|Queda Livre|
Elaine observava incrédula aquele momento estarrecedor. Suas mãos tremiam, e sua boca formigava. Tinha que ter uma explicação para aquilo tudo, apesar de não haver nenhuma resposta aparente.
De seu casaco, Edward retira um objeto peculiar, um frasco retorcido, contendo um líquido escuro e gelatinoso dentro.
Primeira assistiu enraivecida a plateia curiosa mirando o objeto enquanto cochichavam. Jamais aquele tipo de gente deveria levar os olhos fúteis para uma relíquia sagrada. Como um moleque havia invadido o santuário onde os itens estavam? Se invadiu, por que não levou todos eles? Talvez, não tivesse tido tempo. O templo das relíquias sempre foi muito bem guardado. Se, por acaso, levasse duas ou três, seria uma ameaça imparável. Mas, pegou apenas uma.
Primeira mordeu o lábio. "Não passa de um pirralho metido a radical, tentando botar medo. Como aqueles que causaram o desastre de um ano atrás."
Naquela fração de segundo, Primeira só conseguia pensar no vexame que o garoto estava fazendo o conselho passar. Ele estava para receber a maior benção da colônia, e a rejeitou de maneira tão baixa. Aquilo a enfurecia a ponto de fazer sua mandíbula ranger.
Porém, com sua frieza natural, se aproximou do microfone e anunciou:
— Dê-me. — Estendeu a mão para ele. — Mal sabe o que está segurando. Devolva-o para mim, e será perdoado.
As outras Horas, claramente, se surpreendem com a atitude. Primeira sabia que estava sendo bondosa demais, principalmente depois de tantos eventos trágicos. Mas, aqueles guardiões eram o coração daquela gente. Tinha que agir com muito cuidado.
O rapaz se vira para ela com um ar relaxado, mas não parecia aguentar o próprio ego. Então, com o máximo de ousadia, fez-lhe uma reverência. A plateia continua assistindo, bestializada.
Primeira suspira. Um caso perdido. Um lunático. Como pôde ter escolhido tão mal? E pensar que, ainda, se deu o trabalho de abençoar o noivado dele mais cedo. "Vai ser um choque para a pobre Elisa", pensou ela. Suas reflexões foram subitamente invadidas por Sétima, a telepata.
— Primeira, este garoto é um badernista, um agitador. Temos que fazer alguma coisa!
Primeira continua olhando para frente, e responde em sua cabeça:
— Temos que agir com cautela. Os mais influentes da colônia estão aqui. Ao mínimo deslize, a imagem do conselho será destruída.
—Mas matriarca, pense bem! O garoto está com o receptáculo nas mãos!
Sim, estava. Mas era um plano tão óbvio. Mostrar aquela relíquia para tanta gente, como um troféu. Não pensava que o garoto guardasse toda aquela impulsividade por trás de seu comportamento frio e racional. Seria ótimo se pudesse, ela mesma, dar cabo dele. No entanto, seria um crime tão horrendo vindo das doze santas de Sidéria. Seria inaceitável ferir um herói teoricamente enviado por Deus. Precisava, primeiramente, manter o conselho calmo, depois se encarregar do problema, e, por fim, pensar na imprensa e na repercussão. Pensando nisso, Primeira transmitiu, calmamente:
—Se ele escolheu este item, dentre todos os outros, não faz ideia do que seja. Deve ter pegado na correria. Mal sabe que isso não terá nenhuma serventia para ele. Então, acalme-se Sétima, você é bem mais forte que isso. Tranquilize as meninas por mim, está bem?—Primeira sente Sétima recuar.
—Basta! Estou farta disso!—Um grito ecoa, rompendo qualquer concentração ou pensamento.
Segunda, temperamental como sempre, não suporta, descendo da bancada em direção ao rapaz. Caminha da maneira mais contida que podia, mesmo que emanasse uma atemorizante aura de fúria. Passou por Elaine — que estava petrificada— e, finalmente, ficou frente a frente com Edward.
— Mãe Primeira demanda que você entregue o que roubou. — Estendeu a mão com seu olhar gélido.
O garoto a encara com seriedade. — E por que ela mesma não desce aqui?
— Menino imbecil. Não tem noção das coisas que faz. — Disse, com sua voz soprosa e monótona— Esperávamos mais de você.
