Paradoxo de Kevin

— "Tudo que você faz, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo. Odeio tudo que você faz."

— Falta de amor próprio é perseguir a si mesmo. — Digo

— "Odeio tudo que você faz, tudo, tudo, tudo,tudo."

— Você... Se persegue.

— "Tudo, tudo, tudo."

— Não é mesmo Kevin? — A voz do psicólogo me despertou dos meus pensamentos.

— É, exatamente. — Nossa, estou tão distraído.

— Me conte mais sobre isso. — Ele se posicionou em sua poltrona, com caderno em mãos, interessado em me ouvir. Ele é um homem preto, alto, aparenta ter uns cinquenta anos. Bem elegante e inteligente. Seus óculos combina com seu rosto, seus cabelos estão quase ficando brancos, porém combina com seu estilo.

— Não há nada para contar, apenas isso.

— Você tem certeza? — Ele me olha fixamente, é um bom psicólogo. Depois de passar por alguns, esse ao menos me deixa mais confortável. 

— O que está pensando Kevin?

— O porquê de eu estar aqui. — Meus pensamentos esta a mil. Aquela sensação de odiar a si mesmo, é isso. Há coisas que... Não sei... Uma... Dor

— Você está se cuidando, se conhecendo, isso não é besteira Kevin. Esse lugar é todo seu. 

— Isso é o que você diz.

— O que isso quer dizer?

— Eu... Eu não sei. Não quero forçar.

     Sinto vergonha de tudo aquilo que sou e faço. Não gosto do meu jeito, da minha voz, de mim mesmo.

— Porque? Você é um garoto talentoso, canta bem, li uma de suas poesias, porque pensa assim de si mesmo?

— Que bela pergunta.

— Reflita nisso. Com certeza há qualidades incríveis dentro de você. E eu citei umas — Ele sorrir pra mim, e é confortador. E seus olhos continuam em mim.

— Eu não me vejo assim ...

— Quando isso aconteceu? Você se lembra mais ou menos quando ficou assim? 

— Desde a minha adolescência, não me lembro exatamente.

— Podemos trabalhar nisso. Mas por hora, quero dizer que você tem seu valor Kevin, há algo dentro de ti que é especial, use o que ama. Esse sentimento vem de uma preocupação com a impressão alheia. Estamos há meses aqui e vejo que você tem estado preso ao pensamento de outras pessoas. "Ah, o que vão achar de mim? O que falarão se eu fizer tal coisa?" Essas pessoas não pagam suas contas, concorda comigo? 

— É talvez. Acho interessante o que você disse. 

— A nossa sessão terminou Kevin, mas quero dizer a última coisa. Você tem seu valor, o que você faz importa.

— Obrigado... — Me levanto do sofá e dou uns passos até a porta, quando toquei na maçaneta ele me surpreendeu assobiando.

— Kevin, você sabe o que há por trás dessa porta?

— A saída?

— Resposta superficial, mas foi certa de alguma forma.

-— Tá... — Achei essa abordagem estranha, ele nunca fez isso. Tento abrir a porta mas, ele me chama.

— Não, não quero que vá. 

— O que você quer? Você não disse que tinha terminado a sessão?

— Quero falar de lágrimas. — Em nenhum momento ele olhou para mim quando disse que encerrou a sessão, só está olhando para o seu caderno.

— O quê?

— Foi o que você ouviu.

— O que isso quer dizer?

— Você escuta essas lágrimas?

— Quê? Não.

— Certeza? Digo de lágrimas na alma. — Ele volta a me olhar, agora sério.

— Isso aqui está estranho. — Giro a maçaneta, quando saio do consultório, me deparo na sala de novo e vejo o psicólogo ali, sentado. Olho para trás, e a porta está lá, fechada.

— Entendeu a minha pergunta? O que você vê na porta?

— O que você fez?

— Eu fiz? Ou é a forma como você enxerga a si mesmo?

— Para com isso.

    Me sinto trêmulo, abro a porta tentando sair, quando abrir, lá estou eu de novo na sala. Abro novamente a porta, e mais uma vez na sala, e aquilo se repete, é um looping. Estou ficando irritado, corro abrindo aquela coisa, mais uma vez eu paro na sala, e ele sentado me observando.

