|A parte mais forte.|

Uma escuridão tenebrosa abraçava os confins do território madeireiro de Eurtan. Tudo o que existia por quilômetros eram as copas pontudas das coníferas envoltas em uma densa neblina cinzenta. Aquela região era inabitada. Nenhum dos operários da família da madeira ousava entrar naqueles domínios. Apesar de alguns bons hectares disponíveis para o corte, a região pantanosa tendia a afastar potenciais moradores. Muitos lenhadores diriam que a provável razão disso, seria a natural aversão dos magos reflorestadores de sujarem suas botas. Mas a realidade é que aquela área era conhecida por ser cheia de criaturas que assombram as matas eurtanas. Indo mais longe ainda, próximo aos perigosos desfiladeiros que levavam para Eimn, existia um local isolado; uma pequena clareira que revelava uma lagoa. Que mesmo iluminada, não refletia nem mesmo a luz da lua. 

Mergulhando em suas águas turvas e esverdeadas, engana-se quem pensa que o fundo se encontra próximo. Até mesmo os mais experientes pescadores não ameaçavam explorar suas profundezas. Bolhas densas se esforçavam para subir a superfície. Peixes não costumavam nadar naquelas águas. Mas mesmo assim, as bolhas continuavam subindo; uma a uma, estourando em vão. Porém, olhando com cautela, era possível ver que elas formavam uma trilha, até se perderem no breu abaixo. Algo estava deixando um rastro. Alguém.  Pulmões liberam seu último estoque de oxigênio. As últimas bolhas ascendem. 

Quem em sã consciência mergulharia ali e ficaria vivo em tal profundidade? 

Cabelos negros dançavam com o balanço das águas, enquanto afundavam lentamente com seu dono. De olhos bem abertos observava os últimos resquícios da superfície desaparecerem, e suas mãos serem movidas com as águas. Está frio. A pele começa a perder o tato aos poucos. O coração enfraquece. O homem cede aos encantos da morte sem nenhuma resistência, e deixa suas pálpebras pesarem. 

Algo escuro invade a lagoa. Mais escuro que a noite, mais denso que piche. Uroboros. Enrolando-o, puxando-o para cima. A luz vai voltando com velocidade. Os sons vão retornando, mesmo que debaixo d'agua.

"Edward... Edward..."

— Edward! 

 O peito dói, buscando ar. Ele tosse, continuamente a água que engoliu, enquanto retornava a consciência. Elisa, também dentro do lago, segura-o pelo rosto, em alarde. Por uma fração de segundo, viu-se vetores negros se escondendo-se nas costas de Edward. Ao tomar seu amado nos braços, arrasta o seu noivo para a beira do lago, com dificuldade.

 — Meu Deus do céu! Você está bem?!

Ele abre os olhos lentamente e com a consciência ainda mexida, e perguntou com a voz fraca:

— Matamos ele?

Elisa se vê cabisbaixa e derrotada—Eu sinto muito, mestre.  O ritual falhou. Não importando as circunstâncias, o uroboros de algum modo  ainda está tentando te possuir.

Edward, rarefeito e ensopado, tenta se apoiar em Elisa, ainda se recuperando do afogamento.

— Tentaremos de novo então.— Disse ele, apático.

—Mestre, não! Você quase morreu antes dele! Se não fosse pelo uroboros ter te puxado pra cima, eu não sei o que poderia—

— Essa coisa está do meu lado ou não? De acordo com os escritos era para termos entrado em simbiose, não é?— Ele faz uma breve pausa para buscar ar—Porque essa coisa ainda está tentando me consumir? Não era para eu ser o escolhido ou algo assim?

— Poupe fôlego, mestre! Você acabou de se afogar!

Edward segura a mão de Elisa, acalmando-a. — Eu estou bem. Por favor, responda....

Elisa dá um longo suspiro, e relata —  Sim, mestre. Sem dúvida alguma, você foi escolhido para ser o herdeiro de Astargan. Senão seria impossível o mestre ter sobrevivido a transformação na cerimônia.— Ela segura o rosto dele, fitando-o nos olhos. — Você tem a armadura. Isso é o que importa. Só precisamos descobrir porque você ainda é parte humano. Imagino que seja essa a razão da intriga entre uroboros, e você.

