XXIV - Terrivelmente egoísta

     Os olhos de Megan corriam do envelope lacrado em suas mãos para a feição indecifrável de sua amiga. Olivia não tinha certeza do que estava sentindo, sua vontade naquele momento era de vomitar todo o café da manhã. Largou toda a arrumação de lado e sentou-se na cama sem saber o que fazer com aquilo.


– Você vai abrir? – Megan perguntou um tanto preocupada.

– Eu não sei – Olivia murmurou ainda encarando o envelope – Estava nas coisas do meu pai.

– Ela foi endereçada a você e ao Adam – sua amiga apontou para os nomes destinatários – Você tem o direito de abrir.


     Apesar do medo do que encontraria escrito dentro daquele envelope, a curiosidade e a vontade de abrir eram maiores, então ela rasgou o canto do papel e puxou uma folha dobrada em três partes. Megan estava tensa com o conteúdo, pois por mais que culpasse Rosie pelo abandono, sabia que sua amiga sentia muita falta da mãe e sempre quis entender o motivo da mulher ter deixado os filhos para trás. Olivia desdobrou o papel e viu que a data era recente, a carta havia sido escrita há pouco mais de um mês.


"Adam e Olivia,

Depois de tantas cartas sem resposta eu sei que não querem mais saber de mim. Mas parte de ser mãe é nunca desistir de seus filhos e eu não desisti de vocês quando fui embora. Não, eu jamais o faria. Ir embora foi... necessário. Eu poderia dizer que foi um erro, mas isso seria mentira. Eu precisei fazer aquilo pois eu estava desaparecendo, estava deixando de existir dia após dia e com Calvin eu me reencontrei e também conheci uma felicidade tão plena que David nunca pôde me proporcionar. Isso soa terrivelmente egoísta (e foi terrivelmente egoísta) e eu peço o perdão de vocês. O pedirei enquanto tiver forças para isso.

Não posso dizer que fiz isso por ser jovem e inconsequente, pois eu não era. Eu só precisava de uma vida que não teria com o pai de vocês e fiz o que foi preciso. Pensei em levá-los comigo, pelo menos Olivia que ainda era uma criança, mas levá-la para uma vida nova e desconhecida seria arriscado demais para uma menininha.

Então eu os deixei. Pensei que foi o melhor para vocês e talvez tenha sido, talvez não, jamais saberemos. Tudo o que sei é que eu os amo, sempre amei, mesmo de longe, mesmo sabendo que provavelmente meus filhos me odeiam – e com razão. Mas vocês são adultos agora, talvez estejam casados, talvez tenham filhos, talvez tenham vivido experiências que possibilitem o entendimento dos meus motivos e minhas decisões. Seria uma esperança exagerada? Esperar que você, Adam, que você, Olivia, pudessem me entender e me perdoar?

Vivo com a culpa há treze anos e sei que meu amor por Calvin não é desculpa para tê-los abandonado, mas eu preciso que entendam e que me perdoem pois sei que o passado não pode ser mudado, mas por hora, o futuro pode. Nesse papel está toda a minha fé em nossa reconciliação, pois não tenho mais forças para bater numa porta trancada, mas tenho mais forças para gritar e receber silêncio.

É minha última carta para vocês, meus filhos, mas eu não desisti. A esperança de vê-los e abraçá-los de novo ainda vive em mim e viverá enquanto viver. Mas se não puderem me perdoar, eu entendo. E os amo mesmo assim.

Um beijo e adeus, meus filhos.

De sua mãe, Rosie"


     Olivia terminou de ler a carta e suas mãos tremiam. Que outras cartas? Nunca recebeu nenhuma carta de sua mãe, e só Deus sabe o quanto ela desejou ao menos um sinal de vida daquela que a abandonou. Megan abraçou a amiga e fez carinho em seus cabelos enquanto lia o papel um tanto amassado pela força que a trapezista o segurava.


– Liv, você quer conversar? – Megan segurou seu rosto, a fazendo olhar nos olhos.

– Eu preciso achar as outras cartas.


     Desvencilhando seu rosto das mãos da amiga, Olivia se levantou e jogou todas as roupas do pai no chão, revirando o pequeno armário atrás de mais envelopes escondidos. Naquela altura a arrumação já não valia de nada e Olivia não se importava, só queria encontrar aquelas malditas cartas que Rosie disse ter enviado. Megan tentava acalmá-la, mas sabia que seria em vão.


– Olivia, olha pra mim! – Megan segurou seu braço – Você precisa se acalmar!

