|A sombra |
Edward agonizava no que parecia um intenso terror noturno. Lembranças repetidas, reflexos de seu passado conturbado, cabelo castanho. E havia aquele rosto, cuja a única coisa que restava era o par de olhos azuis tristes, estes que motivaram aquele homem, então deitado no chão frio, se tornar o espadachim mais conhecido da colônia.
Num único momento, Edward sentiu uma corrente elétrica preencher seu corpo. Seus olhos se abriram. Suor gélido percorria seu rosto, pulmões dominados por uroboros expandiam-se violentamente. Não havia ar.
Os músculos enrijeciam, e ao sentir que ainda estava vivo, o rebelde urrou em desespero. No entanto, parte daquela agonia se dissipou na presença de mãos enrugadas, que envolveram Edward no mesmo momento.
- Está tudo bem, garoto, eu estou aqui. - a voz rouca acalentava.
- Orácio, é você?- Disse em voz trêmula enquanto segurava firme na mão do senhor.-Onde estou?
- Você dormiu por dois dias. Já que não despertava , o trouxemos para o acampamento.
- Você... cuidou de mim esse tempo todo?
- Desde aquele dia, eu prometi que iria tomar conta de você, lembra? - Orácio riu pausadamente, enquanto batia em seu joelho. - Você realmente dá muito trabalho.
Ao ouvir tais palavras, uma sensação aconchegante acometeu Edward, e um sorriso discreto surgiu em seu rosto.
Respirou fundo. Fechou os olhos por um instante, para que se situasse no tempo e espaço. As lembranças foram retornando, até que deu um salto do tatame em que estava deitado.
- Onde está a Dália?! Eu estava conversando com ela agora mesmo!
O senhor arregalou os olhos, apresentando falta de compreensão.
- Ora, mestre Edward. Acho isso muito difícil de isso ter acontecido. Eu fiquei com o senhor desde que Elisa partiu, e Dália foi junto com ela...
Edward cerrou os dentes no mesmo momento.
- A Elisa levou Dália pra onde?!
- Sinto decepcioná-lo, mas a madame não informou para onde ia. - Deu dois tapinhas no ombro do rapaz- Mas felizmente as duas retornaram sãs e salvas ontem mesmo e -
O rebelde não deu brecha para que Orácio terminasse. Levantou de uma vez, afastando as cortinas improvisadas que o separavam do resto do acampamento. Avistou Elisa conversando com alguns dos refugiados, então marchou até a mulher, e a virando-a para si, subitamente.
- Levou uma criança para o meio da floresta?!
A mulher olhou para ele com a postura relaxada e um tímido sorriso- É claro que não. Eu apenas a levei para um passeio na mansão Pollati.
Edward colocou as mãos na testa- Elisa... Não me diz que você usou a Dália como suborno...
- Ficou maluco? O quão baixa você acha que eu sou?- Elisa o olhou de cima a baixo com as narinas estufadas- Eu cuidei muito bem dela, pode perguntar! Ela ficou invisível praticamente o tempo todo!
-"Praticamente"?! - O volume de Edward já chamava a atenção de todos ali-O que você mandou ela fazer, Elisa?
- Amor, você está exagerando.- respondeu num tom apaziguador- Não aconteceu nada lá, e a Dália está super feliz brincando, olha!
Elisa percebeu os olhos de Edward fulminarem de raiva. Certamente, a escolha de Dália para auxiliar na missão era moralmente questionável, mas ainda sim a melhor opção que havia. Sentimentalismo sempre foi o principal motivo de qualquer estratégia ir ao fracasso. Mas com Edward, era impossível deixar as paixões de lado. Era por isso que certas coisas deviam ser feitas no sigilo, e o estado abalado do rebelde revelava isso.
Percebendo a comoção em volta, Edward mudou para um tom mais discreto, quase cochichando.
- Fez uma criança participar de um suborno? Qual o seu problema?!
- Querido, eu garanti a nossa ida para o cemitério dos valentes, e mais! Dália descobriu que...
