|4| Daren e Eter

— Ur, importaste de me explicar o que é que falhou no teu plano brilhante?

Ur deixou de olhar os patos do lago e colocou a mão sobre os olhos quando se virou para ver o irmão.

— Eu nunca disse que era brilhante.

— Não, não disseste. — Rikkon deu a volta ao banco onde Ur estava sentada para que ela não tivesse que olhar na direção do sol para o ver. —  Mas disseste que ias resolver a situação. Porque é que não está resolvida?

— Oh, mas eu resolvi! — Rikkon fez a expressão de confusão mais cómica que Ur alguma vez viu, o que a obrigou a controlar o ataque de riso iminente antes de falar. — O pai fez-me assinar a renúncia há uns minutos. Já não vou ser rainha.

— Ninguém me disse nada.

— Mas não vais ser rei na mesma - retorquiu ela de um só fôlego.

Por instantes, só se conseguia ouvir os barulhos do jardim.

— Ahn?

— Desculpa, Rikkon, mas não consegui convencer o pai a aceitar dar-te a coroa outra vez.

O jovem de 22 anos ficou atónito. Se Ur não iria ter a coroa e se ele não tinha voltado a ser o sucessor de Lyron, isso só queria dizer que...

— Qual deles!?

— O Daren nasceu uns minutos antes do Eter, por isso o pai achou que...

Rikkon saiu a correr para o castelo e não ouviu mais nada. O seu irmão não se encontrava no quarto, como de costume, pelo que ele teve de atravessar todo o castelo para chegar ao pátio onde Daren se encontrava a treinar.

— D!

O príncipe de 17 anos e o soldado com quem ele lutava pararam o treino à chegada do mais velho. Daren dispensou o soldado com um gesto e caminhou até a uma árvore, sob a qual se encontrava o seu cantil de água fresca. Mesmo ainda não sendo hora de almoço, já fazia imenso calor.

Rikkon aproximou-se dele, feliz por poderem conversar à sombra sem ninguém por perto.

— Deduzo que já saibas o que é que se passa.

Daren soltou uma gargalhada.

— Por esta altura já o castelo inteiro sabe o que é que se passa. — Ele bebeu mais um gole de água. — Hoje é o dia "de deixar os Deuses decidir quem será o sucessor de Ovre."

— Um relâmpago acertou numa árvore esta manhã e a Ur deu ao pai o único morango estragado da taça. Ambos assinámos a renúncia, o que faz de ti o novo sucessor.

Rikkon olhou o irmão nos olhos cinzentos sem dificuldade, já que ambos têm a mesma altura, apesar da diferença de idades.

— Queres a coroa?

— Não, Rik. Não a quero. — O mais novo sentou-se no chão e olhou a arena do pátio à sua frente. — Não posso continuar no exército se for rei. E eu adoro isto, mesmo em tempos de paz. — Daren levantou a cabeça. — Não te preocupes. O pai vai obrigar-me a abdicar da coroa antes de servirem o almoço.

Rikkon sorriu, satisfeito. Estava quase a ir embora quando se lembrou que Daren tinha um gémeo.

— E o Eter?

— Não te preocupes. A coroa também não lhe interessa. Aliás — acrescentou com um sorriso divertido —, é ele que está a pensar em presságios suficientemente maus para que o pai não nos sente no trono.

O mais velho saiu aliviado do pátio, deixando o irmão sozinho. Apesar das aparentes tragédias que surgiram em catadupa naquela manhã, Rikkon sentia que o dia iria acabar bem para ele. No dia seguinte, o seu maior sonho tornar-se-ia realidade.

Daren deitou-se na relva fresca por uns momentos. Ele odiava provocar algum desgosto ao pai, a quem era particularmente chegado, mas o fardo de governar uma nação não era para ele. A adrenalina da luta e a disciplina do exército é que o aliciavam. E ele estaria disposto a lutar para levar a sua avante.