– Megan eu preciso encontrar! Deve ter alguma por aqui, em algum lugar!


     Megan achava que uma carta não mudaria em nada o fato de que Rosie abandonou os filhos e também que ela não merecia o perdão dos dois, mas decidiu guardar sua opinião no bolso para poder ajudar a amiga desesperada por qualquer resquício da culpa de sua mãe gravado em um papel. Levantou-se e passou a revirar o armário junto de Olivia.

     Quando já não havia mais onde procurar, Olivia se jogou na cama e deixou algumas poucas lágrimas correrem pelo rosto. Não era só por conta de sua mãe, mas também por David, que ela sempre confiou e de repente descobriu que ele traiu sua confiança ao esconder aquela carta.

     As duas estavam em silêncio há algum tempo enquanto Olivia tentava digerir tudo aquilo quando a porta do trailer se abriu e um Adam cheio de hematomas entrou acompanhado de seu pai e soltou um alto gemido de dor ao se sentar no sofá. Megan olhou de soslaio para a amiga quando David entrou no quarto.


– Passou um furacão nesse quarto? – David falou após cumprimentar Megan.

– Cadê as outras cartas? – Olivia jogou a pergunta sem nem mesmo pensar.

– Que cartas?

– Eu... acho que vou pra minha casa – Megan falou e se levantou, apressando o passo até a saída.

– As cartas que minha mãe mandou e você escondeu! – Olivia gritou.

– Filha, eu não sei do que você...

– Ah, o senhor sabe sim! – o interrompeu e estendeu o envelope – Eu quero saber das outras!


     Ao reconhecer o envelope, David engoliu seco.


– Olivia, não era pra você encontrar... – murmurou.

– Assim como eu não encontrei nenhuma das outras que ela diz aqui que escreveu! Cadê?!

– Não tem outra. Eu queimei todas.

– Eu não acredito! – mais um grito saiu de sua garganta – Você sempre soube o quanto eu sofri querendo saber o motivo dela me abandonar e escondeu isso de mim!


     Olivia começou a chorar no mesmo instante. Mesmo com a certeza que seu pai havia escondido aquela carta, um pedaço seu queria acreditar que as outras jamais chegaram e que aquela estava apenas aguardando para ser entregue. Ela queria ser inocente o suficiente para acreditar que David não havia escondido de propósito, mas sabia que não era bem assim. Adam ao ouvir o grito da irmã, apareceu com o rosto contorcido em dor e as mãos nas costelas.


– O que aconteceu? – Adam perguntou.

– Isso aconteceu – virou o envelope em direção ao irmão – Você sabia que nossa mãe nos escreveu algumas vezes e o pai decidiu por nós dois que seria melhor queimar tudo?!

– Eu decidi não deixar vocês sofrerem por alguém que não ia voltar! – foi a vez de David gritar.

– Mas essa era uma decisão nossa! – Olivia retrucou – Eu sofri metade da minha vida achando que minha mãe tinha me esquecido sendo que ela não esqueceu!

– Mas ela também não voltou – foi a vez de Adam falar, e sua voz era recheada de amargura – O mesmo endereço que ela mandou as cartas ela poderia ter visitado. E ela não veio.

– Sério que você vai ficar do lado de quem escondeu de nós por tantos anos que ela ainda se importava?! – apontou para o pai.

– Liv, se ela se importasse ela viria até aqui pra ver se os dois filhos que ela largou ainda estavam vivos. Quem me garante que essas cartas não foram pensadas pra causar comoção? Ela pode muito bem ter escrito todo um roteiro pra seguir. Quero ver cara a cara se tem palavras bonitas recheadas de perdão.

– Você realmente não se importa com o que ela tem a dizer? – Olivia ficou desacreditada.

– Não. Pra mim ela morreu no dia em que foi embora e o pai fez o melhor que pode pra criar a gente sem ela – Adam lançou um olhar para David – Mesmo a gente não sendo o filho perfeito.


     Mesmo sem usar as palavras certas, aquela foi a forma que Adam encontrou para agradecer o pai por se preocupar e cuidar dele mesmo quando ele não merecia. Cansado e com dor, deixou os dois discutindo e voltou para a sala. Olivia observou o irmão sair e logo se voltou para David.


– Você pelo menos se deu ao trabalho de saber o que ela tinha a dizer antes de queimar as cartas?

– Só abri as duas primeiras. Depois eu sabia que seria só mais do mesmo. As mesmas desculpas.

