes que a Perícia instalara entre os túmulos. O jovem policial se virou para eles, com gotas de suor se formando em seu lábio superior quando indicou com a cabeça e disse:

— O corpo está ali, senhor.

Adriana ergueu os olhos e teve de se esforçar para não vomitar.

O corpo descansava numa cova rasa, aberta às pressas entre o muro externo do cemitério e alguns túmulos mais simples. A posição do cadáver não era grotesca, com braços ou pernas quebradas, mas o que fez Adriana virar o rosto por um momento foi a completa e total ausência de pele na vítima. Os músculos avermelhados pareciam pulsar entre a terra escura e revirada, e pétalas de rosas, vermelhas como os músculos aparentes da jornalista, formavam um coração macabro ao redor do cadáver.

Adriana vira muitos absurdos em seus anos de trabalho policial, mas nada tão impactante quanto um corpo completamente esfolado. As luzes brancas da Perícia tornavam o cenário ainda mais indigesto, ressaltando os olhos arregalados e sem vida da jornalista. Adriana engoliu em seco, observando os peritos se aproximarem pelos túmulos do cemitério.

— Puta que pariu — disse Luís, fazendo uma careta. — Por que ainda não retiraram o corpo pra autópsia?

— Os... os peritos recém chegaram, senhor — respondeu o jovem policial, evitando olhar para o cadáver. — Eles acabaram de fazer o isolamento. Não temos Perícia Criminal aqui em Lisiantos, e eles também vieram de Por...

— Luís, Adri!

Os dois se viraram. A figura alta e desengonçada de Dante Bueno surgiu entre alguns túmulos, erguendo a fita de isolamento e cumprimentando-os com um sorriso. As olheiras profundas do colega, assim como suas roupas amassadas e botas sujas de terra, indicavam que ele estava envolvido com o trabalho há mais tempo do que o indicado. Os cabelos cor de areia de Dante estavam arrepiados, e Adriana nunca teve tanta vontade de abraçá-lo antes.

— Já vi que conheceram o amigo. — Ele indicou o jovem policial com a cabeça, que se afastou com um sorriso sem graça. Dante ergueu as sobrancelhas para o corpo. — Noite divertida no escritório, não? O que acham?

Luís olhou para Adriana, que balançou a cabeça. Os olhos vidrados da jornalista fizeram o estômago da investigadora se revirar. Ela respirou fundo, dando um passo para o lado e liberando a passagem de dois peritos.

— Bizarro — disse ela. Dante meneou a cabeça. — Alguma informação nova sobre a vítima?

— Ainda estamos apurando tudo — respondeu Dante, não conseguindo evitar um suspiro. — Os caras tão perdidos. O último assassinato que eles investigaram por aqui foi em 1990.

— Tu não pode tá falando sério. — Luís deixou uma risada incrédula escapar, mas Dante não riu. — Que cidade é essa?

— Pois é. A criminalidade é baixa nas redondezas. A maioria dos casos é de assaltos, nada muito elaborado.

— Mas quando decidem elaborar... — Adriana deixou o resto da frase morrer. Dante deu de ombros, como se pedisse desculpas por algo inevitável. — Que merda é essa que nos chamaram pra resolver, Dante? A vítima foi completamente esfolada.

— Agora tu entende porque o secretário ligou pro Silveira e mandou chamar vocês. — Ele suspirou, esfregando o rosto com uma das mãos. Debaixo das luzes brancas instaladas porcamente entre os túmulos, Dante pareceu muito mais velho do que realmente era. — Eu e alguns policiais levantamos algumas informações enquanto esperávamos por vocês e a Perícia.

— E? — perguntou Luís.

— Venham por aqui.

Adriana desviou do perito que tirava fotografias do corpo e se aproximou de Dante. Ele apontou para um objeto retangular ao lado da mão esquerda esfolada de Érica. Adriana franziu o cenho, mas foi Luís quem fez a pergunta:

— Um livro?

O Morro dos Ventos Uivantes — confirmou Dante. — Não sabemos se é da vítima ou do assassino, mas é algo... interessante para se deixar cair antes de enterrar alguém, não?

— Se é — concordou Adriana. O perito bateu outra foto, o flash escandaloso da câmera iluminando o cemitério. Ela indicou com a cabeça e disse: — E essas flores? Rosas vermelhas em formato de coração...