O jovem capitão levantou-se de um salto quando achou que o gémeo já tivera tempo suficiente para pensar. Foi buscar a camisola que tirara para treinar e vestiu-a antes de adentrar o castelo, tapando assim as marcas negras e as cicatrizes que possuía no tronco.

Um criado veio ao seu encontro antes que ele tivesse oportunidade de ir muito longe e informou-o de que Eter o esperava na biblioteca. Daren seguiu o anão até às pesadas portas duplas que se encontravam abertas e entrou sozinho, fechando-as atrás de si.

— Já tens o meu mau presságio, génio?

Eter levantou a cabeça dos livros e convidou o irmão a sentar-se no sofá à frente do seu. Ele recusou-se e continuou de pé.

— Claro. — Eter fechou o livro. — Vais ter de partir a coroa.

— Desculpa!? — exclamou, escandalizado com a ideia.

— Não a coroa do rei, obviamente. A tua coroa de príncipe — esclareceu o outro, como se fosse óbvio. — Vais ter com o pai com ela na cabeça e, como sei que detestas desiludi-lo, vens com aquela conversa de que é uma grande honra, que não o vais desapontar, que o vais deixar muito orgulhoso... Esse tipo de coisas. Depois, deixas cair a coroa no chão e, acidentalmente, pões-lhe o pé em cima. Se te desculpares mil vezes e disseres que não era tua intenção, o pai não se deve zangar. Quando deres por isso, está o Quartis na sala a enfiar-te o documento de renúncia pelos olhos a dentro.

Daren ficou sem reação.

— De qualquer maneira, passas a vida a dizer que a que tens é demasiado pequena e que precisas de uma nova — acrescentou Eter. — Aconselho-te só a desfazeres esse rabo de cavalo raquítico que tens na parte de trás da cabeça, ou vais ter problemas em fazer com que isto pareça natural.

— Não achas que é demasiado? — perguntou o mais alto ao deslizar lentamente até ao assento do sofá.

— Queres ser rei?

— Não.

— Então não, não acho que seja demasiado. Mas se tiveres uma ideia melhor, sou todo ouvidos.

Daren pensou um bocado.

— E se eu lhe desse fruta estragada?

— Dois "presságios" iguais no mesmo dia, Daren? O pai não iria acreditar.

O jovem capitão olhou a parede à sua frente, onde um dos inúmeros retratos da família real se encontrava pendurado.

— Quando eu renunciar vais passar a ser o sucessor. Tu não queres a coroa, pois não?

Eter não respondeu de imediato, o que deixou o seu gémeo ansioso. Ele tinha prometido ao irmão mais velho que nenhum dos dois a queria.

— Não. Se eu fosse rei, não iria ter tanto tempo disponível para ler e para fazer as minhas experiências. Não que eu não fosse capaz de dar conta do recado. Percebo o suficiente de todos as áreas necessárias ao governo de um reino e graças à minha enorme inteligência, consigo orientar-me sozinho em assuntos desconhecidos. Mas um rei não se mede só pelas suas capacidades intelectuais ou pelos seus conhecimentos em política, finanças ou estratégia militar. — Eter sentou-se direito. — Um rei também precisa de saber lidar com os seus súbditos. Precisa de saber lidar com pessoas. E tu sabes que o meu limite diário de interações humanas é bastante curto. Para além do mais — acrescentou —, é esperado que um rei se case o mais cedo possível e produza o maior número de herdeiros que puder. E eu sou demasiado novo para isso.

O príncipe ainda pensou em dizer que, a somar a todas as outras razões enunciadas, ele não gostava de mulheres nesse sentido, mas acabou por ficar calado.

Nos últimos anos tinha vindo a descobrir que não tinha nenhum desejo de se casar e que as mulheres não lhe despertavam particular interesse, como era suposto. No entanto, aquilo era um segredo apenas seu. Ninguém, em toda a extensão de Ovre, sabia daquele pormenor. E ele queria que assim fosse, por enquanto.