— O que você fez? O que é isso?

— Kevin, você está preso na sua dor, por isso que irá parar sempre aqui na sala, não importa quantas e quantas vezes você abra aquela porta. Você sempre estará aqui. 

— Eu, eu.... Mas o que é isso? Eu, eu não tô entendendo.

— Hum, ansiedade.

— Eu... Eu... 

— Respira Kevin.

     O ar saiu de meus pulmões, poderia descrever de mil formas o que é isso mas eu não consigo. Isso só pode ser pesadelo, eu não consigo respirar... Ele estava me orientando mas não conseguia prestar atenção...

— Xiiii... Você precisa aprender a sair dessa caverna. — Disse ele se aproximando de mim, com uma expressão vazia e cinzenta. Ele faz um gesto com as mãos, ele estala os dedos e de repente, todo o cenário se transformou num palco de teatro, as luzes todas se focaram em mim. Me encontrava sozinho lá, o psicólogo esta na cadeira da frente, me vendo em cima daquele palco e todas as pessoas começaram a me aplaudir. Não estou entendendo, só sinto vergonha, constrangimento, todas aquelas pessoas me olhando ali em cima. Eu não me atentei, mas na minha mão tem algumas folhas de papel, é o... Roteiro? Não esta escrito nada nela, apenas o título.

"Saia na Caverna ou morra no palco"

    Mas que título é esse? E tudo em branco? A galera em paralelo esta delirando, foi quando entrou uma outra pessoa no palco. Vestida toda de roupa preta, usa um chapéu enorme, e é recebido por muitos aplausos. A pessoa usa uma máscara com bico de tucano, e é um pouco cômico e bizarro. Depois entrou uma moça, com vestido de bailarina rosa e com asas. Estou entendendo nada disso o que está acontecendo, me sinto dormindo por dentro, paralisado, em um grande pesadelo sem fim. 

    Não sei usar palavras direito agora. Eles se aproximaram de mim e fizeram uns improvisos estranhos com uma dança, fiquei perdido no que fazer. Até que todos olham para mim. Ambos estão esperando eu fazer alguma coisa mas, não sei o que fazer. A plateia ficou em silêncio e a vergonha bateu a porta.

— Eu sabia que isso iria acontecer. Você foi irresponsável e acabou com peça, hein Kevin, obrigado por ferrar a minha carreira. — Disse o homem de preto.

— Você não leu o roteiro Kevin?

— Que? Eu... eu... Tudo muito...

    Rápido, rápido, rápido demais. As pessoas da platéia ficaram de pé, dessa vez em silêncio. Todos eles começaram a apontar o dedo para mim. Inclusive os dois que estão no palco comigo. Eu não consigo descrever o sentimento direito, é uma vergonha, humilhação, tudo misturado. Aquele psicólogo louco foi o único que não apontou o dedo para mim, mas me observa, e de longe no meio daquela cena toda eu ouvir ele dizer.

— As lágrimas...

     Acordo, e me vejo naquela sala de novo com psicólogo. Ele esta em pé de frente a janela, observa o céu e todo o cenário lá fora. Logo na frente tem um copo com café e um pedaço de bolo.

— Pode pegar, aposto que está com fome.

— O que aconteceu... — Estou muito confuso, eu dormir esse tempo todo?

— Do que está falando? — Observo uma ponta de confusão em seu rosto

— De tudo, do teatro, as pessoas...

— O que você acha que aconteceu?

— Eu... Minha cabeça tá doendo...

— Normal, a terapia é uma profunda viagem, você está nessa viagem rumo a cura. Você ficará bem.

— Você não se lembra? 

— Do que eu devo me lembrar Kevin? 

— Da peça, do teatro. Me senti tão... Tão exposto.

—Mais uma vez, porque eu deveria? 

— Porque você estava lá. Para de falar em enigmas por favor . Tem algo muito estranho acontecendo aqui e não sei o que é. Você estalou os dedos eu lembro disso.

