capítulo 2
"O silêncio é cativo dos que o dominam, as palavras flutuam na mente perspicaz, o dono de ambos os usa com sabedoria somente quando lhe apraz... '
- E aí, mais punição? - Luiza perguntou assim que entrei no Silver.
Não precisa nem dizer que o sorriso sarcástico já vinha embutido no rosto da branquinha de cabelos lisos e negros.
Abaixei meu capuz, tirei o casaco já ensopado pela chuva e o pendurei nos cabides junto a entrada antes de enfim ir me sentar com meus amigos.
- Ele só queria enfatizar que não vai mais tolerar atrasos, ora pois!
Meus amigos riram da minha imitação mequetrefe de purtuga, mas pelo menos aquilo tirou a seriedade da situação, não deixando margens para quaisquer questionamentos extras.
- Por que ele pega tanto no seu pé hein Rose? - Arthur perguntou assim que engoliu um pedaço da enorme rosca com cobertura de chocolate que tinha nas mãos. O mineirinho gente boa sempre dava um jeitinho de fugir na hora do almoço para comer alguma coisa ao lado da namorada.
- Acho que ele só quer que eu me interesse mais por suas aulas, sei lá.
- Credo, o homem nunca sorri! - Luíza comentou com certo desdém.
Sorri sim, e que sorriso maravilhoso ele tem...
- Acho que ele precisa namorar, nunca vi alguém mais cisudo. - Interveio Karol.
- Talvez um cadáver seja perfeito para ele! - Disse Luiza, já dando início às gargalhadas.
- Deixem o taciturno Alvarenga pra lá gente, precisamos nos organizar para a festa da Karol, lembram? - Tratei logo de mudar o assunto antes que de alguma forma ele chegasse em mim.
- Depois dos vinte três não há mais o que comemorar, já passou a boa fase! - Disse Arthur já se encolhendo para amenizar o soco que Karol lhe daria no braço.
- Por que não arruma uma mais novinha então? - A namorada disse fingindo um falso rancor.
- Sabe como é... - Arthur pegou Karol pelos braços e sorriu. - Panela velha é que faz comida boa! - Ele não deu nem tempo dela retrucar e logo já tascou um beijo.
Eu e Luiza sorrimos caladas. Era impressionante a química que os dois tinham. E o mais incrível, ambos se conheceram no aeroporto assim que chegaram do Brasil, nem mesmo sabiam que estudariam na mesma faculdade.
Os dois formavam o mais lindo casal de toda universidade.
Arthur era pardo e usava cabelo Black Power, enquanto Karol era loira e tinha olhos verdes; costumávamos chamá-los de Romeu e Julieta, e não por causa da magistral tragédia romântica de William Sheaskepere, mas sim por causa do famoso doce brasileiro.
Arthur era um ano mais novo que Karol, e também a esperança da família Souza. Ele era do interior de Minas, de origem humilde, mas muito esforçado nos estudos, parecia sempre querer fazer valer cada centavo que seus pais mandavam, e também os que ele ganhava como monitor bolsista depois de suas aulas; e mesmo pagando somente metade da bolsa que havia ganhado, ainda era muito para os Souza. Ter um médico na família era o maior sonho de dona Dilma sua mãe, e tudo o que ele tinha mais medo na vida era decepcioná-la. Karol tinha imenso orgulho do namorado.
- E então, o que acham? Boliche e cerveja? Cinema e cerveja? Ou cerveja e cerveja? Eu voto na última! - Disse Luiza já mostrando as opções e com o indicador erguido.
Todos sorriram.
- Ainda temos tempo para decidir. - Falou Karol. - Sem contar que já falei que não quero que gastem dinheiro com bobagem...
- Bobagem?! - Indignou-se Luiza. - E como eu vou tirar fotos suas vomitando se eu não a embebedar antes?
Até eu me forcei a sorrir. Eu amava aquele clima espontâneo e brincalhão que sempre se instalava em nossa mesa assim que sentávamos. Por mim congelaria aquele momento pra sempre, mas como tudo na vida, nada é eterno.
De repente a porta do Silver café foi aberta e Fernando entrou pingando chuva.
