|Submersa|
Era manhã. Elaine escuta os encanamentos funcionando, e um forte cheiro de ervas. Depois de quase um mês de reabilitações com Primeira, ia poder tomar um banho de verdade. Certamente, aqueles lencinhos umedecidos estavam fazendo Elaine ficar a beira de um surto. Os buracos da ferida ainda estavam ali, mas de acordo com Primeira já havia selado todos os órgãos internos, o que deixou apenas cortes não muito profundos, no estômago e nas costas. Ainda doía, mas já conseguia andar e fazer as coisas sozinha, tranquilamente.
Se levantou, tirou as roupas, e foi em direção do armário pegar suas toalhas. Passou por um espelho, e viu-se de relance. Voltou para se olhar mais um pouco.
— Que cicatrizes feias, Elaine. — Disse a si mesma.— Você tomou uma bela surra.
Além das marcas, Elaine tinha vergões e hematomas por todo corpo, resultado da luta com Edward e Elisa, coisas que Primeira não conseguia curar. Se enrolou nas toalhas, e seguiu caminho até o banheiro. As aias abriram as portas, para que Elaine passasse. Até então, era trabalho delas lavar os guardiões, mas depois da traição do dia do legado, nem as aias eram permitidas a estar com Elaine, sem supervisão. Então ficou acertado que a guardiã tomaria seu primeiro banho, sozinha.
O banheiro era gigante. Como um cômodo daquele tamanho estava escondido em seu quarto? Até então só havia usado o lavabo. Elaine observava boquiaberta, as várias colunas de mármore cor de rosa que rodeavam uma piscina enorme de água quente, cheia de ervas e flores perfumadas.
Ela se virou para as aias — Esse é o banheiro da enfermaria?!
Sim milady. — a aia falou respeitosamente— Pedimos desculpas pela humildade do recinto.— Olhou entristecida para a colega, que completa:
—Em breve irão transferi-la para seu quarto definitivo, onde os cômodos serão dignos de sua magnificência. — Elas fazem reverência. — Com sua licença, Milady.
E as portas se fecham atrás dela. A garota fica sozinha, ela e aquela piscina enorme.
Calmamente, Elaine coloca o pé dentro da àgua, checando a temperatura. Vendo que está boa, vai descendo as escadas da piscina até a cintura. Enxágua o rosto, e sente o suave e revigorante perfume do mix aromático do banho. Respira fundo. Aos poucos vai tomando coragem para imergir um pouco mais, e encostar a água no primeiro machucado. Aos poucos, aos poucos... A ferida é tocada pela piscina, logo, seu grito ecoa.
Uma dor terrível acomete Elaine, a medida que o unguento vai penetrando seus pontos. Lágrimas começam a escorrer sem querer. Que banho maldito era aquele? Sentia como se tivessem posto sal, em sua carne viva. Lembrou de como tinha sido atravessada pelo estandarte, no dia do legado. A dor era idêntica, e as feridas emocionais começaram a aparecer.
As lágrimas passaram a serem mistas , de dor e de ressentimento, talvez até... De culpa. "Culpa?" Pensou ela. Não podia ser. Elaine não tinha feito nada, ela era a vítima ali. Colocou as mãos sobre a cabeça, e olhou seu reflexo no banho esverdeado. Sua imagem ficava turva conforme suas lágrimas caíam seguidamente na superfície da água. As pétalas de flores dançavam ao seu redor. O aroma prazeroso de ervas se tornou fétido e desagradável. Começou a puxar os próprios cabelos.
— Eddy... — Murmurou. — Que droga.
Mas como ele, de todas as pessoas, poderia ajudá-la naquele momento? Ele era o motivo de sua derrocada. Mas ao mesmo assim, Edward já foi o motivo de sua salvação.
