XX - Lâminas fincadas

     Deitado no escuro com Wally como companhia, Oscar tentava dormir, mas o perfume sutil de Olivia impregnado em si não pretendia deixar. Ela poderia não se lembrar do primeiro beijo, mas os que trocaram naquela noite ele tinha certeza que ela não se esqueceria. Já no trailer vizinho, nem mesmo as reclamações de David sobre o paradeiro de Adam em mais uma madrugada foram capazes de mudar o humor de Olivia, que deixou o pai reclamando sozinho e foi se deitar sentindo o gosto de Oscar em seus lábios.

     Mesmo indo dormir de bom humor, Olivia não acordou tão feliz assim com os gritos rotineiros de David e Adam. Seu pai questionava onde o filho passou a noite, seu irmão gritava que já tinha trinta anos e mandava em sua própria vida. Ela até pensou em entrar na discussão, mas às oito da manhã tudo o que ela queria era um pouco de paz, ainda mais tendo dormido tão pouco. Fingindo não ouvir nada do que eles falavam, soltou um bom dia e saiu.

     David a chamou pelo menos três vezes, mas Olivia não pretendia entrar em mais uma briga que não era dela e que não daria em nada. Como de costume, andou por todo o terreno até chegar no trailer de Megan, o único lugar que sempre tinha as portas abertas e que a trazia paz. Girou a maçaneta e, para sua surpresa, estava trancada. Mais uma tentativa e nada.

     Fazendo todo o caminho de volta e pronta para encarar o caos em sua casa em pleno dia de folga, pensou em ir até o trailer de Oscar. Antes mesmo de amadurecer a ideia, riu de si mesma ao se dar conta de como isso parecia estúpido. E se para o rapaz ela foi só um desafio da brincadeira da noite anterior? Olivia era madura o suficiente para continuar a amizade mesmo que ele não quisesse mais do que isso, já que ela mesmo não sabia se queria algo a mais, mas e se o atirador de facas entendesse que a visita dela fosse recheada com segundas intenções e não somente para fugir de sua família?

     Com a certeza de que não iria atrapalhar o sono de seu vizinho – ainda mais depois da noite anterior –, Olivia suspirou antes de entrar em casa. Espantou-se ao ver que Adam já estava deitado no sofá pronto para dormir e seu pai fervia água para fazer um chá, o que significava que a discussão havia acabado mesmo tendo ficado poucos minutos fora. Empurrou as pernas do irmão e sentou-se na beirada livre do sofá, pegou o controle da televisão e só então se deu conta que ainda estavam sem energia elétrica.


– Quando eu falar com você, vê se me responde, por favor – David falou para a filha num tom sutil enquanto virava a água fervente em sua xícara – Não quero outro Adam dentro de casa.

– Eu só fui na Megan, mas ela não estava – Olivia deu de ombros.

– A Megan acordada e fora de casa esse horário? – Adam tirou o travesseiro de cima da cabeça e sorriu para a irmã – Pode ter certeza que tem algo aí.

– Tem muitos "algos" acontecendo nesse circo, Adam, mas se fosse algo com ela, pode ter certeza que eu saberia – falou convicta – E outra, alguém sair de casa de manhã é normal, chegar esse horário em pleno apagão, não – Olivia sussurrou para o irmão.

– Muitos "algos", é? – David perguntou da cozinha, prestando atenção nos filhos.

– Moram mais de vinte pessoas aqui, pai, o que o senhor esperava? – Olivia sentiu um leve arrepio ao se lembrar do seu "algo" da noite anterior.

– Esse circo já foi bom, hoje são só esses jovens que passam a noite aprontando, no meu tempo à essa hora a maioria do elenco já estaria treinando mesmo estando de folga, um respeitava o outro, não era essa pouca vergonha...

– No seu tempo era tão bom que até traição rolava por debaixo dos panos né? Ou eu devo dizer por debaixo da lona? – Adam riu.

– Eu não acredito que você disse isso...


     Olivia, que até então estava desfrutando da companhia de sua família em um dos raros momentos de paz, viu a tranquilidade ruir com o comentário ácido do irmão sobre a traição e abandono de sua mãe. Ela nunca havia visto o rosto de David tão vermelho como no momento em que Adam relembrou a traição de Rosie. Seu pai largou a xícara no balcão e foi até o filho deitado no sofá já com o dedo em riste, gritando mais do que nunca.