— Como se todo o resto já não fosse esquisito o suficiente — disse Luís.

— Além da posição do corpo, do esfolamento, das rosas e do livro — Dante fez uma pausa e olhou para os dois como se estivesse gostando daquele silêncio ansioso —, parece que temos uma testemunha ocular.

Luís trocou um olhar nervoso com Adriana, que sentiu o coração acelerar. Uma testemunha ocular, num caso como aquele, agilizaria o prosseguimento das investigações. Ela perguntou num tom cuidadoso:

— Quem?

— O coveiro do cemitério, Seu Adamastor — respondeu Dante. Debaixo dos olhares esperançosos dos investigadores, ele suspirou. — Não esperem muito. O cara não tá... não tá muito bem.

— O que tu quer dizer com isso? — Luís franziu o cenho.

— Venham por aqui — pediu Dante, erguendo a fita de isolamento para que ambos passassem. Ele se voltou por um instante, antes que se afastassem da cena do crime, e ordenou: — Gaspar, envia o corpo pro IML e me liga assim que tiver algo de concreto.

O rapaz da Perícia que tirava fotos assentiu e sorriu para os investigadores antes de voltar sua atenção ao trabalho. Os três policiais caminharam em silêncio pelas alas escuras e melancólicas do cemitério até Dante voltar a falar:

— O Seu Adamastor viu um vulto ao lado do cadáver — disse ele, quando se afastaram o suficiente para não serem ouvidos por ninguém da Perícia. — Ele jura que algo tava próximo ao corpo, mas que pulou o muro assim que notou que não tava... sozinho.

— Possivelmente o assassino? — perguntou Adriana, sua curiosidade se intrometendo entre as palavras.

— Não sabemos. — Dante deu de ombros e suspirou. — O Seu Adamastor é cego de um olho e pode ser meio... meio biruta, eu acho.

— Quer dizer que até a Perícia conseguir alguma coisa com o corpo, tudo o que nós temos é um livro velho e um coveiro biruta? — perguntou Luís, fazendo Adriana sorrir com o canto dos lábios. Dante balançou a cabeça, rindo. — Aliás, o que tu quer dizer com biruta?

— Por que vocês não veem por si mesmos?

Dante parou e apontou para uma construção circular, próxima à outra entrada do cemitério, que Adriana tomou por uma capela de orações. Dois policiais, um rechonchudo e outro magro, ofereciam água a um homem em seus cinquenta anos, de cabelos grisalhos desgrenhados, cavanhaque malcuidado e olhos cinzentos injetados. O uniforme azul caía sobre seu corpo esquálido e encardido, e mesmo a alguns passos de distância, Adriana pôde perceber que o homem não estava em seu juízo perfeito.

— Com licença, senhor — disse ela, erguendo o distintivo. — Investigadora Adriana Souza e Luís Machado da Delegacia de Homicídios de Porto Alegre. O senhor reportou ter visto alguém próximo ao corpo?

O copo d'água tremia nas mãos calejadas do homem. Luís trocou um olhar preocupado com Adriana, que trincou a mandíbula. O coveiro negou com a cabeça, seus cabelos desgrenhados balançando enquanto ele repetia o movimento sem abrir a boca. O policial rechonchudo suspirou, coçando a cabeça. O grupo ficou em silêncio, observando o coveiro negar com a cabeça feito uma criança contrariada.

— Era o espírito da morte — resmungou ele numa voz chorosa, o copo oscilando em seus dedos compridos. O coveiro ergueu o olho bom, mirando Adriana e Luís como se não os visse. — Era o espírito da morte chorando... sim, chorando. O espírito da morte chorando e carregando sua pá e seus tormentos para o mundo dos mortos.

Os cinco policiais em volta do homem trocaram um olhar cansado.

Dante deu de ombros para Adriana, suas sobrancelhas espessas erguidas no mais claro eu avisei que poderiam expressar. Luís tinha a boca aberta, olhando para o coveiro como se ele fosse uma atração grotesca de circo. Uma brisa passou pelo grupo, e Adriana simulou um sorriso profissional. Tá tudo sob controle, ela pensou, olhando para a testemunha ocular e imaginando seu depoimento oficial com uma pontada de decepção.

— O senhor poderia descrever esse... esse espírito da morte? — perguntou ela, recebendo olhadelas confusas dos dois policiais locais. — Como ele era?

