|Gélida Ternura|


Elaine acordou assustada naquela noite. Os vagões tremelicavam e a tempestade assobiava por entre a maquinaria. Ao abrir os olhos, surpreendeu-se ao ter uma forte vertigem. O quarto inteiro girava, e não demorou para que se sentisse profundamente nauseada. Ainda estava de vestido, e aos poucos ia relembrando os acontecimentos. Suas pernas pareciam feitas de gelatina, e logo que se pôs de pé, já foi ao chão. Por algum motivo, não sabia mais como andar. O enjôo só aumentava com vagões indo para lá e pra cá.

"Banheiro". Era a única coisa que a guardiã pensava naquele momento. Escorando-se nas paredes, ia lentamente caminhando pelos vagões. Sentia sua cabeça latejar de tanta dor.

"O que está acontecendo comigo? Estou doente?". Não conseguia recobrar direito a noite que passou com Ícaro. A única coisa que sabia, era que seu estômago estava revirando e sentia muita fraqueza.

"Encontraram ele? Procuraram nas florestas abaixo?"

Uma voz cálida transpassou pela fresta da porta. Elaine encostou no rodapé, e mesmo sem ter a intenção, começou a escutar aquela conversa privada. Décima Segunda estava ao telefone, o que era de se espantar, porque geralmente esses aparelhos ficavam espalhados pela cidade em estações, e as ligações eram caríssimas. Um aparelho daqueles dentro de um trem, mostrava a riqueza que Zênite possuía.

A senhora estava profundamente perturbada, e era visível que estava tremendo ao receber aquela ligação. Elaine sentiu ar frio e puro entrando nos pulmões, e suas canelas começaram a arrepiar de frio.

— Então ele realmente se foi... Entendo. Obrigado por procurarem — afirmou Décima Segunda, batendo o telefone no gancho.

O trem balançava de uma maneira que o estômago de Elaine revirava a cada curva. Até que se tornou impossível evitar botar tudo para fora. A umidez tomou os pés de Elaine, que mal compreendia a própria situação. No entanto, após vomitar, sentiu um alívio tremendo no mesmo instante, sentindo-se mais leve do que uma pluma. Mesmo aliviada, não teve tempo de aproveitar sua própria melhora, já que Décima Segunda estava a encarando já fazia um tempo.

— Ora essa... Elaine? — disse a senhorinha se escorando na bengala, atônita.

Elaine certamente não sabia como se portar numa situação daquelas, então de forma toda desengonçada disse:

— Mãe Décima Segunda! Eu acho que estou doente, eu...!

Um forte estrondo ecoa, seguido de um impacto poderoso que passou de um vagão para outro até atingir as duas que conversavam. Elaine bateu com a cabeça no batente da porta, enquanto a senhora conseguiu se escorar num piano.

Algo certamente tinha colidido com o trem. No entanto, levou alguns segundos para que Elaine se recuperasse do baque. Tocou sua testa úmida, e viu que estava cheia de sangue. Buscou desesperadamente Décima Segunda, e foi ajudá-la assim que a viu.

— Eu estou bem, pequena — declarou a senhorinha, com a voz trêmula — vá descobrir o que aconteceu com o expresso!

A guardiã respirou fundo e foi em direção aos outros vagões. As luzes tinham se apagado, assim como o sistema de aquecimento inteiro. Elaine perguntava para as pessoas que encontrava o que havia acontecido, mas ninguém conseguia dizer com precisão. Continuou avançando por mais alguns vagões até que deu de encontro com uma aglomeração de funcionários do trem. Em meio ao alvoroço, viu uma silhueta branca.

— Ícaro! — Gritou a guardiã que se embrenhava entre o pessoal.

O jovem diplomata analisou os arredores, mas eram muitas as pessoas que o rodeavam. Tentou dar alguns pulinhos para ver se conseguia encontrar quem o chamava. Com algum esforço, conseguiu ver o vestido cintilante da garota, e então a puxou pelo braço, trazendo-a para si.

— Oi! — Cumprimentou Elaine, um tanto sem jeito.

— Senhorita, você está aqui! Que bom que está bem!— Suspirou Ícaro, aliviado — Ei, o que houve com a sua testa?

— Tá tudo bem! Eu escorreguei. Mas eu não sinto nada, é sério!

Ícaro responde com uma expressão triste.

— O quê está acontecendo afinal de contas? — Perguntou Elaine.

— Estou tentando entender o que cada um aqui está tentando dizer, mas são muitas pessoas ao mesmo tempo!

— Lá atrás são os quartos das horas, só eu e a décima segunda que fomos pra cama cedo estávamos lá. Acredito que seja o lugar mais seguro, por agora.

— Certo — Preparou-se, resoluto. — Vamos pessoal! Preciso que venham por aqui!— Sinalizou para que os funcionários se escondessem na parte de trás.

Era estranho como Ícaro parecia mais líder do que a própria guardiã. Elaine engoliu seco, ao que sua náusea piorava e sua confiança também. O vagão logo se esvaziou, o companheiro diplomata dava algumas instruções a um dos funcionários de como se organizarem no refúgio. Sua capa longa e branca balançava sutilmente, acompanhando os movimentos do embaixador. Juntamente com seus maneirismos repletos de polidez, Ícaro certamente poderia ser confundido com um príncipe de alguma uma ilha distante. Todas as vezes que havia visto um diplomata pelas regiões palacianas, pareciam apenas estrangeiros de nariz empinado, muito diferente do que Ícaro aparentava. O albino repousou as mãos sobre os ombros de Elaine, mirando-a com confiança:

— Talvez devêssemos investigar. Eu posso questionar quem ainda estiver na frente para entender o porquê disso tudo.

