|As Horas|

Elaine olhava a balinha em suas mãos silenciosamente. "É mesmo. É meu aniversário" e suspira. "Grande coisa".

Ela sabia que seria como todos os anos, vazio e sem graça. Nunca teve amigos ou parentes o suficiente para comemorar alguma coisa. Mas no fim das contas Edward sempre lembrava um ou dois dias depois da data e vinha implorando por desculpas. Era fofo para Elaine. Ela sabia que ser um espadachim do governo demandava tempo e esforço demais. Todos os dias Edward retornava ao dormitório pouco antes da meia noite, praticamente se arrastando até a cama. Porém, ordeiro como sempre, antes posicionava as espadas na parede da exata mesma forma, tanto é que depois de alguns anos até os suportes ficaram frouxos.

Elaine ajeita seu casaco, tirando os cabelos de dentro da gola. Fechou as portas e seguiu o caminho.

O palácio era praticamente uma cidade. Muito fácil de se perder, com vastos corredores que pareciam não ter fim. Cada passo que Elaine dava ficava mais apertado. Era a primeira vez que iria ficar na presença das horas depois de tanto tempo. Provavelmente teria que se transformar para elas. Só tinha feito uma vez, e agora mesmo tendo melhorado bastante, não sabia se teria forças. Será que suportaria receber A Aurora? Só o tempo poderia dizer.

Chegando no local combinado, a porta já estava aberta; lá do fim do corredor onde Elaine estava já dava pra ver Segunda atrás de um púlpito , com algumas outras horas ao redor em bancadas menores. Ao passo que a garota se aproximava, mais evidente ficava o semblante fantasmagórico de Segunda. Extremamente indecifrável, inexpressiva, gélida.

- Bem vinda guardiã da aurora.- Saudou Segunda, com sua voz soprosa, quase soando como um sussurro. - Como estamos felizes de vê-la saudável e segura!

Elaine não se sentiu nenhum pouco confortável naquela situação, tão pouco bem vinda. O ato de ver Segunda emulando emoções era bizarro demais. Tentando desviar o olhar, reparou que nem todas as horas estavam presentes. Conseguia ver Segunda, Terceira, Quinta e Décima primeira. Haviam só quatro delas. Por qual razão? Elaine não se atreveu a perguntar, só queria que aquilo acabasse logo.

-Percebemos que está bem melhor, então decidimos checar se está apta ao combate.- Disse Terceira com uma voz forte.

"Combate?!" pensou Elaine. Mal havia saído da reabilitação e já estavam falando de outra briga?

A garota recuou um pouco o corpo, com as mãos na barriga.

Décima Primeira ao notar o recuo, cruza os braços e desvia o olhar. - Fraca.

" Segure a língua, Décima Primeira. Ela acaba de sair do Hospital ."

Uma velhinha usando um chapéu e lenço ao redor do rosto adentra a sala, estalando sua bengala no piso de mármore.

-Se fôssemos falar de força, Decipri- uma forma de encurtar Décima Primeira- Elaine estaria milhares de anos a frente de qualquer uma de nós. Um estalar de dedos do traidor e todas fomos ao chão.

- Cala a boca, sua velha.- Décima primeira vira a cara sem ter muito como retrucar.

Olhando de perto, o chapéu da velhinha tinha um broche de estrela. Marca oficial das horas. Elaine tinha se esquecido de como a Décima Segunda era diferente de todas as outras do conselho. Ela havia rejeitado a juventude eterna. Apesar de sua longevidade ter sido aumentada como a todas as outras, decidiu envelhecer esteticamente mesmo que de forma desacelerada. Os motivos disso ainda eram nebulosos para Elaine.

Cada uma das horas foi aparecendo no conselho conforme foram canonizadas ao longo dos anos. No caso de Primeira, foi porque curou os feridos logo após a transferência para a colônia; já que o povo restante ainda estava afetado pelos desastres do apocalipse. Com apenas seis anos já havia sido consagrada como a primeira das Horas.

A maioria do conselho é discreta sobre o porquê de terem entrado para o conselho, pois isso reflete "humildade". Menos Décima é claro, que vive nas festas filantrópicas dizendo: "Eu impedi a morte de mil pessoas!", obviamente bêbada, tentando cantar algum ricaço.

- Agora que estamos todas aqui - Segunda descansa o rosto sobre o punho. - Transforme-se

- A-agora? - disse Elaine, que recuou no mesmo instante.