— Kevin. Esse é o processo. Você está dentro de um paradoxo emocional.

— O que?!

— Você entenderá.

— Você, tudo isso. O que está acontecendo, por favor, me diz? 

— Você busca por afirmação ou controle?

— Que?

— Durante todos esses meses, percebi isso. Você busca por afirmação, controle, não quer passar uma imagem distorcida para as pessoas de si mesmo. Muito das vezes a forma como nós nos enxergamos é completamente diferente como os outros nos vêem. Talvez você sinta vergonha de si mesmo, um ódio, uma raiva. Mas outras pessoas ao seu redor o amam como você é, sem máscaras, sem nada. O amam apenas pelo que você é. 

     Ele ergue as mãos e estala os dedos novamente. Parece que eu estou dormindo e ao mesmo tempo acordado. Sensação estranha. Mas aquelas palavras que ele disse esta ecoando aqui dentro de mim. 

      Estou em um lugar todo branco, uma certa neblina esta no local onde me encontro. Não sei dizer ao certo, enxergo nada, a não ser a neblina. Começo a andar inseguro e procurando alguma saída. Nada tinha. Logo a frente, uma figura vai se formando, vejo uma cadeira marrom, no momento fiquei parado e, vi uma silhueta de homem andando lá no fundo. Não vejo o rosto, apenas o corpo caminhando rumo ao nada. Vou me aproximando mais. Ele usa calça preta e jaqueta jeans. Tento me aproximar mais dele e... Consigo ver seu rosto, sou eu mesmo.

— Você deseja se matar. Não é? — Ele diz, com seu tom melancólico. Ele esta em pé olhando para alguma coisa, apenas vejo suas costas e o perfil de seu rosto.

— An? Que?

— Olha esse revólver. Apenas um tiro. — O modo como ele fala, é de contemplação.

— Não faça isso. — Eu peço

— Porque não? Você mesmo pensa assim.

— Mas é diferente tá, é diferente. Não penso nada disso

— Já se esqueceu?

— Do quê?

— Assuma, Kevin. — Ele anda lentamente até uma mesa que se formou no meio da neblina. Em cima dela tem uma arma.

— Ei, ei por favor para, não faça isso.

—A arma não é pra mim, clone meu — Verdade, aquilo está tão confuso e tenso que nem reparei que ele tem a mesma aparência que eu. E que merda, não faço a mínima ideia do que está acontecendo. 

— Como assim não é pra você? Quer me matar então?

Um sorriso se forma em seu rosto, ele tenta se segurar, e consegue. 

— Se lembra das lágrimas Kevin? 

     Quando ele disse isso. Vejo minha mãe no meio daquela neblina. Mas ela não me ver, e vejo uma criança. Sou eu... Estou chorando muito, fico bem perto deles, mas eles não me vêem, é apenas uma lembrança. 

     A criança não para de chorar, e a minha mãe diz "Você é ridículo seu moleque, seu pai não tá mais aqui para salvar você, seu merda" e ela bate nele com cinta, várias e várias vezes...

      E a lembrança desaparece. Acho que me lembrei de algumas coisas que de alguma forma eu esqueci...

— Tá vendo porque eu quero fazer isso? Sou um fracassado, nem Deus salva você...

     Ele coloca o revólver na sua cabeça. O olhar dele tem uma tristeza e desesperança profunda demais, eu era assim, eu sou assim!

— Eu sou apenas o seu desejo Kevin. E é isso que você quer.

— Não, pense bem.

— Pensei muito.

— Você quer apenas aprender a lidar com a vida. Você quer apenas ser amado, eu sei que quer isso. Você não recebeu o amor de sua mãe e muito menos de seu pai. 

      De repente ali no momento, quando menos esperei, as lágrimas rolam sobre o meu rosto. Uma agonia se acende, a dor se abre, pensamentos do meu passado me assombram.

— Tá vendo. Não faz mais sentido Kevin.

— Pra mim também não, mas vendo você aí com essa arma...

— Cala a boca.

— Você é amado Kevin. Não importa que...

— Esteja passando? Blá Blá Blá... 

— Há esperança. 