A nova guardiã da aurora tinha vergonha de assumir os próprios sentimentos, de revelar ao mundo inteiro, que a sua salvadora é fraca, dependente. Seria tão fácil, para qualquer outra pessoa, de simplesmente desprezar alguém que lhe fez mal. Seria tão fácil, fingir que essa pessoa nunca existiu, ou simplesmente odiá-la para o resto de sua vida. Mas não conseguia odiá-lo. Só havia um sentimento enorme de afastamento daqueles que lhe feriram. Mesmo assim,
não era uma emoção forte o suficiente para movê-la do lugar. Tudo o que queria, era ficar reclusa e distante de todos. Não importava o quanto a colônia precisava dela, aquele lindo sonho de salvar o mundo, acabou no mesmo momento que aquela taça foi quebrada.
—Eu me odeio!— E bateu na água com as mãos, para esconder a visão de si mesma retornando para o raso. Naquele vasto cômodo, se encolheu abraçando os joelhos enquanto mirava a grande banheira.
Subitamente, uma voz feminina penetra os pensamentos conturbados de Elaine.
"Acalme-se, querida. Não é hora de uma heroína desistir. Tenha ânimo brava guerreira." — Elaine arregalou os olhos e por um segundo as lágrimas cessam.
—Quem é ?— Investigou os arredores.
"Já não nos encontramos antes, querida? "
Ponderou um pouco sobre a voz ouvida, pela mansidão, e pelo jeito carinhoso de falar, cogitou sobre quem se tratava
— Sétima? — disse lentamente.
"Isso mesmo, querida! Sabia que reconheceria! "
Elaine se mantém num silêncio hesitante.
"Como pode ver, sou uma telepata. Primeira me designou para tomar conta de você."
— A primeira... Ela não pode vir?
"Ela tinha muitos compromissos hoje. Como era o desejo dela que você tivesse privacidade ao banhar-se, principalmente por conta de seus machucados, fui a escolhida para essa tarefa."
Elaine cobriu sua nudez assim que percebeu que estava sendo vigiada. Para as Horas, a verdadeira vergonha, eram os hematomas que representavam vulnerabilidade, e fraqueza a quem visse. O ideal é que a guardiã seja vista como um ser inatingível assim como uma deusa. Uma deusa não sangra, não chora, não sofre.
"Não se acanhe pequena, não posso ver sua imagem."
— Mas como assim?— foi interrompida.
"Telepatas não vêem, mas sentem. Não posso saber a cor da suas toalhas a menos que você esteja pensando nelas.—diz— "Entretanto consigo saber como você está. "— completa— "Por exemplo: posso contar os batimentos do seu coração, sua pressão sanguínea... até algumas sinapses cerebrais."
Elaine começa a ponderar que, talvez fosse assim que Sete — Ou Abel— conseguiu escapar dos guardas com tanta maestria.
" Mas é estranho..."
Elaine fica petrificada. Não se deu conta que estava pensando sobre algo proibido.
" Tem certos pensamentos seus que eu não consigo ler. É como uma névoa densa que não me permite decifrar. " — Elaine se desespera—" Deve ser porque você está muito nervosa, seu coração está disparado. Por acaso está com medo de mim?"
Elaine cada vez mais nervosa, gagueja: —A pessoa que eu amava... acabou de tentar me matar.
"É verdade. Peço perdão."
Elaine se encolhe mais ainda, pressionando a ponta dos dedos, em seus joelhos.
"Além disso, vejo que está sentindo dor." — Ela faz uma pausa soprosa— " São as feridas, certo?"
— Sim. — Responde Elaine receosa.
"É evidente que, se trata da fórmula que colocamos em seu banho."
— Fórmula...?— Olhou para o banho em que estava imersa.
"Certamente. A família das ervas em Eurtan preparou esta infusão cicatrizante, especialmente para você. Eles são os melhores da área farmacêutica, portanto aproveite."
Elaine recua. Apesar disso, Sétima incentiva—"Dizem que os remédios mais eficazes, também são os mais amargos."
Elaine olha hesitante para as águas esverdeadas por um tempo. Decide entrar de uma só vez na piscina. Mas logo se arrepende, pois sente a dor duplicar, ou até triplicar. Ela urra de dor, se debatendo na água, até engolindo-a. Sua visão estava turva, via pétalas se remexendo e a área da piscina se estendendo. Estava num oceano de agonia.
