|Ebulição|
- Eu estou bem - gaguejava Ícaro, com dificuldade de respirar.
Elaine envolveu o diplomata nos braços, tentando compreender aquele desfecho. Tinha medo que aquela flecha tivesse acertado algum órgão vital.
A garota não exitou: começou a tratar da ferida como podia, usando sua aura reparadora. No entanto, não havia sangue, apenas uma perfuração profunda. No auge de seu caos interno, sentiu a suave mão de Ícaro em seu rosto.
- Senhorita, não faça isso... - sussurrou o diplomata, com um leve vapor gélido escapando de seus lábios.
- Shh... Vai ficar tudo bem! Eu vou curar você, é o que eu faço, não é? - tranquilizou Elaine .
- Não vai dar tempo - gaguejou - o expresso... - suas palavras se tornaram cada vez mais pausadas, até que seus olhos se fecharam por completo.
Mal houve tempo para qualquer reação que fosse, e o corpo inteiro de Ícaro foi coberto de uma fina camada de gelo cristalino, tornando-o uma estátua viva.
Elaine mal podia acreditar no que estava diante de seus olhos. Não tinha força suficiente para descongelá-lo imediatamente, o tempo estava correndo, e não conseguia pensar na possibilidade de deixá-lo ali. Acabou de conhecê-lo, e agora estava naquele estado de vida ou morte. No entanto, se Ícaro estivesse mesmo certo sobre o trem, o sistema de aquecimento iria parar assim que o motor esfriasse, e então todos ali congelariam como ele.
Era sabido, desde os primórdios, que o terceiro e último item sagrado da guardiã era o elo da glória, uma coroa dourada que a fazia emanar uma aura quente e iluminada por onde passasse. Mas desde a cerimônia não conseguia usar o potencial completo do item, agora sendo capaz de aquecer apenas a si mesma.
- Ícaro, me escuta - disse a guardiã, resoluta- eu vou dar isso aqui para você.
Elaine retira a auréola do topo de sua cabeça -Está fraco, mas é o suficiente para te manter vivo.
O diplomata é coroado pelo item mágico, cobrindo-o de luz pura.
- Eu volto logo. Por favor, me espere até lá.
A guardiã acomodou Ícaro como pôde. Desviou o olhar, temendo um futuro onde mais alguém tivesse que morrer por sua causa. Um vórtice de pensamentos acometeu Elaine assim que encarou a janela congelada, refletindo sua face. Seu ventre latejou, e tudo o que pôde fazer foi cobrir seu estômago com as mãos no mesmo instante. Sua respiração estava descompassada, seu coração parecia inchar como um balão.
Com as mãos trêmulas, segurou Asterí atarrachada em seu peito, com força. Sabia que ninguém mais naquele trem poderia tomar seu lugar. Ela agora era a única heroína da colônia. A nova estrela fugaz.
Há pouco tempo atrás parecia algo emocionante, suceder sua ídola, viver uma aventura. Mas aquilo só seria um fardo leve, só seria divertido, só faria sentido, se estivesse com ele.
O trem chacoalhou com força, interrompendo seus pensamentos. Não havia mais tempo. Repleta de incertezas, desenroscou o acessório de seu peito e chamou a estrela em seu coração:
"Por favor, estrelinha, eu não sei bem o que você é, nem de onde veio, mas eu preciso que me ajude mais uma vez!"
Com certa insistência, o pequeno artefato começou a cintilar. E aquele mínimo brilho incendiou, até que a estrela voltasse a ser a espada que um dia foi.
Asterí ter a respondido, deu a Elaine a coragem que precisava. Com um pensamento, guiou a estrela para que abrisse uma passagem pela camada de gelo e metal das paredes. Decidiu sair pela direita.
A heroína se depara com a violenta nevasca invadindo o vagão, e imediatamente se lança para fora. Temendo que aquele frio superasse o poder de seu elo, condenando Ícaro, cobriu o vagão todo com seu véu do amanhecer para protegê-lo.
Faltava agora buscar o culpado daquilo tudo, e teria que fazer isso sem sua capa.
Vagando em meio a tempestade, o tempo passava devagar. Estava difícil de respirar, já que o ar seco e gelado enchia os pulmões de Elaine dando uma horrível sensação de sufocamento. A guardiã estava sem seu Elo, mas seu corpo ainda era mais resistente ao frio do que qualquer um na colônia , no entanto, apenas uma guardiã seria o suficiente para enfrentar a tempestade que viria a seguir?
Ouviu-se um alto e reverberante assobio.
Em meio ao vento congelante, onde a visibilidade era mínima, surgiu um indivíduo sob um dos vagões do trem em movimento. Trajado de roupas pesadas e pele animal, usava uma máscara feita a mão com a face de uma coruja.