Edward tira o excesso de água do rosto, e chacoalha os cabelos, sentando na beira do lago. Elisa a acompanha.

— Quanto tempo eu tenho até essa coisa acabar comigo?

— Eu não vou permitir! — Diz Elisa em tom de urgência.—Você vai ser mais forte que ele. Vou garantir isso.

— Eu já sinto que estou morto, de alguma forma. Você disse que eu fui ferido mortalmente, não é? Eu não me lembro. —Edward olha para cima, melancólico. — Eu sinto ele dentro de mim. Se contorcendo, agonizando. É como se ele estivesse me rejeitando.

— Astargan caminha entre os vivos e os mortos... Mas não quer dizer que  seja imbatível. Senão, ele não teria parado naquele jarro. Eu vou descobrir o que está acontecendo.— Ela põe as mãos sobre as dele. — Eu jurei lealdade a você, mestre. Jamais vou decepcioná-lo.

Edward olha para o céu, perdendo-se na densa neblina — Você ainda acha que estou com você por mera conveniência, não é? 

Elisa não devolve resposta alguma.

— Eu já disse a você. Não me confunda com seu mestre Astargan.

A mulher demonstra aflição em seu olhar. — Isso não está certo... As profecias que lhe falei ...

— As profecias ditaram o ontem. Eu dito o agora. — Respondeu, ríspido.

Elisa coloca a testa no chão, se pondo sobre seus joelhos dobrados.

— Meu único propósito é obedecer você!

O homem, impenetrável, levanta Elisa que uma vez tão poderosa e genial, estava num estado deplorável.

— Então eu a ordeno que seja livre. Sua mente é muito bem capaz de pensar por si própria. E é por essa razão que me apaixonei por você, Elisa.

Os dois se olham, enquanto fios de vento tocavam seus corpos gélidos. Edward puxa uma mão de Elisa para o seu peito, onde os batimentos quase não existiam. Gotas frias caem sobre o rosto da mulher, que já estava perdendo suas estruturas. Ela se via presa ao charme, e imenso poder dele.

—Está na hora de irmos. Estão nos esperando. — Ele segura a mão da noiva, guiando-a.

No entanto, ao se tocarem, uma estranha energia preencheu os dois. Quando se deram conta,  estavam sendo cobertos por uroboros, que num instante, se transformaram em roupas novas e secas.

— Um terno, outra vez?—disse Edward, observando seu novo traje. — Parece que esse é o número único poder que eu domino no momento, isso, e os tentáculos de polvo.

—Está nas escrituras que a armadura de uroboros se adequa a cada dono — Elisa ri por um instante. — Certamente, meu antigo mestre não tinha um senso de moda tão apurado!

— Eu espero que eu aprenda rápido, ou senão terei que arremessar alta costura no conselho das doze.

Elisa só conseguiu gargalhar naquele momento.

…...

Silenciosos, seguiram uma trilha, na densa floresta eurtana. 

— Elisa...O que fez você mudar de aparência, afinal?

A mulher sorriu, delicadamente. — Meu posto como profetiza define quem eu sou.  Este corpo se reformula de acordo com as preferências de cada mestre. Como a união entre Uroboros e você ficou incompleta, acabei ficando com a aparência da última geração.—Elisa fica um pouco vermelha. — E bom, meu antigo amo gostava de "ostentar". 

 — Pelo que vejo, mulheres voluptuosas estavam na lista. Certo? 

 Edward ficou um tanto desconfortável, ao perceber o claro desapontamento de Elisa, ouvindo aquilo. Ao que parecia, Astargan era do tipo dominador. Certamente, o passado daquela hipnotizante mulher de cabelos negros, era um tremendo mistério.

Os dois avistam um ponto de luz alaranjada. Ao que se aproximam, veem a entrada do que parecia ser um pequeno acampamento.

Uma fogueira grande trepidava, iluminando todo o local , levando suas cinzas para cima. Ao redor do fogo, sentados e aquecidos por roupas de Uroboros, haviam cerca de trinta pessoas, conversando e descansando no aguardo de Edward.

