XXVI - Profundo feito o mar do Norte

     Não foi Rosie que atendeu a porta, mas Calvin reconheceu a menina aspirante à trapezista assim que viu a semelhança de Olivia com sua esposa. O homem já não tinha tanto cabelo quanto na época em que engolia espadas no picadeiro do Taurus, nem o mesmo porte físico, já que uma barriga de cerveja pulava para fora da calça. A barba grisalha e por fazer não via uma gilete há pelo menos uma semana.


– Calvin – foi a única coisa que Olivia conseguiu murmurar.

– Adam, como você mudou... – Calvin se dirigiu a Oscar.

– Não sou o Adam. Me chamo Oscar – estendeu a mão e se Olivia estivesse raciocinando direito, até estranharia a educação do rapaz – Sou amigo da Olivia.

– Prazer, Oscar. Por favor, entrem.


     Calvin abriu espaço para que os dois pudessem passar e Olivia não conseguiu evitar olhar ao redor assim que passou pela antessala e se viu numa sala maior do que todo o seu trailer. O homem indicou o sofá para que pudessem se sentar e no caminho até o estofado, ela pôde ver alguns porta-retratos com fotos de sua mãe ao lado do atual marido.


– Vocês aceitam tomar alguma coisa? – Calvin ofereceu gentilmente.

– Não, obrigado, acabamos de tomar café – Oscar respondeu pelos dois, já que Olivia ainda estava sem esboçar muitas reações.


     Oscar, que apreciava o silêncio mais do que qualquer outra pessoa, já estava incomodado com aquela falta de comunicação. Com um suave afago no joelho de Olivia, a fez despertar do transe que se encontrava.


– Eu recebi a última carta da minha mãe – Olivia finalmente falou – Então eu decidi vir falar com ela.

– Ah, claro... – o sorriso que Calvin se forçava a carregar se desfez – Não vai ser possível.

– Se ela estiver no trabalho eu posso esperar. Ou me passe o endereço de onde ela trabalha e eu vou até lá.

– Ela não está trabalhando, Olivia – Calvin se levantou e caminhou até a lareira, pegou um porta-retrato com uma foto recente de Rosie e estendeu para ela.


     Assim que encarou a fotografia em suas mãos, não a reconheceu. Rosie já não se parecia em nada com a mulher que se recordava. Seu rosto estava diferente, não havia mais vida nos olhos. Os cabelos antes tão cheios e escuros estavam ralos e sem brilho, os braços de quem fazia acrobacias no trapézio já não tinham mais músculos, estavam atrofiados e ela se encontrava em uma cadeira de rodas.


– O que ela tem? – Olivia perguntou com os olhos marejados – Está em uma casa de repouso? Eu posso visitá-la?

– Creio que você chegou um pouco tarde, Olivia – pegou o porta-retrato de suas mãos – Ela faleceu há duas semanas.


     Oscar estava pronto para segurá-la assim como prometeu que faria, mas o corpo de Olivia ficou estático no sofá e seu primeiro impulso foi rir da ironia da vida. Os dois a encaravam sem entender sua reação, até que ela se deu conta da finitude daquilo. Intimamente ela se forçava a derrubar as lágrimas que antes umedeceram seus olhos. Quando o choro finalmente saiu, Olivia percebeu que não era de tristeza. Nunca mais veria sua mãe, mas ela já estava acostumada com essa ideia há mais de uma década. Pior do que isso era saber que nunca iria obter as respostas que tanto acreditava precisar. Calvin pediu licença e foi até a cozinha para buscar um copo d'água para a moça ainda em choque.


– Eu sinto muito – Oscar falou num sussurro e a abraçou – Eu sei como é passar por isso e eu sinto muito que você tenha que passar também.


     Olivia enterrou o rosto no peito de Oscar e tentou parar de chorar, mas foi sem sucesso. Calvin retornou com a água e aguardou até que ela conseguisse controlar suas emoções. O antigo engolidor de espadas ainda não conseguia falar sobre a morte da mulher que dividiu sua vida por mais de uma década sem sentir um nó na garganta, mas sabia que a viagem de cinco horas da enteada não foi em vão e que a moça faria todas as perguntas que julgasse necessárias.


– Como ela ficou assim? – Olivia perguntou num fio de voz.

– Nós descobrimos a doença dela há oito anos. Ela estava passando por uma bateria de exames desde que passou a notar uma dificuldade pra escrever e andar, até que depois de passar por quatro médicos, sua mãe foi diagnosticada com Esclerose Lateral Amiotrófica.

– Por isso ela nunca foi atrás de visitar os filhos? – Olivia tentou não soar amarga, mas era impossível.