- A conversão espiritual deve ser algo natural para qualquer guardião. Além disso, sua força é medida por sua fé. - Provocou Segunda - E a fé é algo essencial... ao menos para ser digna da minha pena e da misericórdia de Éden. Mas fique tranquila, sei que você não é nenhuma herege. - Deu um sorriso maldoso.

Elaine engoliu seco. De pobre coitada, agora passou a ser vista como descrente? Certamente, sua reputação já estava destruída antes mesmo de iniciar a vida de guardiã.

A garota fecha os olhos e sente o universo todo dentro de si. Tudo o que precisava era tomar posse de tudo aquilo. A escuridão avançava, afastando-a do cosmos. Era o medo. O medo de se ferir, de encarar a morte de novo. Mas então pensou em Edward. Pensou nele rindo enquanto a via tentar duramente controlar seus poderes. Pensou no Abel dizendo a ela que não estava pronta.

Uma súbita chama de fúria a tomou, incendiando seu coração. Aquela mesma sensação, de preenchimento apareceu. Em meio a milhares de corpos celestes, viu o sol nascer no horizonte; e ele a abraçou. Encoberta de luz, foi sentindo seu corpo ser envolvido em tecido cósmico e sua capa feita do amanhecer enrolar-se sobre seu pescoço. Cobriu sua cabeça com o capuz, e por fim encaixou sua máscara dourada no rosto.

Quando percebeu, estava pairando no ar, com uma presença assombrosa perante as horas .

Quinta, carismática, deu pulinhos enquanto batia palmas ao ver a Guardiã ao vivo e a cores.

- Incrível! Impressionante! Magnífico! - entre palmas- Ela não é estonteante?!

- Ô barrilzinho, a gente já viu ela na cerimônia. - Disse Décima revirando os olhos.

- Mas se você se lembra bem, na maior parte a gente estava protegida pela capa da guardiã. Nunca vimos a garota de perto, Décima. - acrescentou Terceira.

-Lá vai a sabe tudo. E meu nome é Irene, entendeu? I- re- ne.

-Décima, basta. O resto também. - Segunda levanta a mão sinalizando para pararem; apesar do evidente descontentamento de Irene por ser completamente ignorada.

- Elaine, como se sente aí dentro?- A velhinha diz enquanto sobe lentamente em seu lugar na bancada .

- Brilhante... Muito brilhante. - Afirma Elaine olhando para o corpo.

Segunda pega uma prancheta, alcançada por terceira. - Vamos ver... Dores de cabeça?

- Não.

- Tontura?

- Não.

-Dor nos pontos?

- Sim,um pouco. Mas as ervas ajudaram muito, e-

- Náuseas?

- Não?

- Cólica intestinal?

Quinta deixa escapar uma risada.

-N-não, essa com certeza não.

Segunda devolve a prancheta.

-Muito bem, finalizamos a primeira fase. - Ela junta as mãos.- Agora, escudo.

Instintivamente, como no exército, ao ouvir o comando "escudo" prontamente se cobriu com a capa, formando uma esfera. Era estranho como a capa se comportava exatamente como o tipo de equipamento que estava acostumada, mais estranho ainda era ter bos reflexos tão apurados.

- Muito bem... Próximo teste. - Ela dá um pigarro.- Agora chame... Aquela coisa.

" Aquela coisa?"ponderou Elaine.

- Ah! A espada!

- É... Aquele treco que quebrou o teto. - Debochou Decipri.

- Ai, socorro! Chama, chama! - Quinta se debruçava na mesa pra ver mais de perto.

- Segunda. Vai quebrar o teto de novo. Pode machucar alguém.- Argumenta Terceira, cautelosa.

- Posso protegê-las com meu escudo, se for o caso.- Disse Elaine.

Terceira intereompe mais uma vez.
-Que bagunça, hein. Se ela me levar até o teto eu posso abrir um buraco, com a minha monção, e...

Calem-se! Que importa o teto.- Chama logo essa porcaria, garota!- Gritou Segunda- Ela tosse- Perdão. Chame a espada por gentileza?

As horas se mostram constrangidas, já que pareciam conhecer o temperamento de Segunda.

Elaine às cobre com seu véu cuidadosamente, no entanto sem nem mesmo ser ordenada, a capa por si mesma se torna uma espécie de tenda. Era como se soubesse o que Elaine queria fazer, e então aprimorou a ideia.

A guardiã então, chama a estrela cadente, que a pouco havia nomeado.

" Asterí!"

Como esperado, a espada descende dos céus como um cometa, estraçalhando tudo pelo caminho até chegar a Elaine, que até então buscava desviar dos destroços.