Não havia como conversar diante daquele clima enlouquecido. Os dois ficaram se encarando por alguns segundos sob o trem em movimento, com o vento cortante atravessando seus corpos. Até que o aparente caçador ártico, lhe apontou o dedo convictamente. Elaine estremeceu.
Pequenas partículas começaram a se agrupar ao redor do desafiante, tornando-se afiadas farpas de gelo que dispararam em direção a Guardiã, e por pouco, foi capaz de se desvencilhar.
O caçador misterioso começou a preparar o mesmo ataque, mas Elaine decidiu tomar ofensiva e impedir que mais farpas como aquela fossem feitas.
Ainda lhe era estranho, atacar. Passou meses antes da cerimônia, estudando e treinando para defender, cuidar, proteger. Tudo o que podia fazer era replicar os golpes de Edward, que havia visto centenas de vezes. No entanto, precisaria de mais que isso se quisesse se tornar uma oponente á altura do mal que manchava a colônia.
A heroína impulsionou-se até o oponente, invocando Asterí para atacá-lo. O caçador era rápido. Elaine o ataca seguidamente, buscando uma abertura, mas o inimigo conseguia produzir formações de neve em segundos, que bloqueavam Asterí. Elaine estava convicta, no entanto, sentia que o medo e a adrenalina da batalha percorria o seu corpo todo.
O desespero em recriar com perfeição as técnicas de Edward, fez com que Elaine fosse cada vez mais agressiva. Os golpes foram ficando mais curtos, mais rápidos, e mais descuidados. Tentou até um golpe pesado com a espada, mesmo assim sentiu seu ataque ser aparado instantaneamente. Sua arma foi agarrada pelo caçador, que tinha seu braço coberta por uma grossa camada congelada. Neste momento, a espada perdeu seu brilho intenso, ficando cinzenta como um asteróide.
Elaine não podia crer no que estava diante de de seus olhos. Uma estrela flamejante, havia se apagado? Lembrou-se de que estrelas morrem quando seu núcleo esfria. Seria essa a fraqueza de Asterí? Tentou clamar pela espada diversas vezes, no entanto, parecia distante, como estivesse dormindo.
O caçador então, se ergue numa enorme torre de gelo, distanciando-se da guardiã. Certamente aquele homem sabia que a vitória seria não do mais forte, mas do mais resistente. No entanto, Elaine não tinha escolha, muito menos experiência para pensar numa solução adequada. Alçou vôo e deixou sua espada para trás.
Quando o Coruja de Neve julgou que estava alto o suficiente, abriu seu manto amplamente, assemelhando-se a grandes asas brancas. E então se lançou na nevasca. Por segundos, o homem desapareceu completamente no ar, para logo depois surgir triunfante, planando na tempestade, que o guiava para longe. Parecia impossível, um homem ser levado pelo vento, como se seu corpo não pesasse mais do que uma folha. No entanto, o caçador era a prova viva de que a violenta nevasca e ele, eram um.
Conforme o inimigo avançava, mais e mais farpas de gelo iam sendo formadas e lançadas em direção de Elaine, que o perseguia. No entanto, apesar de conseguir desviar dos projéteis, vários outros acabavam se direcionando às margens do trem em movimento. Elaine perdia o foco, enquanto protegia a locomotiva e seguia o fugitivo ao mesmo tempo.
Quanto mais o tempo passava, mais a locomotiva ficava lenta. O núcleo do motor estava parando; e não era mais prudente ser tão cuidadosa. Não havia outro jeito: teria que usar a única coisa que possuía, em sua vantagem: sua força.
O coruja atravessava os céus em velocidade impressionante. Elaine disparou em direção a ele com a intenção de empurrá-lo para solo. Sabia que ele estava planando e precisaria de altitude, se quisesse se mover livremente.
Conseguiu agarrá-lo em pleno ar, no entanto, enquanto cortavam a tempestade, sentiu seus braços perdendo os movimentos. Percebeu então, seus membros sendo cobertos por gelo, e entrou em pânico. instintivamente usou toda a força que tinha para libertá-los dali, deixando o caçador escapar.
Parou por um momento sobre um dos vagões do trem, que agora estava em velocidade mínima. A guardiã chegou a conclusão de que não podia segurá-lo, muito menos atacá-lo diretamente. "Maldito juramento!" protestou a garota em sua mente. Estava sem armas e não podia atacar com as mãos nuas. Era um pesadelo. No entanto, seu oponente podia não saber dos detalhes da promessa, e se fizesse parecer ameaçadora o suficiente, talvez o caçador se entregasse, sem precisar ferí-lo.
Ou era o que Elaine pensava.
Pelas costas, sentiu seu torso ser envolvido pelos braços enormes e cobertos de gelo de seu adversário. No seu ouvido, surgiu uma voz rouca, batendo contra sua nuca.