Ao perceberem sua chegada, muitos batem palmas, sorriem e alguns até tentam ter uma palavra ou outra com ele, que gestualmente tenta acalmar os ânimos.

— Foi um longo banho noturno, hein? — Diz um senhor sentado por ali, quebrando a total solenidade do momento. Todos riem discretamente em burburinhos.

Edward se vê embaraçado. E vem com um ar descontraído, e inclinando-se para o idoso que ria.— Ora essa, Porta-voz!— Pôs as mãos na cintura—Onde estão seus modos palacianos? Eu não esperava isso do senhor.

O velho responde caçoando:

— Porta-voz... Um fardo que graças a você, nunca mais terei de carregar. Tudo graças a vossa benevolência.

Elisa se aproxima, e se agacha para ficar na mesma altura do idoso, sorrindo gentilmente. — E como vai a sua perna, senhor?

— A madame pode me chamar de Orácio. — Ele batia com a bengala em seu joelho. — Continua uma bela porcaria. Mas eu estou livre.

Elisa observa as roupas de gala usadas pelos refugiados, completamente esfarrapadas pelos eventos da cerimônia, e sussurra aos ouvidos de Edward. Após ponderar sobre o que ouviu, o rapaz concorda com um leve aceno de cabeça. E com o estalar de dedos ele cria roupas novas de uroboros para todos. Espantados, os homens, mulheres e crianças tateiam suas novas vestes, bonitas, novas—com cheiro peculiar— e com um broche em cada uma.

De repente, Edward sentiu algo agarrando -se em volta dele. Uma menininha de uns seis anos, com uma expressão furiosa.

—Eu não gostei desse vestido! — Ela puxa a calça de Edward— É muito feio!

Ele espera alguma dica vinda da noiva, mas sem resposta. Elisa só observa a situação; deleitada com o aparente desespero de Edward, imaginando o que faria a seguir.

— Olha... Eu não sou muito criativo. — Ele se agacha na altura da garotinha — Você teria algo em mente?

A menininha pondera um pouco e responde:

—Eu não gosto de saia... Sabe? Poderia ser um macacão vermelho, por favor?

Com o dedilhar de Edward, o vestido mudou de forma instantâneamente.

—Infelizmente, sobre a cor...

A garota mal ouve o rapaz e fica maravilhada com o resultado. Pensando no que acabara de ter visto, vai ao ouvido de Edward e sussurra. O homem sorri, e faz com seu uroboros um cavalinho de pelúcia, que vai surgindo nos braços da menina. Edward se deleita ao ver a alegria da menina ao ganhar o brinquedo, e sente seu coração frio, aquecer.

— Como é o seu nome, garotinha?

— Dália!— Responde prontamente com seu ursinho.

Com sua voz serena e gentil, Edward pergunta: —E onde está sua mãe?

— Ela ficou. — Falou meio cabisbaixa.— Eu insisti pra ela vir. Mas ela amava demais o papai.

— E você, não amava seu pai, Dália?

— Amava, eu acho. Mas ele me batia, e batia na mamãe também. — Ela começou a roer as unhas. — Quando o senhor falou lá na cerimônia, eu acreditei. Fazia sentido e eu acabei seguindo o pessoal que veio com você.

— Você foi muito corajosa. — Ele acaricia a cabeça da garota, compadecendo-se do sofrimento dela.

—E fez a escolha certa. — Interrompeu Elisa. — Você nunca mais vai sofrer conosco. Inclusive, iremos achar alguém para cuidar de você enquanto sua mãe não vier.— Ela toma a menina pela mão.

As duas se afastam de Edward. Dália olha para trás por um momento e diz:

— Traz a minha mãe logo, tá?

Após isso, Edward se afasta do grupo. Procura uma área mais privativa ali perto, e se recosta numa rocha. Quando percebe, vê que Elisa o seguiu.

— Esse acampamento não é um lugar digno dessas pessoas morarem, nem que seja por uma semana sequer. — Edward cerra o punho — Eles são pessoas boas, e estão contando comigo! E nem sei se vou conseguir trazer a mãe daquela menina....

— Eu entendo que esteja ansioso. Mas lembre que cada uma dessas pessoas juraram lealdade ao selo de Astargan. Elas irão te seguir para onde quer que vá.

