|A história sobre ela|



Dia quinto do primeiro outono de 299

4 anos antes do Dia do Legado.

O barulho das botas lamacentas grudando na relva fresca revelava uma expedição que podia ter durado dias. Homens fardados se espalhavam nas profundezas da mata noturna. Eles estavam encharcados, cobertos de lama e musgo. O clima úmido e abafado sufocava os soldados que exibiam o brasão de Sidéria em suas capas.

— Capitão. Estamos nos aproximando do local!

— Certo, informe o resto do esquadrão para se prepararem.

Edward sentia o peso do broche dourado em seu peito, artefato que exibia os dizeres "voz ao capitão". Ele carregava sua icônica dupla de espadas, que de acordo com os boatos podiam cortar até o vento. Faziam alguns dias desde que havia deixado Elaine no porto de Callai, em Eurtan, e pela primeira vez em anos, teve que se separar de sua fiel escudeira, já que Elaine teve que ficar como guarda-costas da embaixada de Zênite. A missão de Edward era simples: investigar uma tribo. Eimn era conhecida por ser a principal fonte do mineral mágico mais poderoso da colônia: o garel. Foi decidido no primeiro século que as minas desse cristal ficariam sob cuidados da tribo sehali, numa comunidade subterrânea. Mais nenhuma comunidade detém o direito de possuir garel em sua forma bruta, e haviam tribos que o roubavam para si. A exposição ao mineral, juntamente com o consumo de chás e sementes pode gerar alucinações, afetando os cinco sentidos. Muitas tribos acreditam que esses cristais revelam o passado e o futuro, cultuando o elemento como uma entidade. Claro que para Edward, isso não passava de besteira, e tudo o que importava naquele momento era cumprir a missão que as doze haviam lhe designado. Ninguém em todo exército havia se destacado como Edward, o gênio da espada. Muitos soldados sentiam-se até injustiçados: ele era impecável, sempre pontual, eficiente e preciso... quase como se tivesse sido feito em laboratório. Não era de se surpreender que havia sido escolhido para liderar uma operação tão importante.

Ao caminhar alguns metros, revelou-se uma comunidade tribal. Uma que não estava em nenhuma das 172 tribos listadas no tomo antropológico da colônia.

—Será uma seita? — Disse o soldado próximo a Edward.

— Melhor não cairmos em estereótipos. — Colocou a mão sobre a bainha— Já mandei uma tropa de reconhecimento, e todos os envolvidos parecem estar devidamente contidos. Mas é bom não baixar a guarda.

Um enorme grupo de pessoas estava ali, dentre eles soldados e membros da comunidade. Os locais usavam túnicas multicoloridas e belas pinturas pelo corpo. Não havia dúvida de que se tratava de tribais. No entanto, mesmo estando subjugados pelo esquadrão, pareciam calmos, respondendo todas as perguntas enquanto colaboravam da forma que podiam.

— Chefe, tem certeza que o lugar é aqui? Não encontramos nada...

—Isso é muito estranho— Ponderou enquanto olhava os arredores. — Aquele ancião é o sacerdote da tribo?

— Sim, mas...

— Certo. Vou investigar, continuem procurando.

Edward não pode deixar de ouvir os burburinhos quando deu as costas: "É verdade que ele não tem sentimentos?!" cochichavam os soldados. No início, esse tipo de comentário não fazia sentido algum, então pouco lhe importava. Mas por algum motivo, agora sentia-se estranhamente ofendido toda vez que esse tipo de coisa acontecia. Lembrou-se do brilho nos olhos de Elaine quando o viu rindo pela primeira vez. O curioso é que na verdade, aquela tinha sido a primeira vez que havia sorrido na vida. Nunca teve motivos para sorrir antes, mas naquele dia em específico, alguma coisa dentro dele mudou. Talvez fosse por causa do jeito desengonçado de amarrar as botas, seus dedos cheios de curativos, ou até seu olhar de constante contemplação... Mas algo em Elaine lhe trazia conforto. Ela era como uma folha carregada pelo rio, delicada e serena. Era um alívio o fato de que Elaine estivesse lidando com burocracia no porto de Callai ao invés de estar naquele lugar remoto com Edward. Os escudeiros têm a missão de proteger os espadachins desde o início da colônia. Sabia que Elaine era a parceira ideal, mas com o tempo descobriu que detestava vê-la se machucar. Desde então sempre deu o seu melhor para ser o mais eficiente o possível, para que não precisasse de proteção. Notou que estava perdido em pensamentos. Nunca imaginou que um dia refletiria sobre as coisas mais do que o necessário. Ao se aproximar do senhor trajado de penas, viu um jovem diplomata do governo e mais alguns guardas.

