|Meu nome é Abel. pt.2|

Aquele era um dos arranha céus mais altos que havia visto. Todo de vidro, imponente e pretensioso. Não se deu o trabalho de ler o nome, sabia bem que esse era o lar de um velho conhecido.

Foi fácil passar pela recepção. Elogios aqui, piscadelas ali... nada que Abel não tenha feito antes. O problema eram os seguranças que cobriam o andar onde Renata estava. Eram oito. Mas estavam bem espalhados o suficiente para ter um pouco mais de domínio sobre as mentes dos guardas, infelizmente acabou tendo que usar os punhos desta vez. Calculadamente, Abel foi apagando sua presença conforme ia desacordando um a um. Apesar de ser mais mental que físico, era muito fácil lutar. Podia facilmente prever os golpes do oponente e pensar numa resposta rápida o suficiente. Não haviam armários o bastante para esconder tantos guardas, mas não era um problema, afinal, ninguém teve uma visão clara o bastante para fazer um retrato falado.

Entrou num quarto enorme: todo em veludo, bronze e vinho. Ficou impressionado com tamanha prepotência e ostentação, e então se sentou.

Ouviu passos vindos em sua direção. Colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha, e preparou seu melhor sorriso. Não demorou muito para ser encontrado. Era um homem belo, de cavanhaque e cabelos bagunçados, era um "desleixo" que provavelmente teria levado vidros de laquê para replicar. Tinha olheiras fundas de alguém que virou as madrugadas tomando vinho, por isso o semblante de constante ressaca. Suas roupas, no entanto, estavam perfeitamente alinhadas, botas polidas e mangas arregaçadas, além de um belo colete de alfaiataria. Ao que parecia, estava trabalhando em alguma coisa. Assim que o artista fez contato visual com Abel, abriu um calmo sorriso; tomou o lenço de sua camisa e limpou as mãos.

— Não sabia que trariam outro tão cedo... É um prazer. — Estendeu a mão para Abel, que não se deu trabalho de retribuir o aperto de mão.

No entanto, o artesão não se sentiu nenhum pouco abalado, como se estivesse acostumado com atitudes egocêntricas.

—Hmmm... Certo. — disse, rodeando o telepata, com olhos atentos.— Esbelto, forte, olhar exótico... e esse cabelo! Fabuloso!

Eu agradeço. — Respondeu Abel, humildemente.

— Oh.— Reagiu ao ouvir a voz do telepata em sua cabeça. Mas logo sorriu, como se fosse mais uma coisa divertida que ele pudesse desfrutar. — Devo elogiar seu belo par de brincos também... Seria incômodo perguntar quem os fez?

— Foi você, é claro.

O artista caiu automaticamente na gargalhada:

— Mas é claro! Que bobagem a minha! Quem mais poderia tê-los feito não é?— Sentou-se calmamente numa poltrona logo à frente de Abel. — Sei que já lhe avisaram, mas o que acha de modelar pra mim? Você seria uma grande adição para minha nova coleção.

É uma honra, realmente. Arquimedes— Deu o sorriso de sempre, porém dando uma pausa que sugeria que precisava ser convencido.

— Porque não damos uma olhada em alguns de meus trabalhos?— Apontou para seu estúdio — Talvez você mude de ideia.

Seguiram por uma sala repleta de manequins mostrando as mais variadas peças que misturavam vestuário e arte. Calças cáqui, saias masculinas e o uso constante de geometria eram sinais de um típico designer progressista. Apesar da imensa prepotência e a forçosa essência juvenil das coleções, Abel não conseguiu deixar de perceber que os manequins combinavam com cada roupa produzida, alinhando as cores, feições e proporções das modelos.

—Assombroso não? Eu mesmo produzo meus próprios manequins— Deslizou os dedos pela seda de um dos vestidos— Acredito que até mesmo itens de mostruário devam ser arte.

Certamente, são uma bela visão. Os detalhes, cores e até mesmo a textura da pele são praticamente idênticas à realidade.

Arquimedes dá uma bruta gargalhada. — Ora essa! Assim você me deixa sem jeito! Apesar de lisonjeado, preciso dizer que ainda sou um mero escultor em essência. Só dedico o meu melhor para que minhas criações fiquem em suportes adequados.

Seus suportes pensam, Arquimedes?

O homem pensou um pouco e começou— Imagino que cada obra ...

Deixe-me repetir: Seus suportes pensam?— Reforçou Abel.

O artista se vê confuso e responde com um silêncio brusco.

Abel se dirige a um dos manequins, que usava um gigantesco vestido azul de cetim e pedrarias. Observou tamanha beleza e esplendor que aquela escultura transmitia... e rasgou-lhe o traje. Com apenas puxão forte o suficiente, fez a peça toda ir abaixo. Cacos dos adornos brilhantes estilhaçaram-se ao chão, fazendo sons estridentes. Revelou-se então, uma cena inimaginável. O corpo do manequim estava inteiramente remendado por cicatrizes horrendas. Ao que parecia, o tamanho do traje servia para esconder tais marcas. Arquimedes fazia uma expressão de frustração e desconforto, enquanto Abel o encarava profundamente.