— Eu não quero que sofram. Eu mesmo prometi livrá-las da dor! Não sou nada como Astargan...

— Exato. Você é o mestre mais gentil que já vi em milênios! Só estamos num processo transitivo no momento.

— Estamos numa vala escura, Elisa. Humilhados. Queria sair triunfante daquela cerimônia estúpida. — Resmunga— E essa gente precisa de o mínimo de conforto. Que líder deixa seu povo dormindo ao relento?

—Quanto a isso, já bolei uma estratégia. Mas eu peço que por enquanto foque em melhorar e completar sua simbiose.

— Há muitos objetivos a serem concluídos ainda. Não posso perder tempo. Precisamos de um quartel, de acesso a rede e não esqueça, encontrar genebra o mais rápido o possível.

— Paciência, querido. Um passo de cada vez. Precisamos de informações, e sei bem onde conseguí-las. Mas é cedo demais para fazermos qualquer investida arriscada.

— Elisa, é o meu irmão! Como você espera que eu fique aqui parado enquanto ele está lá, sofrendo?

— Não podemos sair perambulando por aí, sem destino! Eles são nosso povo agora!— Ela toca o rosto de Edward— Nós vamos conseguir. Só preciso de um pouco de tempo!

Elisa vê com agonia o ar de tristeza que Edward trazia na face. Uma melancolia que parecia a afetar dez vezes mais. Elisa queria e devia, servir ao seu rei. Ou talvez, só desejava estar fazendo o seu futuro marido feliz. Pensava que havia noivado com Edward por obrigação. Mas talvez não fosse assim no final das contas, havia se apaixonado por ele durante os planos. Ela havia nascido para despertar o escolhido e servir ao seu propósito. Mas agora, quem era ela afinal? Serva, ou amante? Cada beijo que eles haviam dado, parecia uma heresia às escrituras. Mas Edward já estava planejando burlar as profecias desde o começo. Obedecer o mestre? Obedecer ao futuro? Obedecer ao marido?

Ser livre?

— Me faça um cavalo. — Diz Elisa.

Edward fica surpreso com o pedido.
— Um animal... Vivo?

— Ele era capaz. — Elisa lança um olhar desafiador. — Não deve ser difícil para você.

Edward, vendo a determinação nos olhos da amada, consente. Ele não precisava se preocupar. Ele não precisava saber para aonde ia, ou o que ia fazer . O rebelde fecha os olhos por um instante, e começa a imaginar os tecidos que antes surgiam em sua mente, e passou a pensar em células.
Sentiu borbulhando em seu íntimo, o trotar, a palpitação e respiração do animal, quase como estivesse cavalgando, em espírito, dentro de um mar de uroboros. Com as mãos, molda um belo corcel negro, feito de matéria escura; e a ajuda subir nele. Era incrível o que certos estímulos  faziam com seus poderes. Pela primeira vez, havia criado algo vivo.

— É lindo. — Ela acaricia a crina do animal. — Obrigada.

Edward manipula mais uma vez o uroboros e produz um belo casaco de pêlos, para Elisa, combinando perfeitamente com o seu vestido. A mulher tateia com cuidado o adereço que a aquecia, olhando para seu noivo com carinho.

—Mais alguma coisa que eu possa fazer por você? — Ele segura na mão de Elisa, olhando para cima.

— Descanse. E faça o possível para dominar o Uroboros. Voltarei ao amanhecer. — E parte para a escuridão da floresta.

Edward sozinho, olha para amada se distanciando até sumir no breu da mata. Ele se sente melancólico. Ali mesmo no chão frio e úmido, deita olhando para as folhas acima, iluminadas pela lua. Não importava mais onde ele deitasse, já não sentia praticamente a temperatura. Colocou as mãos no estômago, também não sentia fome. Não havia motivos para usar um pijama, então decidiu ficar ali deitado, com aquele mesmo terno.

Fechou os olhos. O sono não vinha. Só uma sensação estranha de inconsciência vinha o tomando. O que ele estava fazendo ali, afinal? No que ele estava se transformando? Astargan? Edward? Ou algo no meio dos dois? Se sentia um zumbi, uma coisa. Mas sentia seus arrependimentos cravarem as unhas em sua carne. Por quê?  Seria o medo de olhar para trás?