— Melhor não. Seria perigoso demais para você. Pode deixar que vou sozinha.

Ícaro sorriu para guardiã com esmero.

— Mas não é o que quer dizer. Certo?

— Droga, esqueci — A surpresa de Elaine ficou visível em seu rosto

A senhorita não quer ir sozinha — disse segurando a mão da garota docemente — e é por isso que eu vou com você.

A guardiã soltou um longo suspiro.

— Eu não sei se sou a Guardiã que todo mundo espera, ainda. — Disse a garota apertando os punhos — Eu ainda sou só mais um soldado.

— Então é isso — Ícaro segurou o pulso da garota, encarando-a profundamente — Lute como um soldado, então.

Com um sorriso no rosto, Elaine foi conduzida ao próximo vagão.

Estava cada vez mais difícil abrir as portas dentre os carros. Elas estavam pesadas e custavam a se mover mesmo com duas pessoas empurrando. Aquele certamente não era um dos maiores expressos da colônia, mas era muito leve e veloz. No entanto, a locomotiva não estava nem na metade de sua velocidade, tampouco seus estabilizadores de alta quilometragem estavam ativos.

O frio aumentava. A região montanhosa entre Tegloncy e Caldrath podia ser mais fria, de fato. Mas não aquela época do ano, e nem a ponto de se bater os dentes. O clima na colônia era controlado com magia, já que seu tamanho diminuto não permitia estações do ano.

Elaine deslizou os dedos pela janela embaçada, deixando um rastro visível. Tudo lá fora estava completamente branco.

— Espera... Neve?

—Isso é ruim. Esse trem não foi feito pra baixas temperaturas — alertou Ícaro — o motor deste expresso deixa a bateria garélica exposta, como forma de regular sua temperatura. Mas o mineral Garel só tem suas propriedades energéticas quando está acima de vinte graus, é por isso que a locomotiva está parando.

— Alguém aqui deve estar causando essas anomalias no tempo. Será que sequestraram o expresso?

— Eu não sei. Mas é o que vamos descobrir — respondeu Ícaro, determinado. — As outras mães devem estar com o maquinista. Devemos ir.

No entanto, ao abrir a próxima porta, os dois dão de encontro com uma estranha cena: O vagão estava completamente congelado. Azul, como safiras. Era difícil até de caminhar, tamanha a polidez do piso glaceado. Seis estátuas de arqueiras feitas de gelo, se formaram nas extremidades do recinto. Todos os móveis, paredes e janelas estavam completamente soterrados, assim como a porta para o outro vagão.

— Eu vou cuidar disso. Então, se puder, poderia se afastar por favor? — solicitou a garota, com certa timidez.

Ícaro ficou um tanto confuso, mas obedeceu prontamente. Naquele mesmo momento, uma explosão de partículas brilhantes aconteceu diante de seus olhos. Era intenso, e a beleza das nuances cromáticas lhe tirou o fôlego. O corpo de Elaine cresceu, ficou mais forte e escultural em poucos segundos. Seu traje cintilante mostrava com perfeição todos os tons da aurora. Toda aquela metamorfose mística deixou o embaixador completamente extasiado.

— Pronto! Deu tudo certo! — comemorou Elaine, empolgada com seu feito. Quando se virou para trás, deu de encontro com a face encantada de Ícaro.

Os dois se entreolharam, num silêncio constrangedor.

— Ah é! Você ficou tão... alta! — Respondeu o diplomata meio desengonçado — No bom sentido! Como uma montanha, ou talvez um belo vale!

A guardiã riu baixinho, sabendo que seus dois metros e meio podiam assustar alguns desavisados. No entanto, seu sorriso desapareceu quando um sussurro doloroso ecoou em sua mente.

— Espere! Ouviu isso? — Interrompeu a dama.

O embaixador não demonstrou resposta. Conseguiu, por um momento, sentir o medo de alguém por através do próximo vagão, além de sentir os batimentos lentos de um coração fraco.

Elaine atravessou apressadamente o vagão até chegar na próxima porta que jazia sob uma parede grossa de gelo.

— Tem alguém ali! — Exclamou a guardiã.

Pensou que não poderia mais se segurar se quisesse mesmo impressionar as Horas. Ponderando sobre isso o suficiente, cerrou seus punhos e preparou um golpe para estilhaçar aquela parede de uma só vez. Encheu seu coração de força, fazendo com que uma aura benigna envolvesse todo o seu corpo. Observando aquilo, Ícaro se afastou mais uma vez, sabendo que dali sairia um ataque potente o suficiente para gerar alguns destroços. O braço de Elaine tremia, tamanho o poder contido.

A guardiã libera seu golpe. Seu punho viajou poderosamente até o seu destino, como se fosse um meteoro cruzando os céus. No entanto, a alguns milissegundos antes de atingi-la, a parede brilhou num azul ainda mais intenso, seguido do som de algo mecânico disparando. Elaine se virou de maneira abrupta, agarrando o que quer que tenha chegado próximo a si.

Três flechas. Uma numa mão e duas em outra. Ficou um tanto animada com a própria façanha, dito que jamais teve conhecimento de seus reflexos serem tão rápidos. Buscou imediatamente Ícaro, e também a validação que precisava através de seu sorriso.

Mas ele não estava ali.

O formoso e amável embaixador, que era conhecido visualmente pela sua aparência branca da cabeça aos pés, agora estava manchado de uma nova cor: vermelho.

Com uma flecha em suas costas, Ícaro estava ao chão, e foi naquele momento que Elaine soube: o trem estava tão frio, porque a morte estava nele.

Ai que tudooo! Primeiro capítulo do ano, de muitos mais! Vem comigo <3

Ortografia e correção: Luiz Carvalho de Sá







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