Parece que você não deu fim nesta aqui— Segurou na mão da peça, que retinha o mínimo de calor.

— Não faço ideia do que esteja falando, senhor...—

Manequins não se mexem, Arquimedes— Apontou para os dedos pálidos do mostruário se contraindo levemente.

O estilista se cala mais uma vez.

— Então a matéria prima das suas "peças" são seus modelos, não é? Apesar de ser um plano porco, ele até que é bem pensado. Quer dizer, você tem dinheiro e materiais para embalsamar suas vítimas de maneira que não exalem cheiro. Também sabe retirar os fluidos para que o corpos não inchem ou mudem de cor. E quando inevitavelmente começam a apodrecer, é só fazer com que seus guardas se livrem dos restos. Seria um plano perfeito, você e suas múmias, se não fosse pelo seu acabamento horrível o suficiente para deixar remendos por toda parte, e sua prepotência de nem ao menos conferir se suas vítimas estão mortas ou não.

Arquimedes respondeu de pronto. — Gostei de você. É realmente muito esperto... Mas você está errado quanto a uma coisa. Aquelas cicatrizes foram de antes... Quando aquela pobre garota correu sem rumo pelo meu estúdio, nua e apavorada. E por resistir a mim, acabou tropeçando em um de meus machados. —Abriu uma caixa de jóias, onde tinha uma pistola dourada dentro. —Uma pena, ela ficaria linda numa mini saia lilás.

E você não se envergonha de tais atos?— Transmitiu Abel, enquanto olhava cautelosamente o assassino manusear sua arma.

— Porquê? Todo mundo adora! Pagam o dobro quando minhas peças vêm com os manequins "personalizados". Não seria inocente o bastante para acreditar que ninguém dos meus compradores descobriu meu segredo. Acabou que virou um vício!

Abel assistia aquilo com interesse. Compreendia a infantil excitação da elite em ver a morte de perto. Afinal, ninguém morria na colônia a não ser por doença ou acidente. Certamente uma pessoa assassinada era algo raro de se ver, e não era de se surpreender que tenha se tornado tendência. As roupas de Arquimedes eram, de fato, muito bem feitas, mas tinham um toque vulgar que o incomodava... talvez fosse a existência de cadáveres dentro delas, ou quem sabe o péssimo uso de estampas animais.

O fato de que Arquimedes era um ótimo atirador e um assassino em série, era algo deveras ruim. Qualquer movimento em falso, lhe renderia uma bala na cabeça. Abel podia facilmente ler seus pensamentos e prever ações, mas ainda não conseguia calcular a trajetória de balas. Se Arquimedes atirasse descontroladamente, tudo o que Abel poderia fazer seria desviar como qualquer pessoa normal. Mas a questão acabaria aí.

Abel nunca foi uma "pessoa normal".

Como um lampejo, o telepata arremessa seu corpo para frente, o que deu tempo para Arquimedes engatilhar a arma e atirar uma vez. Teria acertado, se não fosse por alguns centímetros. Aproveitando-se disso, Abel arremessa um vaso de plantas na direção do oponente, que automaticamente destrói a peça, estilhaçando-a em mil pedaços. Mas isso tirou a visão de Arquimedes, que foi surpreendido, desarmado, e levado ao chão. Certamente Abel não era nenhum dos modelos que acabaram naquele estúdio.

O artista ficou sob domínio de Abel, este, que estava achando aquela agitação interessante, até que viu as pupilas de Arquimedes aumentarem de adrenalina. Ficou enojado. Não aproveitaria nem mais um segundo daquela situação se fosse para estar no mesmo patamar que um carniceiro. No entanto, não houve muito tempo para indignar-se, já que Arquimedes tomou um caco de vidro e tentou acertá-lo. Abel recuou de imediato, não podia se ferir de forma alguma.

— É um belo cabelo, querido. Vermelho realmente combina com você— Ao terminar a frase, pegou um de seus machados "de decoração" e se preparou. — Permita-me mostrar.

Abel, ao desviar de uma série de ataques do artista, alcançou uma faca de mesa, e perfurou-o no ombro esquerdo. O assassino parecia mais e mais eufórico, ao que seu próprio sangue tingia sua blusa de seda. Arremessou o machado. Abel mais uma vez escapa magistralmente, mas percebe que cortou o dedo num pedaço de vidro.

No mesmo momento, o mundo de Abel parou. Uma vertigem intensa o acometeu... sentia seus poderes mentais perturbados. Dez por cento de sua capacidade telepática tinha se perdido. Aparentemente estava um tanto enferrujado depois de 30 anos na cadeia. Não podia arriscar perder sangue, ainda mais sabendo que quanto mais machucado, mais sua monção enfraquecia.

O serial killer olhava os arredores, procurando algo que pudesse usar como arma. Deu uma curta risada como se estivesse certo de sua vitória, e exibiu uma afiada machete. Abel estava adiando o inevitável brincando daquele jeito, devia usar "aquilo", algo que devia ter feito desde o princípio.