Seu cabelo grisalho agora parecia maior com o peso da água o puxando para baixo. Seu sobretudo ganhara um tom marrom mais escuro, e as pantufas estavam pesadas com o líquido que se acumulou nelas. Era uma visão de dar dó, mas não em todos nós.
- O Jámorreu chegou. - Disse Luiza, o chamando pelo apelido que eu mais odiava. - E está atrasado hoje!
- Ah! tenha dó Luiza, não está vendo que o homem pode até pegar um resfriado? - Disse Arthur com o rosto sério.
- Pare de pegar tanto no pé do homem, parece que gosta de sentir prazer com a desgraça alheia! -Karol saiu em defesa do namorado e de Fernando.
- Ah! façam-me o favor... Hoje temos dois defensores dos frascos e comprimidos? - Luiza fez expressão de desdém.
- Deixe que eu pego o casaco, Fernando. - Maria, a garçonete brasileira que trabalhava no Silver foi em direção ao alto homem parado junto à porta.
Fernando fez um silencioso assentir, entregou o sobretudo e foi sentar-se na sua mesa, que ao que parecia, estava sempre reservada para ele.
Eu e Luiza estávamos lado a lado e sentadas de frente para o homem, e pela primeira vez o vi só com a camisa gola polo vermelha. Apesar de estar um pouco magro, seus ombros eram largos e seus braços bem torneados. Não pude deixar de imaginar o que alguns meses de boa alimentação e academia fariam com ele. Mesmo sem dizer nada, uma xícara de café apareceu em sua mesa trazida por Maria.
Fernando tirou os óculos e os limpou com um guardanapo. Mas foi o único que gastou fazendo aquilo, pois todos os outros ele começou a escrever e escrever, como sempre fazia.
- O que será que o Jámorreu tanto escreve ali hein gente?
- Talvez uma lista de pessoas que ele queira matar. Se fosse você , Luiza, começaria a tratá-lo melhor à partir de hoje!
Eu ri da piada de Arthur, mas só conseguia olhar para a agilidade das mãos do silencioso homem escrevendo.
- Quantos anos será que ele tem? - Karol perguntou com uma latente curiosidade.
- Todos! - Luiza não podia perder a oportunidade.
- Talvez uns sessenta... - Karol disse sem ter certeza.
- Acho que um pouco menos. - Arthur chutou.
- Talvez ele só esteja descuidado com sua aparência. Se as pessoas não se cuidam, é normal aparentarem ter mais idade do que realmente têm. - Falei tentando advogar em favor do homem que nem conhecia.
- Ah! o que importa o Jámorreu? Não esqueçam que viemos aqui para decidir o que faremos para comemorar o aniversário da Karol!
Fiquei feliz pela própria Luiza ter mudado de assunto ao invés de continuar importunando o Fernando.
- Luau! - Eu sugeri sem cerimônia. - Levamos as bebidas e Arthur o violão. Todos bêbados e felizes, o que acham?
- Teríamos que ir para a ilha da Madeira, não sei se é boa ideia. - Disse Arthur tentando esfriar a ideia antes mesmo que ela ganhasse força, mas a semente já havia sido plantada, e Luiza já queria colher o fruto.
- Está decidido! - Ela levantou-se de repente. - Ilha da Madeira!
Todos olharam para Karol.
- O aniversário é seu, amor, você decide. - Disse Arthur com sinceridade na voz.
Estava claro que ele não compactuava com a ideia de ir para outra cidade encher a cara. Tinha muito medo de qualquer coisa que ameaçasse sua bolsa, mas deixou a decisão para sua namorada.
- Diz que sim... diz que sim... - Luiza fez uma voz pelo menos duas oitavas mais aguda para enfatizar seu apelo.
Karol mordia os lábios e olhava para todos ponderando suas opções, até que disse:
- Ilha da Madeira então... - Ela olhou para o namorado com um sorriso meio constrangido.
Naquele momento Luiza explodiu em um sonoro viva e correu para abraçar Karol. Eu sorri genuinamente enquanto já nos levantávamos para pagar a conta e sair.
Foi então que olhei novamente para o Fernando. Por um breve momento achei tê-lo visto me encarando com seus frios olhos verdes por detrás dos óculos, mas vai ver foi só o reflexo da lâmpada do lustre refletindo nas lentes.
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