— Eu esperava mais de você também, cachorrinho da Primeira. — Responde Edward, que faz a platéia reagir em coro. — Mesmo nesse momento tão grave, ainda querem parecer que estão no controle. Se fossem espertas, teriam me matado, mas percebo que ainda querem agradar essa gente em volta.
Ao notar a inerente intenção do rebelde em caçoar dela, Segunda muda para uma expressão distorcida. Ela se aproxima do rapaz de maneira agressiva, pega-o pelo queixo, de olhos arregalados.
— Respeito perante a tua mãe, herege. — E o empurra. — Matar é o crime mais baixo que um ser humano pode cometer. Jamais espere atitudes nojentas como essa de nosso conselho!
— Você ficou completamente louca? Não tem o direito de ferir um sagrado guardião escolhido por Éden! — Gritou o porta-voz se atirando na frente da Hora.
Edward estava no chão. Primeira observa a situação com cautela, enquanto Elaine se direciona ao seu companheiro sendo impedida de antemão. "Preciso que essa garota fique do meu lado." Sabia que Segunda não aguentaria muito mais provocações, mas isso era o esperado. O público parecia ainda estar ao lado de Edward, o que era esperado também. A situação parecia travada, porém, Elaine era o trunfo que precisava no momento. Não podia permitir que aquela relíquia fosse quebrada de forma alguma. Edward assemelhava-se a um homem-bomba naquela hora. Teria que negociar e, quando fosse seguro, prendê-lo.
— Guardiã da Aurora. — Ela se vira para trás, nivelando os olhos com os de Primeira, hesitante. — Poderia pedir para o seu companheiro para devolver o item que ele roubou?
Elaine estava visualmente abalada, pálida e trêmula. Não parecia, de forma alguma, estar consciente da situação. Também não parecia saber o que era a relíquia que Edward segurava. Mesmo tão nervosa, acatou a ordem de Primeira, que sentiu alívio. Havia presenciado a cumplicidade dos dois na última fase do torneio. Edward havia perdido um braço por ela. Era o bastante para mostrar a importância que aquela menina tinha para ele. Um ator certamente não iria tão longe, a menos que tivesse sérios problemas de julgamento. Edward se levanta, devolvendo o clima de apreensão no anfiteatro.
— Eddy, você... — Disse Elaine, quase que desviando o olhar — Pode devolver... Isso?
Edward não demonstra expressão alguma, quase como se Elaine não existisse. E o silêncio, novamente, toma o salão.
A menina a obedecia, algo extremamente favorável para Primeira. Sabia que ela seria fácil de moldar. Ter ao menos um dos santos guerreiros do lado do conselho pode fazer com que sua contraparte pareça ainda pior. Elaine, uma doce, delicada, e ingênua guardiã da luz, em detrimento de Edward, o traidor. Mas, o óbvio amor por aquele moleque estava atrapalhando mais do que deveria. O problema foi o garoto, sempre foi o garoto. Nunca deveria ter deixado isso escapar.
—Em nome de Éden, devolva! — Segunda estende a mão mais uma vez.
— Eu não vou devolver o que é meu por direito.
Segunda ri.— Seu por direito?
— Sim... Como herdeiro de Astargan, tomo posse do receptáculo de uroboros! —Segunda se apavora, afastando-se em um grito.
Todas as horas se desesperam também, olhando para a Primeira e buscando uma resposta.
O maldito sabia. Sabia de Astargan e do poder de Uroboros. Mas, quem lhe contou da profecia? Quem ousou dizer que um reles soldado como ele seria herdeiro de um poder tão vil?
Primeira se martiriza por ter subestimado a situação. Os convidados desesperados lutavam para fugir do hall pelos portões, que estavam firmemente trancados. Não havia mais questionamentos, era um motim.
Quem? Quem estava com ele? Alguém da corte? Alguma das Horas? Precisava pensar rápido. Têm pessoas se movimentando para sair. Estão com medo.
Elaine, praticamente em transe, procura processar tudo aquilo que estava acontecendo. Ela ouve seu nome sendo chamado várias vezes, mas era como se os sons estivessem passando por dentro de uma concha.
O seu amor... O seu amor estava se tornando um inimigo público. Um homem de ideais tão belos fazendo um escândalo daqueles. "Não pode ser ele.", repetia em sua mente. Poderia ser um transmorfo tentando acabar com a reputação de Edward, um doppelganger, ou até uma ilusão. Mas, para quê? Por que usar a imagem dele?