O coveiro balançou a cabeça outra vez, a água quase caindo do copo encardido. Luís tinha o maxilar trincado, e todos pareciam respirar com dificuldade à espera das palavras do homem. O velho coveiro ergueu a cabeça desgrenhada. Por fim, seu olho cinzento e sem vida vasculhou o interior da alma de Adriana.

— Ninguém pode. Apenas os mortos.

Luís e os outros dois policiais deixaram escapar um bufo irritado. Dante limitou-se a cruzar os braços e a dar de ombros para ela. Adriana coçou a sobrancelha. Sua paciência, geralmente curta, se esgotava diante daquela lenga-lenga sobrenatural.

— Qualquer detalhe é importante, senhor. O homem que...

— Não era um homem. — O coveiro rosnou e bebeu alguns goles de água com fúria contida. — Aquilo não era humano. Chorava em cima do corpo, carregando a pá. Não era humano.

Nenhum deles falou, e Adriana ignorou o pequeno calafrio que insistia em estremecer sua pele. Falar de mortos e espíritos num cemitério, à noite, não era exatamente um mar de rosas. Ela não acreditava no sobrenatural, e apesar de ser fã daqueles programas de espíritos e casas mal-assombradas da televisão, Adriana não tinha vocação — ou paciência — para a credulidade. Vira tantos casos horrendos desde que começara a trabalhar na polícia, tantos assassinatos brutais cometidos por seres humanos, que crer na existência de espíritos, à esta altura do campeonato, seria pura ingenuidade.

Ela colocou as mãos na cintura, ignorando o olhar zangado do coveiro. Ficaram envoltos num silêncio pesado, até Luís coçar a barba por fazer num gesto impaciente. Adriana suspirou e gesticulou com a cabeça para os policiais e o velho coveiro.

— Obrigada pelo seu tempo. Se tiver algo novo a nos contar, estaremos na central.

Os policiais assentiram. Os três investigadores voltaram a caminhar pelas fileiras escuras dos túmulos em direção ao corpo da vítima. Dante sorriu antes de dizer:

— Bem, eu odeio dizer isso, mas...

— É, tu nos avisou — resmungou Adriana, fazendo Luís sorrir. — Mas o que vocês acham?

— Ele provavelmente viu alguém tentando enterrar o corpo — arriscou Luís. — O cara ia enterrar o cadáver depois de ter feito o serviço, mas o coveiro chegou e atrapalhou.

— Por que tu sempre assume que é um cara? — perguntou Dante, erguendo as sobrancelhas loiras. — Ele viu um vulto, não necessariamente um homem.

— Vai começar com essa merda, Dante? — retrucou Luís. — Uma mulher não teria como carregar um cadáver esfolado de outra mulher nas costas. É pura física.

Dante ia argumentar com ele, mas Adriana interrompeu:

— Ritual tá fora de cogitação? — questionou ela. Os dois trocaram um olhar incomodado. Ela franziu o cenho. — O que foi? É comum adolescentes irem ao cemitério, beberem vinho e cultuarem cadáveres, não?

— A tua adolescência deve ter sido incrível, Adriana — disse Luís, após alguns instantes de silêncio pesado. Dante riu, e ela revirou os olhos. — Olha, o problema é que em Porto Alegre, uma cidade grande, tipos como esse são comuns. Os caras esquisitões que usam delineador, curtem caveiras e cemitérios. Mas aqui, numa cidadezinha onde todo mundo se conhece e o último assassinato foi em 1990? Não dá pra acreditar.

— É verdade, Adri — concordou Dante. — Por mais que eu odeie dizer isso, tô com Luís nessa. Se há algum indício de ritual, foi um ato isolado, e possivelmente planejado. O que fizeram com a vítima pode levar a esse pensamento, mas até a Perícia remover o corpo e fazer o laudo, não temos muito com o que trabalhar.

Pararam novamente diante da cena do crime, com os peritos tirando as últimas fotos e apontando para locais específicos do cemitério. Adriana viu de relance os músculos das pernas da jornalista se misturarem à terra, e engoliu em seco para não vomitar. Pense em coisas felizes. Chiclete de menta. Bombons de caramelo e filmes do James Bond. Quem conseguia esfolar uma pessoa inteira, sem deixar sequer um rastro de pele para trás? Enojada, Adriana chamou por Gaspar, que ergueu a cabeça com o cenho franzido.