— Este é o ancião responsável pela vila, certo? — afirmou Edward, que logo dirigiu o olhar para o rapaz de cabelos castanhos ao seu lado. —Você é linguista, não é? Pode traduzir, hã...

— Ícaro! Recém formado na academia de...

— Basta dessa lenga lenga... eu falo a língua de vocês — apalpou a longa e grisalha barba— E posso lhe assegurar que não há nada aqui para o seu exército. Seus lacaios não encontraram nada que fosse ilegal.

— Acalme-se senhor. Só estamos fazendo o nosso trabalho — voltou a atenção para os guardas — Já olharam o santuário?

— Se me permite— Ícaro começou a folhear seus livros— Eu estava lendo sobre isso agora mesmo. No artigo 234 do estatuto de Eimn diz que civil algum pode adentrar nos locais de adoração sem a permissão dos líderes da tribo, a não ser figuras de autoridade, como você.

Edward bufou por um instante.

— Ancião, peço que reconsidere. Não haverá testemunhas o suficiente se só um de nós entrar.

O senhor retrucou — Mas você é o líder deles, não é? Não basta a boa fé que eles têm sobre você?

Apesar de recuar um pouco, Edward continua:

— Eu prefiro pensar que sou apenas mais um soldado. Nomenclaturas só geram rivalidades que não existem.

— Mas seus homens continuam lhe chamando de capitão. — disse o velho, ríspido— Ou você entra, ou mais ninguém. Não confiarei a entrada a nenhum desses homens. Se algo for danificado lá dentro, prefiro não terceirizar a culpa.

— Certo. — Respondeu o espadachim — Mas peço que um de meus homens vá comigo, como precaução.

— Você não faz as regras aqui... — retrucou o ancião.

O jovem embaixador enxerga a possível contenda e intervém, mesmo que timidamente.

—Com licença... Eu me ofereço para ir com ele! Veja, não sou um soldado— Gaguejou — Conheço seus costumes e posso me certificar de que o capitão não quebre nenhum código cultural, ou profane o santuário.

O ancião coça a sua barba, encarando a face inquieta do rapaz, murmura um pouco e após longos segundos, diz: — Não quebrem nada.

Edward alerta:—Atenção guardas, se eu não voltar em quinze minutos, podem invadir. Mantenham todos sob vigilância.—e então, juntamente com o diplomata, seguem caminho.

Os dois retornaram à mata densa, mais ao sul. Seguiram uma trilha de vagalumes até alcançarem uma pequena escadaria que levava a uma enorme estrutura de pedra. Edward sabia que aquele ambiente era sagrado para aquela tribo, então teve o cuidado de retirar seus sapatos antes de invadir aquele espaço. Sentiu a umidade da grama, a aspereza das vinhas, até mesmo o calor do solo. O linguista, logo atrás, fez o mesmo e até se impressionou com a sensibilidade de alguém que era conhecido por ser implacável e agressivo. Edward certamente era diferente de tudo que conhecia sobre os arrogantes espadachins: era silencioso, disciplinado e atento. Ícaro lembrou dos nomuri, nobres guerreiros do mundo antigo. Lobos solitários que viviam pela honra, usavam espadas alongadas de apenas um gume, muito semelhantes às lâminas que Edward usava. No entanto, algo estranho lhe tirou de seus pensamentos: logo no topo do templo, enxergou algo luminoso, parecido com uma urna.

— Senhor, estou vendo algo, logo ali! Será o garel?

"Eles não deixariam seu tesouro à mostra", ponderou Edward. Mas quando se deu conta, Ícaro já tinha se aproximado demais. Não restou alternativa a não ser segui-lo. Havia se esquecido de como os acadêmicos eram curiosos. Certamente, a falta de vivência faz com que tudo pareça uma aventura. Ao andarem alguns metros, deram de encontro a uma caixa enorme coberta por um véu. Ela irradiava energia azul e violeta, enquanto vaga-lumes dançavam ao redor do artefato, em sintonia. O linguista estendeu a mão para tocá-lo, mas Edward o detém, segurando seu pulso:

— Pare, você vai se machucar. Garel puro é perigoso. Deixe que eu faça isso, é seguro para mim.