— É ele, Elaine. —afirmou Primeira, como se pudesse ler a mente dela— Não negue o que está diante de seus olhos.
Elaine se envolve com os braços, apresentando uma expressão desesperada no rosto — Eddy... Ei... Você não faria nada disso... Diga pra elas que é um engano...—Novamente a garota é ignorada, o que a faz suar frio.
—Guardas, cerquem-no!— Apontou Primeira, impetuosamente, ao que os guardas se reuniram em torno do rapaz.
— Eu já disse! Não tem o direito de ferir um guardião! — Exclamou o velho porta-voz, mesmo sabendo que nenhum protocolo seria útil, dada a situação jamais vista até então.
Ao ver as lanças e bestas sendo apontadas para si, Edward exclama:
— Mais um passo perto de mim, e eu esmago a relíquia.
Todos congelam por um momento.
— O que é que você quer? Moleque?!– Primeira responde, cheia de ódio.
— Quero a gema. Não aquela porcaria que estava no santuário.
Primeira desvia brevemente o olhar. — Não sei do que você está falando.
— Primeira... você sabe que esse tipo de jogo não vai nos levar a lugar algum.
Primeira faz uma expressão de nojo.
Edward caminha até ficar frente a frente com a matriarca. — Eu vou ter que contar para todo mundo aqui, ou você vai continuar escondendo?
Primeira observa em volta, e percebe que todos os olhares estavam sobre ela. Sem ter alternativa, leva sua mão direita até o lápis-lazúli preso em seu colarinho, desprende-o e segura em suas mãos.
— É isso, certo? — Disse Primeira, séria.— E, assim, ninguém se machuca.
–Certamente. — Edward estendeu a mão para a Hora.
Primeira joga seu torso por cima da bancada, e estende lentamente a pedra para o rapaz,. Ele, convencido, abre a mão de maneira vitoriosa. Quando os dedos de Edward encostam na joia...
— Décima primeira, agora!!!
Décima Primeira Hora— uma maga— dispara uma corrente elétrica em direção ao rapaz. Elaine sente algo passar raspando pelo seu pescoço, tão fino e afiado que decepou alguns de seus fios de cabelo. Mas o alvo não era ela. O feixe de pura eletricidade foi disparado em direção a Edward, acertando-o de forma tão precisa e perfeita, que não o fez derrubar o receptáculo. Os músculos do rapaz se contraíram de tal maneira, que segurou firme o objeto até ir ao chão. Tanta habilidade só poderia vir de uma elementalista como Décima Primeira.
Elaine berra e sai correndo em direção a Edward, que está caído. Décima Primeira se aproxima, rapidamente, e afasta a garota, impedindo-a de continuar.
— Não precisamos de sentimentalismo agora. Precisamos de algemas.
Após dizer isso, a Hora foi em direção ao rapaz. Virou-o para cima com o pé, e viu sua face desacordada.
— Esse aí tá derrubado, Primeira. —Disse a Hora número onze, pressionando o pé contra o peito do rapaz.
A Hora estica seu torso para pegar a relíquia de Edward, pressionando-o cada vez mais com a sola de seu calçado
—Huh. Sabia que um moleque de rua não serviria para Guardião...— Agachou-se e estendeu a mão em direção à relíquia. Ao tocar a peça, sentiu a enorme maldade que aquilo possuía. Segurou-a, girando o pulso lentamente para ver seu entorno.— É... É o Astargan mesmo.
As horas ficam aliviadas, e se reúnem para assistir ao rapaz desacordado. Elaine observa, distante, pensando no que iriam fazer com ele como forma de retribuição pelo estrago que havia causado. A então guardiã olha ao redor todas aquelas expressões estarrecidas.
Um enorme estrondo é ouvido, quando o portal do anfiteatro é completamente despedaçado por uma enorme criatura, um evtann — camaleão de uns três metros, multicolorido — raivoso, estourou as entradas do hall, levando tudo pelo caminho.
Instantaneamente o olhar de todas as Horas é levado para o animal, e em meio ao reboco e poeira, reparam na pessoa que o estava dominando: Elisa.
— Sentiram minha falta?
Espero que gostem deste remake. Nunca me senti satisfeita com o evento da cerimônia, mas agora atualizei tudo!
-Anna.
Este capítulo foi revisado por Gustavo Sacillotto.
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