"Shhh... Querida. Está tudo bem. Eu estou com você."
— Mas que merda!!! Eu nem sei ao menos onde você está!— Grita em descontrole.
Elaine ouve três batidas na porta. A guardiã suspira aliviada.
"Viu? Você não precisa ter medo de nós, querida. Sei que está desconfiada de todos no momento. Mas saiba que somos suas amigas e estamos a seu serviço."— transmitiu com carinho.
Elaine se acalma um pouco após ouvir aquilo, afinal, ela era uma Hora. O conselho das doze são como mães para a colônia, sinônimos de confiança, e Primeira realmente conseguiu curá-la. Até da maneira que podiam, ajudaram no dia do legado.
A dor cessou. Elaine soltou seu corpo e fechou os olhos. Boiou sobre a piscina, exausta. As pétalas tocaram suas bochechas como um beijo.
Olhou para o teto, anestesiada.
—Aonde você foi parar, Elaine?— Ela sabia que estava sendo ouvida, mas naquele momento nem importava mais. —Eu estou no fundo do poço. — Riu de auto piedade.
Éden... Nem ela poderia ajudar. Nem mesmo a conheceu, não era ela que estava na cerimônia. Estava servindo alguém invisível. A única prova de que a sacerdotisa era mesmo real, era sua espada.
Um som de algo quebrando interrompe Elaine, atravessando os vãos da porta. Parecia vidro. Sem nem mesmo pensar, ela sai da piscina, pega sua toalha e corre para fora assustada, abrindo as portas com toda a força que tinha.
Ainda segurando nas barras das portas, se deu conta que suas feridas praticamente fecharam naquele meio tempo. Parecia um milagre, o banho realmente havia funcionado. Não doía mais nada, e os furos realmente haviam cicatrizado. O ânimo foi breve, pois a situação ainda era de tensão, já que o medo de tentarem assassiná-la outra vez, persistia.
No seu campo de visão havia apenas uma moça mais velha que Elaine, olhando para um jarro de água quebrado.
—Mas que merda hein. — A moça põe as mãos na cintura. — O exército faz a gente virar ogro mesmo.
A mulher leva os olhares para Elaine.— Opa. Foi mal pelo jarro.
Quase sem fôlego, Elaine investiga o cômodo e pergunta:
— Ué, cadê a Sétima? — disse ainda, com um sorriso no rosto, ofegante.
— Ah. Ela tinha reunião com o conselho há uma meia hora atrás e me pediu para eu te trazer um pouco de vinho— Ela põe uma das mãos sobre a cabeça.— Ou era, pelo menos.
Todo o entusiasmo de Elaine se transformou em confusão, depois disso, medo.
— Mas ela estava aqui... a pouco. —disse Elaine Confusa— Ela acabou de bater na porta, e....
— Ah, isso? Fui eu. Ela mandou um recado pra eu bater na porta. Pra fazer você se sentir mais segura, sabe.— Elaine responde com um silêncio confuso.—Ah, você sabe. Vocês estavam conversando até agora , com certeza deve ter feito sentido para você.
Sétima forjou sua presença? Como? Porquê? Ela conversou com duas pessoas ao mesmo tempo enquanto na verdade estava numa reunião importante? Elaine se se sentiu um peão no xadrez. Se aquele jarro não tivesse sido quebrado talvez a guardiã jamais soubesse que Sétima estava mentindo.
— A propósito, sou Cibelle— Estendeu a mão — sua nova parceira.