– Ela quis ir. Assim que descobriu a doença, pensou que morreria no mês seguinte e escreveu uma carta pra vocês pedindo para vê-los. Vocês nunca responderam.

– Então a primeira carta foi quando ela descobriu a doença – deduziu – Eu e o Adam nunca vimos essa carta. Mas ela poderia ter ido, vocês tinham o endereço.

– A doença dela evoluiu muito rápido e ela sentia muitas dores, não conseguiria viajar tanto tempo. Muitas das cartas que mandamos eram pedidos de visita, ela chegou a contar a situação, a existência da doença, mas nunca teve um retorno, então decidiu parar de mendigar contato e decidiu só pedir perdão – o tom de Calvin era acusatório, mas Olivia sequer conseguia julgá-lo.

– Essa foi a única carta que eu recebi – estendeu o envelope para Calvin – Talvez as outras não tenham sido entregues.


     Olivia decidiu omitir o fato de que seu pai queimou todas as demais cartas sem sequer abrir os envelopes, pois tinha certeza que apesar de tudo o que Rosie fez no passado, David jamais privaria seus filhos de um último adeus à mãe caso soubesse da situação na qual a ex-mulher se encontrava.


– Eu me lembro do dia que escrevemos essa – Calvin esboçou um sorriso triste – Sua mãe já sabia que o tempo dela estava se esgotando, então pediu para que eu a escrevesse enquanto ela ditava com dificuldade.

– Então não foi ela que escreveu?

– As mãos dela se atrofiaram há anos. Ela ditava palavra por palavra do que gostaria que eu escrevesse e ai de mim se colocasse uma vírgula diferente do que ela mandou – riu – Talvez você se lembre de como sua mãe era sistemática.

– Infelizmente não – suspirou – As lembranças que eu tenho são um tanto quanto vagas.

– E ela se culpava todos os dias por isso. Você pode ter certeza que muitas das cartas foram ditadas em meio a lágrimas.

– Lágrimas de remorso – Olivia falou sem pensar e Oscar que se mantinha em silêncio a encarou com os olhos levemente arregalados – Porque nos cinco anos antes de descobrir a doença ela não deu as caras.

– Eu entendo a mágoa que você carrega, mas tente perdoá-la. E me perdoe também. Afinal você veio até aqui depois de receber a carta porque de alguma maneira isso te tocou, estou errado?

– Eu só queria entender o porquê ela me abandonou – encolheu os ombros – O que você teve de tão especial que a fez abrir mão dos dois filhos.

– Isso é algo que só ela poderia te responder.

– Mas ela não vai e eu morrerei sem essa resposta.


     Olivia se levantou e estendeu a mão para que Calvin a devolvesse a carta. Com o envelope em mãos, fez menção de ir embora e Oscar a seguiu ainda em silêncio. Abriu a porta e antes que pudesse sair, o homem a puxou para um abraço desajeitado.


– Eu sinto muito por ter tirado sua mãe de vocês – Calvin falou com a voz embargada.

– Está tudo bem, foi uma escolha dela – deu dois tapinhas em suas costas tão desajeitados quanto o abraço – Onde ela está enterrada? Para que eu possa ao menos me despedir...

– Ela foi cremada e as cinzas foram espalhadas pela Whitby Beach.

– Eu não vou poder nem me despedir... – suspirou e se soltou dos braços apertados do homem – Adeus, Calvin. Sinto muito pela sua perda.


     Mais uma vez Olivia virou as costas e mais uma vez Calvin a chamou.


– Eu amei a sua mãe, Olivia. Eu a amei como jamais pensei que amaria alguém e ela me amou de volta. Ela disse nessa carta que se sentia completa comigo, mas nunca foi completa de fato. Sempre faltou vocês. Você pode até não acreditar em mim ou nas palavras dela, mas eu preciso dizer que ela sempre amou você e o Adam e não teve um dia que ela não esperasse por uma resposta ou uma visita de vocês. É uma pena que tenha sido tarde demais.


     Calvin decidiu não esperar por uma resposta da moça, já que imaginava que ela não viria. Virou as costas e fechou a porta, deixando os dois encarando a fachada vazia da casa. Olivia entrou no carro totalmente apática e pediu para que Oscar dirigisse até a praia informada pelo homem. O caminho se seguiu em silêncio, já que ela ainda remoía as notícias daquela manhã.

     Oscar estacionou a caminhonete na vaga mais próxima à praia que encontrou, mas ainda assim era distante. Os dois caminharam pelo píer sentindo uma brisa fria atingir seus rostos e tiraram os sapatos antes de pisarem na areia úmida. Talvez o clima cinzento tivesse afastado as pessoas, pois o lugar estava deserto.

