capítulo 3
"Cada novo amanhecer trás novas experiências; vitórias, derrotas, aprendizados... o que importa saber é que, inevitavelmente o novo vem, e a forma como o administramos determina quem nos tornaremos no final desse dia "
— Anatomia Humana Prática com Dissecação! — Isabel anunciou em voz alta para que todos pudessem ouvir. — Já sabemos que a grande maioria é experiente na minha matéria... — de repente ela olhou para Luiza. — Mas alguns ainda precisam se entregar mais ao tema para não ficarem para trás... Não é, senhorita Almeida Prado?
Luíza corou com o comentário da professora. Provavelmente estava se lembrando da última aula, quando desmaiou ao tirar o pano branco de cima do cadáver de uma criança. Ali naquela ampla sala fúnebre, toda altivez e fanfarronices da patricinha se esvaíam como água evaporando de uma chaleira quente.
Não dava pra dizer que ela era má aluna ou algo assim, pelo contrário, Luíza sempre ia muito bem em todas as matérias teóricas, o problema é quando tinha que aplicar a prática propriamente dita. O tempo em que começaríamos nossas residências se aproximava, e nós nos preocupávamos com o desempenho dela.
Ao entrar naquela sala, Luíza Almeida Prado era uma pessoa totalmente diferente da qual conhecíamos no dia a dia. Parecia que o medo a dominava a tal ponto, que ela mal conseguia assimilar as palavras que saíam da boca da professora.
— Enfim! — Isabel falou outra vez. — Todos com as pranchetas nas mãos para anotar tudo o que eu disser! — Assim que acabou de falar, tirou o lençol branco de cima do cadáver de uma mulher loira, que parecia ter morrido há não muito tempo.
Pude perceber quando Luiza deu dois passos discretos para trás dos outros alunos na tentativa de não ser vista pela professora.
Eu peguei minha prancheta, ajeitei meus óculos e prestei bastante atenção em tudo que Isabel ia falando. Depois que o cadáver foi aberto procurei por Luíza e não a vi mais.
Assim que a aula acabou, peguei alguns livros e fui para fora do Campus, precisava de um pouco de ar puro e também de visões menos perturbadoras como a da sala de dissecação.
Meus livros estavam espalhados por cima da toalha quadriculada em tons de azul e branco estendida no gramado. Precisava elaborar um bom simpósio para impressionar a turma, e principalmente meu Alvarenga.
Somente a menção do nome dele me fazia estremecer, mas não podia perder tempo com aquilo agora, precisava focar nos livros. Mas então uma voz falou comigo:
— Sem sanduíche? Nem suco? Geleia? Mas que piquenique mais chinfrim! —karol fez uma expressão de nojinho e gracejo ao mesmo tempo e sentou-se ao meu lado.
— Não posso perder tempo com coisas tão sem importância como comer. — Respondi devolvendo a mesma expressão para ela.
Nós duas rimos e Karol deitou-se por cima da toalha com os braços estendidos olhando para o céu. Seus longos cabelos loiros se esparramaram pela grama verde me fazendo lembrar as cores da bandeira do Brasil.
— Que raro um dia de sol em meio a toda essa chuva não é? — Ela disse sem me olhar.
— Acho que para cada trinta dias de chuvas ininterruptas, Deus manda um dia de sol para não se queimar com a gente.
Karol riu deitada.
— Talvez você tenha razão. — Ela concordou. — Mas é sério, por que não trouxe nada para comer? Estou morrendo de fome!
— Não pretendia que ficássemos muito tempo aqui além do necessário. Mas de qualquer forma não conseguiria comer agora.
— Por que não?
— Acabei de sair de uma dissecação.
— Ah... Leva tempo pra se acostumar com aquilo, não tem jeito, mas alguém tem que fazer o trabalho.
— Na verdade eu estou bem, Luiza é que parece não conseguir avançar nesse tema. Não sei o que acontece, parece que ela trava.
— Deve ser por causa do que aconteceu.
— O que aconteceu? — Não tinha como não perguntar.
— Ela nunca te contou?
— Não. — Disse sem muita surpresa. De fato eu e Luíza éramos amigas, mas ela não era tão aberta quanto a questões do seu passado, e agora ficava evidente que havia escondido algo muito importante.
— Ela tinha seis anos... — Karol começou. — Os pais haviam feito um churrasco para amigos no quintal, e a certa altura todos entraram, ficando só a babá e o irmãozinho da Luíza de apenas dois anos.
— Luiza tinha um irmão?! — Eu estava realmente surpresa com aquela informação. O fato dela não ter contado algo tão importante assim, realmente devia ser complicado, já que ela falava sobre qualquer assunto com muita desenvoltura.
— Tinha. — Karol respondeu. — Mas ele morreu naquele dia.
Arregalei os olhos e abri a boca, mas as palavras não saíram.
— Parece que a babá também andou bebendo escondido durante a festa e acabou se descuidando da criança. Encontraram o corpo boiando na piscina, e Luiza em pé na borda, olhando estática sabe-se lá há quanto tempo para o irmãozinho morto.
— Estou chocada... — Por fim falei. — Como não sabia disso?
— Saiu em todos os jornais na época, mas faz vinte anos, para quem não é da família é fácil esquecer.
— Tadinha da minha amiga...
— Não comente nada com ela, Rose. Uma vez tentei tocar no assunto, e ela apenas me ignorou e contou uma piada. Do jeito que ela sempre faz, sabe?...
— Sim... Eu entendo... Agora muita coisa faz sentido. Não se preocupe, nunca irei tocar no assunto.
— Tuuuudo bem! — Carol se levantou rapidamente. — Agora chega de assuntos tristes! Se não trouxe comida, que tal irmos no Silver comer uns brioches e tomar um café?
— Hoje não, Ka... Realmente preciso terminar esse simpósio, aliás, precisamos! Não se esqueça que você é minha cúmplice! — Ela sorriu. — Mas não se preocupe, amiga, você já fez muito por mim, não deixarei que sejamos humilhadas perante praça pública...
— Também não é pra tanto, Rose, não estamos mais na inquisição. — Ela riu. — Mas tudo bem, se não quer ir, vou ver se consigo tirar o Arthur um pouco mais cedo da monitoria hoje!
— Vá sim minha amiga... Mande um beijo pra ele.
Assim que Karol sumiu, tentei voltar aos meus estudos, mas a imagem de uma pequena Luíza estática olhando o irmãozinho morto não me saía da cabeça.
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