Abel sente seus poderes transbordando do corpo. Precisava fazer isso rápido... Seus olhos brilhavam num âmbar profundo, era o olhar de quem não tinha nada a perder. Seus lábios coçaram para pronunciar o que jamais poderia ser dito. No entanto, uma frase aterradora alcançou a mente doentia de Arquimedes:

" Se jogue pela janela."

Como um impulso incontrolável, o artista enrijece todos os músculos do corpo e começa a caminhar em movimentos robóticos. Estava sendo forçado a andar. Seu rosto estava franzido e apavorado, como se não soubesse o que estava fazendo. Ele suava, ficava vermelho, como se fosse um prisioneiro na própria carne. Seria algo agoniante de se assistir, mas não para Abel. Arquimedes ,em linha reta, se dirige até o beiral da varanda. Era tão rígido seu movimento, que passou direto pela ponta afiada de uma mesa, rasgando seu pulso. Apoiou as mãos ensanguentadas no apoio da varanda, olhou desesperado para a quantidade de andares abaixo, e se arremessou de uma vez.

Arquimedes, o estilista, estava morto.

Ao ver aquilo, Abel respirou fundo e ajeitou seu paletó. "Que trabalho" pensou. Sabia que não tinha mais muito tempo antes de perceberem a morte de Arquimedes e invadirem o quarto, mas tinha um trabalho a fazer.

Um dos mais belos manequins ali era de uma garota asiática. Seu belo conjunto vermelho cintilante e sapatos scarpin se tornariam tendência em pouco tempo. A semelhança com sua irmã era gritante, mesmo se tratando de duas anônimas. Infelizmente o único brilho que havia em seus olhos era de vidro e lubrificante.

Dirigiu seu olhar para a direita, viu o manequim de antes. Desde que chegou no ateliê, tudo o que ouvia eram as sílabas " Mi" e " Le" , repetindo-se em ciclo. Era um pensamento subconsciente, frágil, praticamente de alguém que estava em um coma. Forçou seus poderes um pouco mais. Ouviu um choro tímido.

"Mi...le...ne..."

Milene. Esse era o nome dela. Provavelmente estava tentando avisar seu nome para quando a encontrassem. Infelizmente não havia salvação para ela. Seu corpo estava repleto de cola e plástico... foi um milagre ela ter durado algumas poucas horas. Mesmo se a resgatassem, ficaria entubada e com muita sorte , viveria tetraplégica. Para alguém que é acrobata num circo, seria algo pior que a própria morte. Não importava o quanto a família do circo fosse amável e acolhedora, iriam sofrer com ela até a sua morte. Milene podia até ser feliz... Mas não o suficiente.

Esse foi o pensamento que teve quando Abel engatilhou a pistola e disparou um tiro de misericórdia. Misericórdia ainda era um nome muito bonito para isso, mas continuou em frente.

Ouvindo os policiais se movimentando para entrar, Abel se arremessou pela janela, sem nem mesmo pensar no que encontraria lá embaixo. Ah! A liberdade! Perigosa e sensual, que atrai e mata ao mesmo tempo. Via as janelas desaparecendo da vista, até que notou em uma fração de segundo, uma certa garota de cabelos acobreados jantando ao lado da janela, e sorriu. A garota, embasbacada, observou o homem em queda livre com extrema curiosidade. O destino é mesmo incerto, como as marés.

Não foi difícil chegar no chão em segurança, já que calcular andares de acordo com os pensamentos de residentes era uma coisa muito simples. Tudo que precisou fazer foi se agarrar num batente e entrar. Nada que não tivesse feito antes na sua vida pré-prisão.

Já em terra firme, se misturou na onda de médicos, policiais e viaturas ao redor do mais novo "suicida" da cidade. Abel não precisava se preocupar em ser enquadrado. Ninguém havia o visto, já não possuía digitais há muito tempo, e as únicas pessoas que sabiam dele naquele prédio estavam mortas.

Pegou seu mais novo celular — que podia muito bem usar, sintonizando seus poderes telepáticos ao amplificador de sinal do aparelho — e telefonou para sua mais nova "amiga".

Olá Lince.

— Sim, fiquei sabendo— Interrompeu a gata — Você foi um pouco longe, mas serviu. Achou a Renata?

Sim, ela estava lá.

—Eu sabia! Muito bem, trato é trato. A Nádia que você procura vai estar na festa de aniversário de Caldrath , no início do verão. Foi isso o que ouvi.

Agradeço. A propósito, sinto muito pela sua irmã.

— O quê? O que você quer dizer—

E a ligação se encerrou.

Serena Magdala, irradiou alegria ao ser convidada por Abel como acompanhante ao baile de aniversário de Caldrath. Ficou implícito o detalhe de que de fato, Abel não conseguiria ir sem ela. Ao que Abel sentiu o peso de novos corpos nas costas, bufou. Levou os olhos para o céu, e pensou:

"Te encontrei, mãe."

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