     Olivia dobrou a barra da calça e deixou que a água gelada tocasse seus pés, a fazendo arrepiar. Ela se perguntava se foi exatamente ali que o que restou de sua mãe foi levado pelo mar, mas era impossível saber. Fixando o olhar nas ondas, começou a divagar sobre como seria sua vida caso Rosie nunca tivesse os abandonado.

     Será que se orgulharia da mulher e da trapezista que ela se tornou? Será que a história do Adam seria diferente e não acordariam com uma briga diferente a cada dia? Será que não viveriam com tantas dificuldades quanto viviam agora? Sabia que provavelmente seria tudo igual, mas aquela era uma vida que ela gostaria de ter tido a oportunidade de viver e não teve. E não teria.

     A poucos passos de distância, Oscar a observava encarar o mar em busca de respostas enquanto o vento dançava com seus cabelos soltos. Pensou em se aproximar, mas não queria ser um intruso naquele momento como se sentiu quando a acompanhou na casa da mãe. Então continuou a observá-la.


– Pra mim já chega – Olivia pegou uma pedra no chão e atirou no mar – Não adianta mais.

– O que não adianta mais? – Oscar manteve a distância, mas Olivia decidiu se aproximar.

– Eu e minha mania de achar que que alguma coisa seria diferente. Nada ia mudar, Oscar. E sabe por quê? Porque não importa quantas voltas diferentes o mundo desse, ela iria embora. Ela iria porque não estava feliz com a gente. Eu preciso parar de fantasiar que tudo seria diferente, porque não seria!


     Olivia bufou e se sentou na areia sem se importar que fosse se sujar. Oscar não sabia o que dizer, apenas se sentou ao seu lado e segurou sua mão.


– Você sabe o porquê eu chorei quando recebi a notícia?

– Por não conseguir chorar – Oscar deduziu.

– Por não conseguir chorar – Olivia afirmou – Por não sofrer, por não conseguir sentir nada. Eu fiquei triste pelo o que ela passou, fiquei frustrada por não ter as respostas que eu queria, mas eu não consigo sofrer pela morte dela. E eu deveria. Como filha eu deveria.

– Eu não vou te julgar por não chorar. Deve ser difícil sofrer por alguém que é uma desconhecida pra você.


     Oscar passou o braço por seu ombro e a trouxe para mais perto para se protegerem do vento gelado. Os dois passaram horas apreciando o silêncio enquanto admiravam o oceano. Olivia fixou seus olhos nos dele e com um sussurro o agradeceu. Qualquer outra pessoa entenderia que o agradecimento se dava apenas à carona, mas ambos sabiam que ia além. Olivia o agradecia por compreendê-la, por não julgá-la e por segurá-la quando ela parecia cair.

     Em resposta, Oscar segurou seu queixo e aproximou-se, fazendo seus lábios se tocarem. O beijo estava calmo feito as ondas daquela manhã tranquila e profundo feito o mar do Norte, mas as sensações que tomavam seus corações eram como as ondas quebrando sobre as pedras, feito tempestade em alto mar.

     As gotas de chuva geladas sobre a pele fizeram com que os dois abandonassem a praia – e os beijos – e adiantassem a volta para casa. A caminhada lenta até o carro por conta do pé ainda dolorido de Olivia fez com que suas roupas ficassem ensopadas e Oscar ficou aliviado quando viu que ao menos o ar quente da caminhonete ainda funcionava.

     Os beijos de Oscar fizeram com que Olivia se distraísse no tempo em que ficaram na praia e sua distração se prorrogou por algumas horas enquanto observava a vegetação passar pela janela. Sua ansiedade só voltou a atacar quando estavam próximos ao terreno do circo. O rapaz segurava sua mão e tentava acalmá-la, mas não parecia possível.

     Já estava anoitecendo quando Oscar estacionou em frente ao circo, mas não estava escuro o suficiente para que ninguém os visse chegar. Para o azar dos dois, era Hector que discutia com Richard por já ser quarta-feira e ainda não terem um gerador instalado. O homem chegou a gritar seus nomes e eles ouviram algo sobre roubarem a caminhonete e que pagariam por isso, mas tanto Oscar quanto Olivia estavam exaustos e sequer deram ouvidos, apenas caminharam até seus trailers.


– Você vai ficar bem? – Oscar perguntou baixinho para não chamar a atenção de ninguém do trailer em sua frente.

– Eu não tenho escolha – Olivia encolheu os ombros.

– Se precisar conversar, pode me chamar.

– Você já fez mais do que o suficiente por mim hoje. Descanse, vai ficar tudo bem.