Quando a comoção parou, a capa retornou a sua dona, que encarava a espada flutuante. Estava emanando um brilho dourado e ardente. Se tratava mesmo de uma estrela cadente em forma de espada.

- Fascinante. - Comentou a senhora. - Nunca vi nada parecido.

- Achei linda. - Quinta adiciona.

- Intrigante, de fato. - Terceira põe o punho no queixo, pensativa.- Será mesmo que essa espada é segura?

- O que ela quer dizer com isso?- Quinta questiona- Essa é uma arma enviada pela sacerdotisa Éden!

- Terceira tem um ponto. O fato da espada cair violentamente toda vez que chamada é um problema.- Assentiu Segunda.

Terceira sai da bancada- Felizmente tenho a solução para as senhoras. Segunda dá a deixa.

- Posso? - Se aproxima Terceira, enquanto aponta para espada.

Elaine concorda com a cabeça.

Terceira toca no objeto brevemente. Surpreendentemente ela não pareceu sentir ardência alguma. Logo separou as mãos, fechou os olhos, e começou o que parecia o ato de modelar o pleno ar. Em poucos segundos, a espada se transformou numa pequena estrela , do tamanho de um broche. E prendeu na capa de Elaine.

- Pronto. Agora Asterí vai andar sempre com você. - Falou Terceira satisfeita.

-Mas como?! -Gritou Elaine surpresa.

- Se trata de minha monção. Você tem a sua certo? - Elaine assente - A minha é de modificar a forma de sólidos.

- Essa espada estava fervendo! Como a madame não queimou a mão? Eu mesma não consigo tocá-la!

- Isso também é minha monção. Mas a parte ruim. Por causa do meu poder, não tenho tato algum.

Quando o trato com o criador foi feito, toda a magia restante do planeta foi redistribuída para os sobreviventes no formato de dons, as chamadas monções. Porém, toda magia agora tinha um preço: uma fraqueza. O maior exemplo conhecido, era o de Primeira que tem o dom de curar, restaurando tecidos; mas não pode curar a si mesma. Dizem os boatos que ao tentar salvar alguém de um incêndio, queimou as mãos. Por isso o uso das icônicas luvas . Mas nada disso foi confirmado até hoje.

-Obrigada, mãe Terceira. - agradeceu a guardiã, delicadamente.

- Você precisa estar em forma para lutar por nós e derrotar aquele rebelde, afinal de contas. - respondeu seca.

Passou pela cabeça de Elaine que naquele momento estava sendo estudada como a arma que enfrentaria Edward, como se tivesse uma dívida para pagar. E com esse pensamento, se entristeceu.

- Dando prosseguimento aos testes, precisamos checar o vôo e o controle dessa rocha ambulante - afirmou Segunda.

Um estrondo ecoa.

"Bam, Bam, Bam" como se fosse um tremor espaçado. Todas ali na sala olham para o teto que derramava reboco. O chão tremia, dando pra sentir as pequenas vibrações nas solas dos pés.

Os guardas adentram o recinto.

- Santíssimas, as madames estão bem?! - Disse um dos soldados.

- Sim estamos.- Confirmou Segunda. - O quê está acontecendo?

As Horas já iam se juntando ao passo que Elaine recuperava sua capa.

- Não sabemos, mãe Segunda! Mãe Sétima não nos mandou nenhum sinal! - respondeu ansioso.

-Sétima não avisou ninguém?- Pensou por um momento. E petrificou-se num instante. - A cerimônia.

Todas olham para Segunda, espantadas.

- Precisamos ir, rapi-

Um grito feminino ensurdecedor reverbera em todos os cantos de Zênite, causando um terremoto fortíssimo, levando estátuas, vasos e jarros todos ao chão.

A guardiã, confusa como sempre, tenta pensar na melhor abordagem naquele momento.

" O que é iss-"

"-vamos acabar -"

"Sétima está-"

Esses ruídos alcançam os ouvidos de Elaine... um dos poderes da Aurora era ouvir pedidos de socorro.

Só ela naquele momento poderia fazer alguma coisa. Com a possibilidade de dar uma nova impressão de si mesma para o conselho e a colônia, estava pronta para salvar as horas e receber um pouco de apreciação. Se se esforçasse, talvez as coisas poderiam ser diferentes dali em diante. Cheia de expectativa, Elaine alça vôo em direção á porta.

- Gente, eu já sei onde elas estão! - Diz a guardiã animada.

A garota desaparece de vista ignorando todos os alertas. Os olhares revoltados das horas se voltam para Segunda.

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