- Basta! Não importa o que você fez. Não tem o direito de arriscar a integridade de ninguém aqui!
A discussão estava acalorada, mas o odor forte de enxofre dominou as narinas de todos ali. Ao olharem para cima, ao norte, uma luz avermelhada invadia o céu azul estrelado, juntamente com brasas e fumaça, no exato lugar de onde Dália e Elisa haviam ido. Ao notar o aparente incêndio, a raiva de Edward se tornou fúria.
- Elisa. O que você fez...?
Os olhos de Edward se intoxicaram com um tom de magenta profundo, ao que todos os seus músculos se enrigeciam e seus punhos cerraram-se. Elisa recuou, ao perceber que a força de uroboros transparecia no corpo de seu noivo.
- Edward... Você está enganado...Eu não-
Mas o rebelde estava irredutível, e palavras não mais o alcançavam. E Edward apenas devolveu um olhar de desprezo.
Um pequeno broto surgiu na palma da mão do homem, que estava coberto de uma aura negra. O que gera certa curiosidade nos demais.
Elisa se inclina para o amado, desesperada - Não faça isso! Você só tem mais três-
No entanto, a ação já havia se concretizado. Ao ser esmagado, o broto se expandiu numa nuvem de partículas brilhantes. E no meio delas, Edward desapareceu.
Ninguém ali teve escolha, a não ser observar o espaço vazio onde Edward estava. Orácio se apoiava em sua bengala, enquanto observava cinzas cairem em seus ombros.
- Quem faria uma coisa dessas? - O velho mexia sua cabeça negativamente.
- Estão queimando o arquivo. - Afirmou Elisa com altivez - Hermes era um patife. É possível que tenham descoberto algo sobre ele. Mas quem agiria dessa forma tão escandalosa? - A mulher levou o punho ao queixo- Alguém do vilarejo? Não. Ninguém que mora no familiarcado da madeira, jamais arriscaria a própria matéria prima.
Elisa levou os olhos para Dália. Sua feição mudou drasticamente, ao que chegou a pior das conclusões.
- As crianças! É uma armadilha!
- Perdão madame?- O senhor questionou preocupado.
- Eu preciso ir até lá agora mesmo!- A mulher assobia, chamando sua bela égua negra, que a alcançou de pronto- Escondam-se! Você fica no comando Orácio. - O velho assentiu, mesmo intrigado com a situação- Vamos Jornada! Rápido!
E a mulher partiu em disparada, enquanto deixava o acampamento para trás.
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As chamas tomavam grande parte do terreno dos Polatti. Labaredas esticavam-se aos céus, quase que tocando as estrelas. Animais da propriedade corriam em debandada, e o cheio forte de gasolina era trazido pelo vento.
Edward, que acabara de ter surgido ali, observou o ambiente caótico com cautela. O povo da madeira, que buscava meios de ajudar naquela situação, pararam tudo o que estavam fazendo para observar um homem de terno e gravata, entrando no meio daquela mansão em chamas.
Caminhando em meio ao fogo, Edward investigava o que ainda se podia identificar no ambiente. Não haviam gritos. Galões de combustível estavam espalhados por todo o andar. O estranho é que esses recipientes estavam escondidos por baixo de mesas, e atrás de cortinas. Uma tentativa um tanto ingênua de planejar um incêndio, algo que Elisa jamais faria. Além dos galões escondidos em lugares óbvios, havia uma lata de fósforos ao lado do que seria a origem do incêndio: um forno cheio de galões. Era óbvio que alguém que saiba o mínimo sobre fogo, jamais acenderia um explosivo estando numa casa cheia de gasolina. E seria mais do que provável o autor do crime estar por perto, e muito ferido.
Já que não havia ninguém no primeiro andar, foi observar o segundo, onde infelizmente Hermes e sua esposa já não estavam mais vivos.
- Uroboros, me ajude. - Ao ouvir o comando, dois tentáculos negros saíram de suas costas, se enrolando nos dois corpos.