— Me consegue um par de luvas?

— O que tu vai fazer? — perguntou Dante, erguendo a fita de isolamento para que ela passasse.

— Vou procurar indícios com que possamos trabalhar. — Adriana vestiu as luvas de látex e caminhou em direção ao corpo. Ela se abaixou ao lado do cadáver, pedindo licença aos peritos, e sussurrou para si mesma, ligeiramente incerta: — Deus me ajude.

Érica Baldini era um amontoado de músculos e tendões jogados numa cova semiaberta, um cadáver que não se parecia em nada com a jovem jornalista que há não muito tempo tempo se sentava à bancada do Jornal Meia Hora com seus sorrisos profissionais. Os olhos de Adriana correram pelo corpo, procurando algum resquício da pele rosada da moça, de seus olhos castanhos, mas não obtiveram êxito. O assassino deixara para trás apenas músculos avermelhados e uma boca aberta que não lembravam em nada a jornalista jovial de cabelos loiros e curtos.

Adriana se afastou do corpo, observando as pétalas de rosas dispostas em formato de coração, a terra fresca e revirada, o cenário de horror que se pintava diante de seus olhos. Então, sua atenção se fixou no livro próximo à mão esquerda esfolada de Érica. Com as mãos enluvadas, Adriana abriu a capa da edição de couro claro, com o título do livro reluzindo num dourado gasto. O Morro dos Ventos Uivantes. As páginas amareladas do exemplar não continham nada de especial. Ela folheou brevemente o livro, mas deteve-se na última página, franzindo o cenho. Não pode ser.

— Luís — chamou Adriana, e o parceiro imediatamente apareceu ao seu lado. Também usando luvas de látex, ele se acocorou na terra. — Olha isso.

Um carimbo ovalado, numa tinta azulada que já se dissolvia, trazia inscrito Livraria Lafue — Edições Raras, Encadernações & Comércio de Livros Usados, um endereço e um telefone. Adriana sorriu com o canto dos lábios ao ler que o endereço, para a sorte deles, era em Lisiantos.

— O que vocês encontraram aí? — perguntou Dante numa voz ansiosa, de fora da linha de isolamento.

— Uma pista — esclareceu Luís com um sorriso. Ele puxou o celular do bolso traseiro da calça e tirou uma fotografia do carimbo. — Prontinho. Amanhã já sabemos por onde começar.

Dante riu.

— Agora dá pra entender porque o secretário pediu pra vocês entrarem neste caso.

— É, camarada. — Luís se ergueu do chão, retirando as luvas e sorrindo. — E eu pensando que fosse por causa desses olhos verdes da Adriana. Ledo engano.

Ela revirou os olhos, mas Dante deixou uma risada baixa escapar.

— Estamos prontos pra retirar o corpo — interrompeu Gaspar, e ela se ergueu do chão, assentindo. O rapaz ajeitou os óculos e, sem olhá-los nos olhos, afirmou: — Assim que tivermos algo de concreto, entraremos em contato.

— Ótimo. Obrigada — agradeceu ela enquanto o jovem se afastava com outros dois peritos. Adriana seguiu Luís para fora da área de isolamento, tirando as luvas de látex. — Já que a Perícia tá pronta pra retirar o corpo, acho melhor nos apresentarmos na DP pra...

— Agora? — reclamou Luís, erguendo as sobrancelhas. Ele procurou auxílio em Dante, mas o colega limitou-se a dar de ombros. — Tu não acha melhor conhecermos nossos coleguinhas amanhã, depois de dormirmos?

— Como tu pode pensar em dormir com um caso desses nas mãos? — retrucou ela, franzindo o cenho. — O Silveira não nos chamou aqui pra gente pra fazer turismo, Luís.

— Por que tu não relaxa cinco segundos, Adriana?

— Porque isso é trabalho — rebateu ela com um gesto decidido. Incrivelmente próximos, os dois sustentaram um olhar pesado. — Por que tu sempre quer fazer as coisas do jeito mais fácil?

— Quem sabe porque ainda não me transformei num robô que nem tu?

Um silêncio tenso os abraçou, e Adriana lembrou-se de como, às vezes, sentia vontade de esmurrar a cara de Luís. Mediram forças silenciosamente, até Dante repousar uma mão nos ombros dos dois.