Ele acaba se perdendo nos cantos escuros de sua mente, seu inconsciente, um labirinto. Caminha, pacientemente de um lado pro outro, sem haver uma saída. Apenas o vácuo existia. Conseguia ouvir vozes, gritos, ruídos de eras passadas. Épocas em que Astargan, reinava.

Seu terno foi ganhando peso e força, se tornando uma pesada e gloriosa armadura de uroboros. Usando-a, sentiu tamanho poder, e em seu âmago, implacáveis aspirações. Sidéria estava em suas mãos. A coroa, em sua cabeça. Detinha o desejo de desafiar até mesmo o criador.

Continuou caminhando. Ouvia clamores de glória. Uma nova era surgia. Onde o herdeiro da essência de Astargan subiria ao trono, e conquistaria a colônia de Sidéria. E sob seu comando, através da força, adquiriria o direito de retornar ao planeta natal e recuperar a magia que nele um dia existiu.

Mas algo interrompe seus delírios.

Um raio delicado de luz corta o espaço sombrio, e faz com que Edward olhe para trás. Uma porta?

Uma pequena e simples porta de madeira, se mantém sozinha no meio da escuridão. E dela, vazam os raios de luz, que chamaram a atenção de Edward primariamente. Luz. Ainda existia algum resquício de luz dentro dele?

Ele vai em direção a porta, intrigado. Não era para existir mais nada ali. E aquilo de alguma forma, estava resistindo firmemente as trevas, que existiam naquela dimensão. Após dar uma espiada pelas frestas do portal, encontra coragem para entrar, e empurra a porta.

Uma luz cálida invade o local. De repente Edward começa a sentir. O calor do sol, o frescor do vento , o cheiro do café, saudade. Estava em seu antigo quarto, de quando ainda tinha poucos anos de exército. Estava tudo lá. Sua escrivaninha, a beliche meio velha, o minúsculo banheiro dentro do guarda-roupa. Até suas duas espadas estavam colocadas na parede, como sempre deixava. De frente para ele, a janela, aquela que lhe acordava todos os dias com seu brilho. Por ela, não se podia enxergar muito mais do que o pavilhão de treinamento, mas era bonito. Haviam algumas árvores e por sorte, uma que acompanhava o beiral da janela, e nesses galhos, geralmente os passarinhos faziam seus ninhos. Sentada numa cadeira, de costas para ele, olhando pela pequena janela, estava alguém familiar. Seus cabelos acobreados, que dançavam com o vento, presos na ponta com uma fita de cetim, junto com o delicado vestido branco de seda que usava, apropriado para o verão.

— Ellie? — perguntou Edward, quase não acreditando no que via.

O que parecia uma lembrança, uma gravação, se move.

— Bom dia! — Ela vira seu rosto levemente para trás, sorrindo. — Eu imaginei que você estava vindo, então fiz café. Você quer um pouco?

Ele se senta na cadeira da escrivaninha, e com cuidado pega a caneca que a garota lhe preparou. Estava quente. Aquela caneca que era sua preferida, e a usava todos os dias. Levou o café aos lábios, bebeu...Tinha gosto, era maravilhoso. Edward se deleitou tanto com aquele café, que chegou a fechar os olhos. O vapor batendo no seu rosto, que coisa boa.

— Está gostoso? — Elaine lhe perguntou com interesse.

Ele olhou para o fundo da caneca vazia e respondeu — Olha. Esse foi o melhor café que já tomei na vida. — E riu.

— Eu gostava de ver. Você tomando café.— Ela se vira para ele. — Já percebeu que eu nunca tomei café?

Edward se dá conta disso e fica intrigado.

Elaine recolhe a caneca e a põe em cima da mesa. — É porque eu odeio café. É muito amargo e me deixa muito elétrica.

— Mas você fazia todo dia. — Questionou ele.

—É. — Ela dá um sorriso discreto.— Eu fazia. — E olhou diretamente para ele com carinho.

Em sete anos de treinamento com Elaine, nunca havia percebido que ela acordava mais cedo, só para fazer café para ele. Sentiu seu estômago embrulhar, as palavras não saiam da boca.