– É incrível como a gente não consegue ter uma conversa civilizada nessa casa!


     Depois de jogar uma almofada no irmão, Olivia saiu do trailer pisando duro e foi até o circo. Assim como imaginava, estava vazio, então aproveitou que estava sozinha e soltou seu trapézio. Não pretendia treinar sem a companhia de Oscar, queria apenas sentar e balançar da mesma forma que fazia quando era criança depois de assistir os treinos da mãe.

     Enquanto balançava as pernas no ar, tentava se lembrar do rosto da mãe. Era como se os anos mudassem um detalhe ou outro do que ela se lembrava e aí ela já não tinha certeza se a mulher que imaginava era Rosie. Às vezes pegava a única foto que tinha ao lado da mulher para ter a certeza que sentia saudades da pessoa certa. Mas sua mãe parecia não sentir o mesmo. Olivia não entendia como alguém poderia abandonar os filhos e nunca mais procurar, nem mesmo fazer uma ligação para saber se estava tudo bem. Rosie os apagou de sua vida sem se importar com os resquícios de borracha que deixou para trás.

     Com uma mágoa que não sentia desde o dia em que a mulher foi embora, Olivia foi até seu trailer a passos doloridos e buscou pela fotografia da mãe na gaveta. Seu irmão e seu pai sequer perceberam a sua presença, já que mais uma vez David expulsava o filho de casa mesmo sabendo que ele voltaria assim que seu dinheiro acabasse – o que provavelmente seria naquela noite.

     As dores em seu tornozelo não a fizeram parar, então na mesma velocidade em que foi até sua casa, voltou para o circo e centralizou o alvo em que era amarrada todas as noites no centro do picadeiro. Com uma fita adesiva prendeu a fotografia no alvo. Deu uma rápida olhada naquela foto em que estava sentada no colo de sua mãe naquele mesmo trapézio que hoje era seu e buscou as facas.

     As oito facas já haviam sido lançadas pelo menos três vezes, mas nenhuma acertou a fotografia. A vista de Olivia estava embaçada por algumas lágrimas teimosas que insistiam em borrar sua visão, mas ela não desistiria até que destruísse aquela última memória. Ela se sentia no direito, já que sua mãe fez o mesmo há treze anos.


– VOCÊ. ME. ABANDONOU! – cada palavra era uma faca em direção a foto – AGORA. EU. VOU. TE. ESQUECER!


     Foi em meio a essas palavras que ela acertou a fotografia em quatro lugares diferentes. Por mais que afirmasse que iria esquecê-la, no fundo Olivia sabia que isso não passava de palavras ao vento. Ela ainda era sua mãe e diferentemente de Adam, ela sentia sua falta. Não seriam as lâminas fincadas num pedaço de papel que mudaria isso. Decidida a destruir aquela imagem, Olivia passou a hora seguinte atirando facas repetidamente no alvo de madeira. Só parou quando ouviu a voz atrás de si.


– Tá tudo bem?


     Olivia se virou com uma faca na mão e Oscar pode ver nos olhos vermelhos e olheiras fundas que sua pergunta foi um tanto quanto infeliz. Ela esboçou um sorriso e sua voz falhou ao responder que estava bem, mas sua resposta não convenceria nem mesmo uma criança.

     Com a visão mais uma vez borrada pelas lágrimas, ela não viu quando Oscar se aproximou. Ele tirou a faca de sua mão e a abraçou. O rapaz nunca demonstrava nada a ninguém e ficou com receio de que Olivia entendesse aquele gesto de outra forma que não fosse apenas o apoio que ela necessitava, já que ele não queria que o abraço parecesse trazer apenas segundas intenções – que existiam de fato, mas que foram colocadas totalmente de lado naquele momento.

     Aconchegada no abraço do rapaz, Olivia se permitiu chorar. Oscar se manteve em silêncio, apenas fazendo carinho nos cabelos longos e escuros até que ela decidisse falar – ou até mesmo se ela escolhesse não dizer nada; não importava sua escolha, ele a respeitaria.

     Olivia já conseguia controlar suas lágrimas, mas seu coração parecia pular dentro do peito. O abraço durou tempo o suficiente para que ela pudesse equalizar seus batimentos cardíacos com os de Oscar, que estavam tão acelerados quanto os dela. Ao se dar conta que talvez estivesse há muito tempo sentindo o perfume de sua camisa, ela o soltou.