— Descansem, Adri — afirmou ele naquele tom que pedia desculpas. Ela trincou a mandíbula. — Se conheço bem essas cidades pequenas, posso dizer que não vai adiantar nada começar a trabalhar numa DP vazia. Nem o delegado deve tá mais lá. Veio aqui, deu uma olhadinha e sumiu. Aqui as coisas funcionam diferente.

Dante, sempre a voz da razão, fez Adriana assentir contrariada. Luís mirou-a com o canto dos olhos, para depois sorrir para o amigo.

— Tu concordando comigo duas vezes no mesmo dia, Dante. Quase um recorde, eu diria.

— Pra tu ver como esse caso é estranho — Dante riu, olhando para Adriana. — Vamos lá. O Silveira mandou eu alugar dois quartos pra vocês no mesmo hotel em que Érica Baldini estava hospedada.

— E o estado tem verba para isso? — perguntou ela, seguindo Dante para fora do cemitério e franzindo cenho. Luís riu, um ronco de escárnio que ela preferiu ignorar. — Que regalia é essa?

— O secretário pediu. Aparentemente ficar no hotel pode auxiliar nas investigações — disse Dante, enfiando as mãos nos bolsos do jeans surrado e sujo de terra enquanto caminhavam em sentido contrário ao dos peritos. — Tu e o Luís são quase uma celebridade depois do...

Depois do caso Valentina. Ele se calou quando percebeu o que estava prestes a dizer. Parados em frente ao pórtico do cemitério, Adriana notou uma ruga de receio crescer entre as sobrancelhas loiras de Dante. Mais dois peritos passaram por eles. Adriana sorriu sem vontade.

— Tudo bem, Dante — disse ela, ignorando o olhar de soslaio de Luís. Os três ficaram em silêncio, e Adriana riu para quebrar o gelo. — Acho que vocês estão certos. Seria bom... descansar.

O colega sorriu passando um dos imensos braços por cima dos ombros de Adriana. Ele apertou-a brevemente contra si, e a investigadora ficou grata pelo gesto.

Apesar de não ser muito mais velho do que ela, Dante agia como um pai amoroso com todos da delegacia, o amigo que todo mundo gostaria de ter. Nos dias chuvosos de inverno, com as rajadas de vento características que faziam as árvores de Porto Alegre tremerem, Dante era o cara que segurava o guarda-chuva para todos entrarem na viatura. Se algum agente estava de plantão, mas precisava assistir a uma apresentação de balé da filhinha, Dante não hesitava em trocar sua folga para dar aquela pequena alegria ao papai ou à mamãe plantonista.

É, Dante era aquele tipo de cara.

— Tu sabe que de uma maneira ou de outra eu sempre tô certo. — Ele riu, caminhando ainda abraçado a ela para fora do cemitério. Quando passaram pelo pórtico, Dante soltou de Adriana e sorriu para os dois. Luís, ela percebeu de relance, ainda parecia tenso. — Vocês me seguem de carro? O hotel não é muito longe daqui.

— Só nos mostrar o caminho — disse Adriana.

Ele sorriu de volta e piscou para Luís antes de entrar na viatura à paisana. Alguns curiosos esticaram o pescoço para os dois investigadores, e Adriana lançou um último olhar ao anjo que estendia a mão antes de entrar no carro de Luís. Uma brisa fria balançou as árvores, mas os peritos que ali passavam, preocupados com o transporte do corpo, não perceberam. Muito menos os habitantes curiosos, que tentavam vislumbrar qualquer relance de tragédia, comentando em murmúrios agourentos a morte daquela moça jornalista, isso, aquela de Porto Alegre.

Adriana percebeu a brisa, o sorriso distante do anjo e seu rosto bem lapidado como um mau presságio. A imagem do corpo esfolado de Érica tomou Adriana de assalto, e ela engoliu em seco, parando antes de entrar no carro. Dante buzinou, avisando que estava pronto para ir, mas ela não se moveu, os dedos colados à porta semiaberta do carona.

— Tudo bem, Adri? — perguntou Luís, se demorando para entrar no carro. Os olhos castanhos dele se fixaram nos verdes dela. Tão logo ela assentiu, Luís respondeu com um meio sorriso sem graça. — Hora de irmos, então.

Adriana meneou a cabeça e fechou a porta do carro, mas a imagem do corpo de Érica Baldini não saiu de seus pensamentos até a manhã seguinte.

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