– As mesmas desculpas que eu tinha o direito de ler. O direito que você me tirou.

– O que você quer que eu diga agora? Que eu peça desculpas? Tudo bem, me desculpa, mesmo eu não me sentindo culpado por proteger meus filhos da mulher que os deixou. Eu sei o quanto foi difícil criar vocês dois sem nenhuma ajuda enquanto ela estava vivendo a vida dela longe daqui. Você tem todo o direito de estar decepcionada comigo e com as minhas escolhas, mas eu quero que você tenha a decência de se lembrar que enquanto ela escrevia cartinhas de perdão, quem estava trabalhando dobrado pra criar dois adolescentes fui eu. Quem acompanhou toda a evolução de vocês dentro desse circo fui eu. Quem ficou no hospital quando você fraturou o tornozelo fui eu. Onde ela esteve durante todo esse tempo? Se preocupando através de um papel e somente isso.


     David estava cansado demais para continuar a discussão, então depois de seu desabafo deu as costas para a filha e foi descansar no sofá ao lado de Adam. Olivia já havia desistido de arrumar a casa há muito tempo – desde quando encontrou o envelope – então embolou as roupas do pai que estavam pelo chão e jogou no armário, precisando forçar a porta a se fechar.

     Sem ao menos aguentar olhar para o pai, Olivia guardou a carta debaixo de seu travesseiro e caminhou até o circo. Viu o seu trapézio pendurado e não quis soltá-lo. Dessa vez quis ir além, então puxou o trilho de seu tecido até o meio do picadeiro. Desde o dia em que fraturou o tornozelo não arriscava embolar suas pernas por ali, mas decidiu que havia chegado a hora.

     Com as duas mãos segurando firme o tecido, enrolou o tornozelo da perna direita e forçou os braços até ficar distante o suficiente do chão. Não estava tão alto quanto gostaria, mas preferiu não se arriscar tanto nos ares. Travou o pé direito e manteve a perna esquerda livre, segurou cada uma das partes do tecido e curvou seu corpo para fora, lembrando de um dos movimentos mais simples que aprendeu logo quando começou com as acrobacias.

     Balançou dessa maneira até o anoitecer, só aí se deu conta que com a situação de Adam seu pai ainda não havia encomendado o gerador e continuavam no escuro. Quando foi descer, soltou a perna direita, mas acabou enroscando o tornozelo esquerdo sem perceber. Se agarrou ao tecido ao perceber que cairia de costas no chão, mas mesmo conseguindo poupar a dor na coluna, não conseguiu evitar que o tornozelo operado ficasse preso no amontoado de pano, causando uma dor aguda.

     Quando finalmente conseguiu se soltar, Olivia deixou o tecido no meio do picadeiro e seguiu mancando até em casa. Para sua sorte ainda não estava tão escuro, então conseguia enxergar o caminho. Entrou em seu trailer e encontrou Adam dormindo na cama de David, que não estava em casa. Depois do dia complicado que teve, não tinha muito o que fazer além de deitar em sua cama e remoer cada linha daquela carta e cada palavra de seu pai.

     Entre alguns cochilos maldados em meio à escuridão, Olivia não viu quando seu pai chegou. Só ouviu alguns roncos pela casa e decidiu que era a hora perfeita para agir. Em silêncio, pegou a primeira roupa que tateou no armário, colocou de qualquer jeito dentro de sua bolsa e seguiu em passos leves até a cozinha. Percebeu que o irmão também dormia por conta de sua respiração pesada e agradeceu aos céus por isso, pois não queria dar explicações.

     Pegou a chave da caminhonete no balcão da cozinha e saiu caminhando furtivamente por todo o terreno, torcendo para não tropeçar em nada no caminho até o carro estacionado em frente ao circo. Seu coração estava tão acelerado que era capaz de ouvir seus batimentos ecoarem por todo o interior do automóvel. Assim que afivelou o cinto de segurança, pegou o envelope de dentro da bolsa e encarou o endereço do remetente.


– O Adam tem razão, mãe. Eu quero ver o que você tem a me dizer cara a cara.


Olá meus amores! Como estão?

Cheguei aqui mais cedo do que esperava, mas tudo bem, eu que lute depois pra escrever mais capítulos kk

O que acharam desse capítulo tenso e cheio de conflitos? Será que a Olivia vai conseguir encontrar a mãe? Será que a mãe foi sincera nas cartas? O que vocês acham? Me digam!

Beijinhos e até breve! ♥

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