Elaine observou aquela mulher lhe estendendo a mão, atônita. Ela era alta, esbelta, tinha os cabelos curtos e escuros, luvas de couro e uma besta em suas costas. Uma típica caçadora. Tinha a orelha esquerda furada cinco vezes, isso significava seu posto no exército, capitã. Na guarda de Sidéria, existe uma pirâmide estrutural que define seu cargo e respeito. Na base, existem os sentinelas, que geralmente ficam na linha de frente como escudeiros dos espadachins, que são os próximos da lista. Estes, são vistos como a primeira linha de ataque, enquanto os atiradores (arqueiros, besteiros ou fuzileiros) ficam logo atrás, acertando alvos difíceis. Os xamãs, grupos mais prestigiados, dominam a alquimia, produzindo e conjurando recursos necessários para batalha. Quase no topo, estão os magos, pessoas com monções raras relacionadas a natureza. Magos são dominadores de elementos como terra, sendo a mais comum, vento vindo logo em seguida, água , luz, trovão, trevas e o mais raro de todos, fogo; tendo apenas uma representante viva. Além dos magos, vêm os superiores, as Horas e por fim Éden.
— Perdão... A senhora é a capitã da guarda? — Elaine quietamente apontou para a orelha de Cibelle.
— Ah, sim. — Essas marcas de gado. Tinha esquecido.— Falou tranquila— Sim. A Sétima comentou?
— Quer dizer que nesses anos todos, você era minha chefe?
— Isso é um questionário ou o quê? — Ela começa a perder a paciência , mas cede, cruzando os braços— É, eu era sua chefe, e daí?A "guardiã da aurora" pode me cumprimentar?
Elas dão um aperto de mão.
— Engraçado, aperto fraco. A Cordélia foi bem mais exibida quando eu conheci ela...
Ao ouvir isso, Elaine corre para cima de Cibelle, quase a amassando:
— A senhora conheceu A Cordélia?!
Quando a capitã faz apenas sim com a cabeça, Elaine fica descontrolada de tanto entusiasmo. Cibelle fica desconfortável e a afasta à medida que pode. Mas os questionamentos sobre a estrela fugaz eram incessantes. Mal conseguia responder as perguntas direito.
— Credo! Dá um tempo, garota!
Percebendo seu estado — vestida apenas com uma toalha inclusive— recua e se contém, envergonhada.
— Me desculpa! É que eu era muito fã dela.
Cibelle se levanta, batendo nas coxas e bufando:
—É. Na TV ela era um charme, né?
Elaine a observa, confusa.
— Mas quer saber? A gente vai dar de dez a zero neles. Então ânimo, mulher! — Ela mostra os músculos.
Elaine a segue com os olhos. — Ah é. Você vai ser a nova guardiã do crepúsculo.
— Geralmente é homem que faz esse papel, mas como não tem mais ninguém, vai ser eu mesma.— Ela dá de ombros.— Já ouvi muito que sou meio macho mesmo. — Ri.
Cibelle surpreendentemente parecia alguém... legal. Elaine tinha esse jeito péssimo que não era de atrair muita gente. Mas com Cibelle era bem fácil interagir, porque ela exalava muita positividade e energia. Elaine não precisava conquistá-la, porque já pareciam que eram amigas desde o começo. Trabalhar com alguém tão confiante e animada não parecia tão ruim assim. Vendo Cibelle falar praticamente sozinha, deu uma sensação quente no coração de Elaine , e ela sorri.
Passado o tempo, Cibelle ajuda Elaine a por a farda real, que era bem elegante.
— Beleza! Guardiã pronta. — Ela junta as mãos.— Agora eu preciso ir, tenho um compromisso.
— Compromisso? Agora? — Estranhou Elaine, já que eram cerca de dez da manhã. —
— Ah. Burocracia, mimimi, papelada, essas coisas.— Ela dá de ombros.— O que eu posso fazer, né?
Elaine dá um risinho tímido. — É!
— Ah, as Horas estão te esperando no salão da ala oeste. Melhor se apressar. — Ela vai saindo da sala, dando um tchauzinho de costas.— Até logo, parceira!
Elaine fica corada enquanto se despede de Cibelle. "Ela é tão legal." pensou. Era bom ter alguém assim por perto, mesmo que fosse para substituir Edward. Faz os traumas parecerem só sonhos distantes.
De repente Cibelle volta, esticando o pescoço para dentro.
— Ah, a propósito... Feliz aniversário Elaine.— E joga uma balinha de menta para ela.
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