Daren riu-se.

— Já tens o teu "sinal divino"?

Eter colocou no rosto um sorriso triunfante.

— Tenho. Vou perder numa partida de Gembolth.

O jovem capitão não conseguiu deixar de pensar que aquele sim era um péssimo presságio. O seu irmão gémeo não era derrotado naquele jogo idiota de lógica e estratégia desde que teve idade suficiente para aprender a jogar.

O rei Lyron ficaria extremamente chocado se isso acontecesse.

— E vais perder contra quem? Nunca ninguém te consegue ganhar!

— Pensei em perder contra o Rikkon. Matava-se dois coelhos de uma cajadada só.

— Não achas que o pai vai desconfiar que é forçado?

Eter negou com a cabeça.

— O Rikkon nunca se permitiu jogar. Como ninguém sabe se ele é bom ou mau jogador, não há maneira de o pai desconfiar.

Daren tinha as suas dúvidas, mas iria confiar no discernimento do irmão. Afinal, ele é a pessoa mais inteligente do castelo, para não dizer mesmo de Ovre inteiro.

Os príncipes olharam o enorme relógio da divisão. O almoço deveria ser servido em menos de uma hora. Daren queria tomar banho para retirar o cansaço e o suor do corpo antes da refeição, por isso despediu-se do irmão e dirigiu-se à porta da biblioteca.

No entanto, ele ficou parado com a mão na maçaneta da porta por uns instantes.

— Eter? — perguntou, ainda de costas para o irmão.

O outro voltou a fechar o livro que entretanto abrira e encarou as costas do seu gémeo, quase vinte centímetros mais alto que ele próprio.

— Sim?

— Achas que estamos a fazer a coisa certa?

Eter inclinou a cabeça.

— Como assim?

Daren voltou-se e os seus olhares cruzaram-se.

— Achas que devemos aldrabar o pai assim para ele nos conceder o direito de renunciar à coroa? E se o que aconteceu esta manhã foi mesmo um sinal dos Deuses? E se é suposto eu ficar com o trono? Não deveríamos esperar mais algumas horas antes de nos pormos a inventar presságios? Talvez eles aconteçam de qualquer maneira, mesmo se ficarmos quietinhos.

— D, respira fundo. — Ele obedeceu. — Acredita em mim quando te digo que tudo o que aconteceu esta manhã não passou de coincidências.

— Mas não é assim que os eventos divinos funcionam? Aos nossos olhos não passam de coincidências quando, na verdade, têm a sua razão de ser?

Eter refreou a vontade de revirar os olhos. Ele sempre teve alguma dificuldade em compreender os Deuses e a religião.

— Responde-me do fundo do teu coração, Daren: queres ser rei?

— Não — afirmou.

— Então não fiques sentado à espera que os Deuses enviem um "sinal divino". Eles podem nunca vir a fazê-lo.

— Mas se calhar isso significa que eu é que devo suceder ao pai — comentou, com algum pesar na voz. Não era algo que ele queria, mas se fosse realmente a melhor opção para o reino...

— Eu não acredito nisso, Daren — respondeu Eter, levantando-se e caminhando até ao irmão. — Não acredito que os Deuses te tenham reservado um destino que não desejas. Era demasiado cruel.

Eter ofereceu-lhe um sorriso. Daren acabou por retribuir. O irmão devia ter razão. Ele tinha sempre razão.

Agora mais animado, o jovem capitão do exército abraçou o gémeo fortemente, levantando-o um pouco do chão por causa da diferença de alturas. Para alguém cujo nome significa "mais leve que o ar", ele tinha ficado bastante pesado.

— Agora é melhor irmos andando — disse o mais baixo quando o abraço terminou e os seus pés assentaram no chão. — Ou ainda perdemos o almoço.

{1941 palavras}

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top