– Não vou trancar minha porta. Se precisar de mim nem precisa bater, pode entrar, não importa a hora.

– Obrigada.


     Olivia esboçou um sorriso e se despediu de Oscar com um beijo no rosto. O rapaz entrou em seu trailer e ela precisou respirar fundo antes de abrir a porta. Assim que entrou em casa, velas iluminaram os rostos preocupados de Adam e David no sofá. Havia chegado a hora da verdade e ela não sabia como contar. Os dois se levantaram e a bombardearam com perguntas, mas ela pediu para que se sentassem.


– Eu preciso conversar com vocês dois – ela falou com uma calma que pensou que não seria capaz.

– Onde você se meteu?! – David não escondeu a preocupação.

– Eu estava em Whitby. Eu fui até a casa da minha mãe.

– Eu não acredito que você pegou a caminhonete pra ir atrás dela! – David se zangou.

– E como ela está? – Adam tentou não demonstrar, mas uma pontinha de interesse surgiu em sua voz.

– Ela... – Olivia bufou – Não tem uma maneira mais fácil de dizer isso. Ela morreu.


     Olivia esperava que seu pai fosse chorar, mas quem desmoronou foi seu irmão. Adam encolheu as pernas, enterrou o rosto entre os joelhos e chorou copiosamente. Soluços entrecortado por gemidos saíam de sua garganta e seu peito se contraía quando o fôlego faltava. David abraçou o filho e deixou algumas lágrimas teimosas correrem. Não queria chorar por quem o abandonou. Não iria chorar por quem o abandonou.

     Num supetão, David levantou e saiu pela porta dizendo que iria atrás de Richard. Sozinha com Adam, Olivia o abraçou e tentou acalmá-lo. Ela também chorava. Não por Rosie, mas sim por não conseguir ver seu irmão naquele estado. Jamais imaginou que aquela seria sua reação.


– Ei Adam, olha pra mim – segurou as mãos do irmão – Você precisa respirar, se acalmar.

– Eu desejei, Olivia – Adam falou entre soluços – Eu desejei que ela morresse por tantos anos. Agora ela morreu e eu sinto como se fosse minha culpa.

– Não foi sua culpa, ela estava doente. Não foi culpa de ninguém – falou com os olhos fixados nos dele.

– Você não entende. É diferente eu dizer que ela está morta pra mim com a esperança de que ela vai voltar pra me provar o contrário. Ela não vai voltar. Agora ela está morta de verdade.

– Ela não iria voltar, Adam – Olivia voltou a chorar – Eu percebi na conversa com o Calvin que ela não voltaria por nós.

– Você não sente a morte dela? Nem um pouco? – perguntou um tanto desacreditado.

– É difícil sofrer por uma desconhecida – repetiu o que Oscar lhe falou – E eu queria. Por Deus, como eu queria! Mas eu não consigo sequer me lembrar do rosto dela sem a ajuda de uma foto... e eu destruí a última que me restou.


     Foi então que Olivia desabou. Chorou por não ter mais nenhuma lembrança da mãe para se apegar quando a mágoa passasse. Ela sabia que passaria uma hora ou outra. Tinha a plena consciência que não seria capaz de sofrer por sua morte, mas sim por seu abandono. Adam soltou as mãos da irmã e foi até o quarto com dificuldade, mas não demorou a voltar.


– Eu escondo isso há anos – Adam estendeu um papel para Olivia.


     Olivia pegou a fotografia de sua mão e mais lágrimas brotaram em seus olhos. Completamente diferente da mulher doente no porta-retrato sobre a lareira da casa em Whitby, uma Rosie sorridente em seus trajes circenses posava ao lado de David vestido de palhaço. Um Adam banguela de nove anos ostentava um figurino igual ao do pai e uma Olivia gorducha de cinco anos abraçava o pescoço da mãe. E todos pareciam felizes sob a lona do circo.


– É a única que eu tenho – Adam esboçou um sorriso – Agora é nossa.

Olá meus amores, como estão?

Demorei dois meses pra postar e não me orgulho nem um pouco disso, mas como disse antes, não tenho conseguido escrever esse livro, e de agosto pra cá, nem mesmo tempo. Meu trabalho está tirando minha paz, eu chego em casa e só consigo dormir.

Enfim, voltando ao foco, o que acharam do capítulo?

Rosie está morta, Adam se sentindo culpado e Olivia não sentindo absolutamente nada. 
Vocês perdoaram a mãe dela depois de tudo ou assim como a Liv, acreditam que nada seria diferente?

Vejo vocês um dia (porque "em breve" tá difícil).
Beijinhos e não desistam de mim ♥

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top