Edward saiu pelos fundos, deixando o casal na grama. O homem sentiu certo alívio, até que gritos infantis o chamaram a atenção. Seus instintos ficaram a flor da pele. Havia uma porta no solo, um porão. E com a força de seus tentáculos, arrancou as portas, abrindo caminho. O rebelde se surpreendeu ao descobrir 29 criancinhas dentro daquele buraco. Felizmente, o forro reforçado- provavelmente para encobrir o cárcere- impediu que o fogo penetrasse. No entanto, o local estava cheio de fumaça e em alta temperatura. Algumas crianças estavam desmaiadas, outras em um estado grave de desidratação.
Ao deixá-las nas mãos dos civis, ainda tinha o dever de encontrar o autor do crime. E numa curta caminhada ao redor da propriedade, acabou o encontrando. Alguns metros após uma cadeira de rodas quebrada, havia uma menina ruiva, com queimaduras gravíssimas pelo corpo, encolhida na umidez da grama. Gravado em sua pequena camisola, estava o nome "Eva". Só por meio daquela cadeira de rodas, conseguiu alcançar a saída, ignorando a dor causticante das pernas. Ela literalmente atravessou as chamas com a maior velocidade que podia. Mas o porquê de alguém tão jovem fazer uma coisa daquelas, era o que martelava na mente de Edward.
Um sussuro ressoou nos ouvidos de Edward.
- Me mate.
-Hm? - O homem de terno resmungou. Jamais imaginaria que aquela criança estaria consciente com queimaduras expostas como aquela.
- Desapareça comigo. É o que eu peço.
Por um segundo, Edward se assombra com a polidez e maturidade da menina - Porque você fez isso? Arriscou a vida de muita gente...
- Eu não queria jogar mais... e a sombra me disse... - seguiu com algumas tosses- Que a acácia é grande e forte, mas que se eu a atacasse com fogo, eu e meus irmãos seriam libertos.
- A acácia quer dizer o Hermes?
- Sim.- Dizia com os cabelos espalhados na grama fresca- Queimei o homem que me criou, e agora acabei levando meus irmãos junto. Mereço ir com eles. Então me leve, senhora morte.
Edward nunca imaginou que na visão de uma criança se parecesse com a morte.
- Eu sou Edward. E seus irmãos estão bem. - respondeu franco.
Ao ouvir tais palavras, a garota deu um suspiro de alívio, que deu lugar a um sentimento intenso de tristeza. Seus olhos se direcionaram para o chão, já que era a única coisa que podia mover naquele momento.
-Sir Edward... eu vou pra cadeia, não vou...? - Disse, com o rosto colado no chão. Respirou bem fundo para não chorar, e continuou - Pode me levar para algum lugar que tenha água? Não quero que me vejam cheia de sangue, podem se assustar.
Era impressionante como aquela menina racionalizava tudo o que via. Mesmo perante tanto sofrimento, ainda pensava em como reagiria a tudo isso rapidamente. Com tão pouca idade, já conhecia e assumia as consequências de dois assassinatos.
Uma casa com um maníaco sequestrador de crianças. De alguma forma, sabia que depois daquilo, jamais entenderiam as razões puras daquela criança. Edward tocou nas feridas da menina, cauterizando-as com uroboros. Tomou-a nos braços e disse:
- Não, pequena. Vou te levar para casa.
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Caminhando em direção á floresta, Edward carregava aquela menina beirando os 12 anos, no colo. Ela descansava a mão no peito do rebelde. E era um tanto estranho, já que não havia batimento algum. Mesmo assim, aquela menina já havia conhecido inúmeros homens sem coração antes, então talvez não fosse tão incomum assim. E adormeceu em exaustão.
A noite era densa, e Edward sentia que sua missão estava cumprida. Mas a calmaria que Edward havia conquistado, acabava ali. Um grito familiar ecoou naqueles campos verdes. O rebelde se virou subitamente, apenas para encontrar um cavaleiro gigantesco, trajado de uma armadura cibernética. E de cabeça para baixo, desacordada, uma mulher estava sendo segurada pelo algoz, Elisa.
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