Prólogo

Tenho ouvidos sensíveis desde que me entendo por gente. Nunca suportei o barulho dos automóveis, nem do turbilhão de vozes falando todas ao mesmo tempo naquele timbre agudo e ressonante.

Com o tempo tudo isso piorou, os números de carros voadores aumentaram, o número de pessoas que se amontoavam como formigas na Capital também, e os eletrônicos eram a pior parte. Por algum motivo, a mera visão deles me causava uma angústia indescritível, seguida de uma enxaqueca que poderia me deixar em dor por horas a fio.

Acho que foi por isso que decidi me mudar para o campo.

Não tive que pagar muito, as pessoas não gostam mais da natureza, consequentemente, essas áreas pararam de ser valorizadas e o preço me cabe no bolso.

O único tipo de luz que eu suporto é a do sol e a das lâmpadas. O brilho do farol dos carros e dos enormes outdoors queimam minhas retinas, não aguento a luz nem de um simples celular. Não que me faça muita falta, eu adoro a tranquilidade de onde moro. Não há vizinhos chatos reclamando de meus gatos, não acordo no meio da noite por causa de música alta e nem sou perturbada por propagandas do serviço telefônico.

Algumas pessoas acham que isso me torna solitário ou antissocial, mas eu não me sinto assim. Eu não entendo, como posso ser antissocial sendo que 90% da população prefere falar por celular do que pessoalmente?

Eu quero as coisas que vejo nos livros, os passeios na praia, os piqueniques em baixo de árvores, as leituras em volta da lareira. Mas ninguém mais quer isso, todos preferem desfilar em seus automóveis super modernos pelo ar, gastar dinheiro em coisas inúteis apenas por status e ir em eventos sociais da realidade virtual.

Eu não sei como eram as coisas antes da internet surgir, os poucos livros que tenho estão se desfazendo e as salas de internet ficam muito longe de onde moro.

Eu trabalho com flores, faço arranjos com todos os tipos de flores que acho e os vendo para quem tem interesse. Atrás de onde moro há muitos campos onde ninguém pisa, só os animais.
Demoro cerca de 1h todo dia até chegar à cidade, às vezes tenho a sorte de não ter que sair de casa quando os clientes vão até onde moro para pegar seus arranjos. Hoje em dia não se fazem mais buquês, o que torna muito único para mim o que eu faço.

Além dos campos, há também o mar. Eu o descobri enquanto me aventurava pelos arredores. Eu estava procurando girassóis, quando cheguei até o topo do morro em que ficava minha casa e os campos, e ao olhar para baixo me deparei com uma praia deserta e o mar, foi como uma espécie de tesouro.

Não era uma praia muito grande, mas foi o suficiente para que eu descesse até lá e começasse a construir uma espécie de casa de praia para mim.  O mar era tão grande que meio que ameaçava engolir toda a areia. Isso era como a minha cabeça, de certo modo.

Uma grande parte da minha memória foi tirada de mim depois de um acidente de carro anos atrás. Depois disso, esqueci de cinco anos da minha vida, os 5 anos que antecederam o acidente foram completamente apagados.

Os médicos não entendiam o motivo de eu não conseguir me lembrar de nada. Eu fui achado sozinho num carro, disseram que ele ficou sem combustível e despencou do ar, porém as medidas de segurança impediram que eu morresse.

"Você deveria ser grato, foi muita sorte", eles disseram, mas eu não me sentia nada sortudo. Não me senti sortudo nos 18 anos que passei malnutrido e solitário num orfanato qualquer, não me senti sortudo quando tive que me humilhar e me arrastar pela cidade para lavar pratos, passar roupas, e só mais deus-sabe-o-quê. Não me senti sortudo nos anos de solidão que se seguiram e nunca me abandonaram, e com certeza não me senti sortudo depois das sequelas do acidente.

Aquilo era uma grande sacanagem, isso sim.

Eu sentia como se minha cabeça fosse um mar que engoliu todas as minhas lembranças, levando elas tão fundo que eu não pudesse encontrá-las.

As sessões de terapia ajudavam a me sentir um pouco melhor, mas minha psicóloga era pouco mais do que um inseto incômodo e impotente batendo as asas no meu ombro. Meses de terapias e notas gastas na tentativa de conseguir obter uma só lembrança que fosse, tudo em vão.

Ela não entendia o que era sentir um vazio na cabeça que não podia ser preenchido, ela não sabia o que era sentir falta de algo importante sem saber o que era. Eu sentia tudo isso, eu sentia falta de algo que eu não me lembrava, algo importante, algo que estava nos 5 anos que perdi para aquele acidente.
Era horrível se sentir tão vazia e deprimida o tempo, como se cada sopro da minha existência fosse uma nota fria emitida ao timer da minha morte.

Eu só queria que as coisas mudassem um pouco para variar. Só uma vez.

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