– Me desculpa por essa cena e por isso aí – apontou para as marcas de lágrimas na camisa de Oscar – Eu só...

– Não precisa me contar se não quiser – a interrompeu – Todos nós temos os nossos demônios internos e às vezes não conseguimos suportá-los.

– O meu me abandonou há treze anos.


     Olivia apontou para a fotografia perfurada no alvo e Oscar a pegou.


– É sua mãe? – ele perguntou ao analisar a foto e Olivia assentiu – Você se parece com ela.

– Eu sei. E mesmo assim eu preciso dessa foto pra tentar relembrar como ela é. Mas agora eu não preciso mais.


     Olivia pegou a foto da mão do rapaz e a rasgou em quantos pedaços conseguiu. Talvez se arrependesse mais tarde de ter destruído a última lembrança que tinha de Rosie, mas sua mãe destruiu tudo muitos anos antes. Oscar não falava nada, pois entendia exatamente como ela se sentia. Nunca julgou a escolha de sua mãe, mas por vezes no silêncio das noites insones, perguntava aos céus o motivo que a levou a colocar um fim em sua vida. Já de seu progenitor – pois se negava a chamá-lo de pai – nutria verdadeiro ódio.


– Como você sabia que eu estava aqui? – Olivia decidiu falar depois de jogar os pedaços de fotografia no lixo.

– Eu não sabia. Estava vindo me exercitar, meu celular descarregou e acho que a energia não vai voltar tão cedo, então preciso passar o tempo.

– O meu descarregou antes mesmo do transformador explodir.

– Azar o nosso – Oscar deu de ombros.

– Ou será que foi sorte a nossa?


     Olivia falou sem perceber e Oscar sorriu, a deixando com as bochechas levemente coradas. Não queria ter sido tão direta, mas quando se deu conta já estava se lembrando daquela madrugada em que os dois finalmente cederam à tentação que vinha os atormentando há algumas semanas.


– Então, você quer treinar né? – Olivia apressou-se em mudar de assunto – Vou te deixar em paz com seus pesos e kettlebells.

– Não é que eu queira, é que é a única coisa pra se fazer hoje – deu de ombros.

– Sorte a sua, a única coisa que eu tenho pra fazer hoje é ouvir a sinfonia de gritos dentro de casa – revirou os olhos – Eu juro que vou surtar e quando vocês menos esperarem vou fazer igual a minha mãe, vou embora e vou deixar todo mundo pra trás.

– Você pode ficar aqui se quiser. A gente treina o nosso número.


     Apesar de não ter soado como um pedido, intimamente Oscar torcia para que ela aceitasse. Olivia assentiu e foi até o alvo, sendo seguida pelo rapaz que já prendia seus pulsos nas tiras de couro. Nas últimas semanas os dois conversavam sobre incluir uma venda na moça para o número ficar mais emocionante, e assim vinham fazendo durante alguns ensaios e aos poucos incluíam nas apresentações.

     Conforme o combinado, ele passou a venda pelos olhos da moça afivelada ao alvo e ela sorriu ao sentir um arrepio com o toque do rapaz ao dar um nó no tecido atrás de sua cabeça. Oscar encarou o sorriso de Olivia tão perto do seu e não resistiu a aproximação, lentamente se aproximou de seus lábios e depositou um beijo calmo ali.

     "Eu vou ver se ele tá no circo", os dois ouviram a infeliz voz de Hector se aproximar do picadeiro e Oscar se afastou de seus lábios, apressando-se em desfazer o sorriso que inconscientemente surgia em seu rosto todas as vezes em que estava na companhia de Olivia.

Olá meus amores! Como estão?!
Sei que estou em débito com as postagens, mas eu ando com um bloqueio enorme e tenho poucos capítulos prontos.

A boa notícia é que eu reli os próximos capítulos e me deu vontade de escrever - a ruim é que além da falta de tempo por conta do trabalho, eu sou preguiçosa.

É isso!

Sei que o capítulo está sem gracinha, mas ele é essencial para os próximos (quem já conhece as minhas obras sabe que a autora que vos fala não dá ponto sem nó).

Espero que tenham gostado!
Vejo vocês em breve.

Beijinhos! ♥

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