"A...xia"
Ao ouvir isso, com os olhos arregalados, Elaine sentiu seu corpo amortecer progressivamente. Não conseguia desgrudar os braços do corpo, suas pernas não respondiam. Estava sendo congelada até a morte. Aos poucos, o gelo subiu pelo seu pescoço até alcançar nariz e boca. Tudo ficou turvo desde então.
A sensação de congelamento e ardência que vinha do fundo da língua, era terrível. Naquela altura, estava imóvel e impotente. Foi quando viu que o caçador lhe deu as costas, desaparecendo na nevasca, a guardiã já sabia que havia fracassado.
Elaine fechou os olhos e se destransformou. Já sabia que morreria, e não queria que fosse na forma de guardiã, a aspirante medíocre que havia sido até então. Pelo menos assim, não envergonharia Cordélia.
Pelo menos assim, morreria mais rápido.
"Mas é uma cachorra mesmo."
A frase ecoa na mente de Elaine, ao mesmo tempo que sente um calor suave por todos os seus membros, liberando-os um a um, até que a guardiã pudesse cair no chão.
- Au, au. - gesticulou Decipri, imitando um cachorro com a mão.
- Mas como...Décima Pri- Elaine responde, atônita.
Décima Primeira puxa Elaine pela roupa e a força a ficar em pé, sobre o vagão - Cala boca e vira aurora, pô.
Obedecendo a ordem, Elaine se transforma em guardiã novamente, indo contra tudo o que havia pensado há segundos atrás.
Não havia frio ali, apenas uma brisa suave que circundava as duas. Aquele domo que as protegia da nevasca, parecia ser um escudo proveniente da Decima Segunda Hora.
- Vamos logo atrás daquele cara, porque se eu ficar aqui mais três segundos perto de você, juro que te dou uma surra. - Decipri arrasta Elaine, enquanto as duas correm para o vagão principal.
As duas se aproximam do vagão-motor, dando de encontro com o caçador ártico. O homem, agora carregando um pedaço grande do cristal garel, núcleo do trem. Sem nenhum temor, estende o braço direito, devagar, apontando para as duas.
Antes que se concretizasse o ataque do coruja, Decipri sorriu e apontou de volta:
- Boom.
Uma explosão de fogo se desencadeia sob um estalar de dedos de Decipri, fazendo o caçador arder em chamas na mesma hora.
Elaine dá um passo para trás, apavorada com a cena.
- Mãe Décima Primeira! Vai matá-lo!
- Não ainda. - responde.
As chamas continuam a arder intensamente, mas o Coruja de Neve resiste, congelando o próprio corpo ao mesmo tempo que é obliterado pelo fogo. A disputa é árdua, e aos poucos os braços de Decipri começam a sofrer queimaduras profundas, enquanto o Coruja segue neutralizando os ataques.
- Garota! Você não sabe fazer nada, se não te mandarem?- berra Decipri - Me cura logo!
A guardiã, alarmada, se apressa para tocar os ombros da Hora, transferindo sua aura curativa, como havia feito algumas vezes antes. Os braços queimam continuamente, exibindo feridas expostas a medida que a guardiã os cura de novo. Decipri abriu um sorriso:
- Agora eu não preciso me segurar!
As chamas da Hora continuam aumentando de tamanho, ficando tão monstruosas que chegaram a descolar a pele dos seus dois braços, de uma só vez. A dor deveria ser insuportável, mas no rosto de Decipri só havia adrenalina, enquanto observava seu oponente sendo completamente alvejado.
E assim foram, longos minutos de um incêndio brutal e ininterrupto. Explosão atrás de explosão, até que não houveram mais gritos.
A nevasca deu lugar a uma neve suave e brilhante. Coruja havia sido derrotado.
E sob um monte de cinzas, restou apenas sua máscara, semi destruída, sem seu dono.
Décima Primeira, com leves chamuscadas nos braços, deu dois tapinhas no ombro de Elaine - Boa.
- Você o matou...
- Matei? Só vejo uma pilha de lixo aí - Decipri cruza com a guardiã, e a olha por cima do ombro com um ar superior - Lembre de quem fez esse juramento foi você - E saiu dali.
- Você tem certeza que está bem?
- Sim, pode ficar tranquila! Aquela flecha era mágica, assim como o gelo dele... tudo derreteu logo depois que você botou o coruja pra correr! - sorriu
Elaine abraçou o albino com toda a força que podia - Foi tudo culpa minha! Eu devia ter te protegido!
- Bom, você ainda está aprendendo! E pelo visto eu também vou ter que treinar um pouco de artes marciais com você, quando chegarmos! - sorriu Ícaro, acompanhado de uma suave careta
- Mesmo assim, você poderia ter se machucado - suspirou - e não veria mais você.
- Não seja boba. De agora em diante sou seu guia pessoal de Kalari! - pigarreou -Sua primeira missão foi incrível! Não se preocupe, você ainda vai ser uma guardiã fantástica!
Elaine dá um sorriso entristecido - É, eu sei.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top