— Para de ser hipócrita. Eu sou o que você sente. Não venha com falsa esperança porque não é isso que você tem sentido. Lembra? As lágrimas Kevin. É, essa é a nossa luta diária. Essa é a nossa história. 

— Mas eu posso mudar. Por isso estou fazendo terapia. Eu mereço ser feliz.

— Você é a parte interna que está lutando para acreditar que de fato existe esperança aqui no mundo. Você é a parte que se aceita. Somos opostos Kevin, sou racional, sou realista. Você vive no mundo da fantasia. Esperança pra cá e pra lá. Não importa o que faça ou fala. Eu sempre vou pegar uma arma e apontar na minha cabeça. 

— Não, não, não,não. Isso tá errado. Você merece viver.

— A dor Kevin. Mereço viver?

— Eu estava no teatro e aquele psicólogo me fez perceber algo. A dor sempre vai existir, mas podemos não deixar com que ela nos domine.

— O que você sabe sobre domínio Kevin? — O tom de voz dele engrossa, sua expressão é de completo ódio. 

— Eu sei, eu sinto.

— Não é a questão aqui Kevin. É o paradoxo. Eu e você somos um, o lance da porta, já era eu dentro da sua alma.

— Kevin... Nós dois merecemos viver... — Cansado de discutir, sinceramente, ele é difícil... 

— Que seja.

— Essa conversa está confusa, eu sei.

    Ele coloca a arma na sua cabeça, corro em direção a ele e o abraço. Sou eu mesmo ali. Ele ficou irado e me empurrou.

— SAIA DAQUI.

— Por favor, me deixe ajudar.

— Não tem nada para me ajudar! - Ele grita

     A arma esta jogada no chão, corremos em direção a ela, mas ele é mais forte do que eu, me chuta, e fico caído no chão, ele caminha e pega a arma. Eu vejo que ele esta chorando, mas um choro de tristeza e ódio.

— Eu não acredito que devo matar você Kevin. Pois eu farei isso agora.

— Eu não vou desistir de mim mesmo, mas se você quer, vai, atire.

     E entre a neblina vem outras pessoas andando em nossa direção, elas estão vestidas de branco, não vejo o rosto deles mas sei quem são. É difícil explicar. Umas cinco pessoas ficam em volta de mim, eles estão vestidos de branco.

— Você não está sozinho — Uma das vozes dizia.

— Estamos com você Kevin.

— Você é valioso.

— Você é amado.

— Você é filho. 

— Você é o escolhido. — Essa voz. Firme e acolhedora, cheia de amor. Todos são assim, mas essa voz é diferente, é cheia... De luz.

    De repente o outro eu desapareceu, a arma ficou caída no chão, o Homem de Branco da voz acolhedora pegou ela, e a jogou fora, e essas pessoas que estão em volta de mim me abraçaram.

— Ele voltará e enxugará todas as suas lágrimas. Mas até esse dia, seja forte e corajoso. Ele estará com você por onde você andar.

    Tudo fica em branco, sinto uma paz.... Acho que estou ficando bem.

.

     Uns dias se passaram desde essa experiência. Sentado, com ele me olhando atentamente, me encontro envergonhado, mas leve. É estranho você contar seus problemas para uma pessoa que não conhece. Mas é bom. Ainda não me acostumei.

— Kevin, você tem melhorado bastante durante esses dias, consigo ver isso.

— É, estou sabendo lidar com algumas coisas.

— A nossa sessão termina aqui Kevin. Nos veremos na semana que vem?

— É, claro. Sim com certeza. — Me atrapalho quando falei com ele, eu sinto algo bom, nunca sentir isso, aliás, foi a bastante tempo.

— Tudo bem. Está livre por hoje Kevin.

    Disse ele com um sorriso no rosto. Pouco sem jeito me levanto da cadeira e sigo até a saída, giro a maçaneta e... Olho para ele, que volta a me olhar. Ele sabe o que pensei nesse hora, e se aquele looping acontecer de novo? Eu abrir a porta e voltar pra cá? Não importa, eu giro a maçaneta, e saio da sala.

FIM

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