—Eu só queria que você soubesse disso, antes de... Você sabe. — Ela dá um sorriso melancólico, enquanto se levanta da cadeira, e fica bem de frente para ele.

O vento balança o vestido, ao bater nas costas de Elaine. Edward arregala os olhos. Sua frio. Se dá conta de que está com uma de suas espadas na mão, apontada para Elaine. A garota abre os braços, conivente com a situação, e sorri olhando para ele. Os dois ficam parados daquele jeito por um tempo.

— Vai Eddy. Você sabe que não sou ela de verdade. É só dar o golpe.— Ela segura nas mãos de Edward, e puxa a espada para mais perto ainda de seu estômago. — Você já derrubou gente muito maior que eu!

Edward treme. Tem muita vontade de chorar. Ele havia entendido. Do porquê aquilo tudo estar acontecendo. Sua face muda para uma expressão de tristeza profunda, ao mirar nos olhos serenos de Elaine.

— Eddy...Se você não fizer isso, nunca vai ter o poder total de Astargan. — Ela puxa a espada para mais perto ainda. — Você precisa ter coragem!

— Você é a última parte de mim que sobrou, não é? — Diz Edward com convicção.

A garota, com um olhar triste, faz um gesto de sim com a cabeça.

— Você é minha memória mais querida, e destruindo você...— Elaine mais uma vez concorda.

Isso é o que significava  em ter os poderes totais de Astargan. Para entrar em completa harmonia com o Uroboros, e acessar a armadura sagrada, precisava abrir mão de sua humanidade. Era o que Elaine significava naquele momento: aquilo que o tornava humano.

O som de ferro ressoa. A espada jazia no chão. Edward apenas disse:

— Não.

Elaine, confusa, reage.

— Mas você não quer ter os poderes totais de Astargan?

— Não se para isso, eu deixar de ser eu mesmo. — Ele abraça a garota. — Eu quero ter certeza que o meu mundo estará seguro. E só vou ter essa certeza, se eu mesmo fizer isso.

Elaine se entrega ao rapaz, e começa a chorar nos braços de Edward.

— Não se preocupe. Mesmo que eu seja mais fraco do que Astargan, e que eu use a armadura incompleta, tenho uma coisa que ele jamais irá ter. — Ele olha nos olhos da garota. — Você. E eu jamais abrirei mão disso.

Ele acaricia os cabelos da garota, e a deixa ir . Ela senta da mesma forma que no início, olhando para a janela. Mas não demorou muito para que ela conferisse o que estava atrás. Edward estava indo embora. Ela faz uma expressão um pouco triste.

— Não se preocupe. — Diz Edward se dirigindo a porta. — Eu vou voltar.

E dando um sorriso tímido, responde — E eu vou estar esperando aqui. Sempre.

Edward, com as mãos trêmulas, segura a maçaneta da porta. Haviam motivos demais para que ele simplesmente ficasse ali mesmo, mas haviam mais motivos ainda, para partir.

— Eddy!— Edward para por um momento.— Você vai contar a ela?

O rapaz respira fundo, colocando a cabeça contra a porta. 

— Não.

E ele deixa o pequeno quarto, como se fosse apenas fragmento de memória.

Quando atravessou totalmente a porta, percebe que está acordado. Ao seu lado, Dália, ajoelhada, chacolhando-o.

— Senhor! Senhor!

Edward se vê deitado, da maneira que estava, porém quase coberto por um casulo de Uroboros. Com a força que tinha, sai da prisão que o sufocava, quebrando camadas e camadas da matéria escura, um pouco mais grossas que cascas de ovos. 

Dália o abraçou, e aliviada, disse:

— Que susto! Essa coisa por pouco não te come vivo!

Ele se levanta lentamente, tirando os pedaços do casulo do terno. Toma a menininha pela mão rumo ao acampamento, e diz:

— Não se preocupe, Dália. De agora em diante... O uroboros é que vai ter que sobreviver a mim.

Pessoal, informo a vocês que o capítulo "Eu, você, nós" foi aglutinado ao capítulo "A parte mais forte". Muita coisa mudou, e espero que vocês apreciem as mudanças.

Sempre melhorando, e rumando a um futuro mais brilhante!

Sidéria, avante!

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