Ícaro entendeu no mesmo momento que "seguro para mim" significava que a monção de Edward o protegia dos efeitos do garel. Se sentiu envergonhado pela sua falta de cuidado, principalmente em sua primeira missão de campo. Ao que parecia, apesar do vasto conhecimento, carecia de experiência.

Edward observou o objeto com cuidado, pôs os dedos sobre o tecido macio, estampado de runas e glifos antigos.

Ícaro se surpreende — Eu nunca vi algo assim na academia. Será um idioma morto?

Um leve suspiro vindo de debaixo do véu deixou os dois em alerta.

Edward puxou o pano rapidamente, revelando um brilho ainda mais forte, cegando os dois por um momento. Quando acostumaram a vista, perceberam que aquilo que estava ali não era nada do que haviam imaginado.

Os dois ficaram estáticos. Certamente, apesar dos traços femininos, não parecia nada com um ser humano. Apesar de antropomórfica, tinha pele lustrosa e olhos fluorescentes. Ela estava numa espécie de viveiro, e ao ver os dois apresentou uma expressão indecifrável. Não era possível saber se estava assustada, curiosa ou até mesmo brava. Nunca haviam visto tal criatura na vastidão das seis camadas. Em meio ao silêncio apreensivo, a garota abriu levemente os lábios deixando escapar outro sussurro. Ícaro arregala os olhos, ao que interpretou parcialmente o que foi dito. Kira. Edward troca olhares com ela, e como se o tempo parasse, estende a mão vagarosamente em direção a metamorfa. Entretanto, ao que seus dedos se tocaram, a criatura solta um grito.

Edward reage, mas não rápido o suficiente. Abruptamente, um feixe fulminante atravessou os dois, que foram arremessados para longe. Das sombras, apareceu um outro ancião, usando um cajado com uma enorme rocha azul encrustada nele. Sua pele era parcialmente alvejada, cabelos quase transparentes, provavelmente devido à exposição prolongada ao garel. O mesmo acontecia com Ícaro, já que seus cabelos e pele começaram a se desbotar logo que foi atingido pelos poderes do cajado. O diplomata estava debruçado sobre o chão, sem consciência, já Edward se mantinha acordado, mas sem qualquer reação ao elemento mágico. Outros três tribais amarraram a dupla, que estava enfraquecida pelo baque.

É surpreendente você ainda estar acordado— Não acharam que daríamos nosso precioso garel a vocês, não é?

— Tem gente esperando por mim lá fora. Você não é estúpido o suficiente para enfrentar um esquadrão inteiro.

— Certamente. —deu uma curta risada— E é por isso que você mesmo irá confirmar que não há nada aqui.

— O que te faz pensar que eu faria isso? Matar meu parceiro não é a melhor forma de me fazer obedecer.

— Isso é porque não é você que vai até lá— diz o ancião, deixando Edward intrigado. O velho apontou seu cajado para a jaula e grita:

— Apresento-lhe a soberania de nossa tribo! Sakná , a raça do caos!

Com o poder da jóia, o ancião dispara uma onda mágica na criatura enjaulada, que sente imensa agonia ao ser atingida. Seus olhos e antenas compridas começaram a irradiar luz fluorescente, ao que o vilão lhe cobria de poder garélico.

— Pare! Você está a machucando!— Grita Edward, alarmado.

O velho continua:

— Não, não! Você não viu a melhor parte!— E riu.

A criatura — sakná — começa a mudar de forma, como uma lagarta em seu casulo. E de forma misteriosa, num florescer de cores intensas, ela se transforma numa cópia exata de Edward. Seu cabelo, olhos, cicatrizes e até mesmo as roupas foram replicadas.

Metamorfos eram raros na colônia. Pessoas que podiam mudar de uma forma para outra num piscar de olhos. Alguns viravam tigres, outros incorporavam metais, mas os que se transformavam em outras pessoas eram aqueles que sofriam desde o nascimento. Na colônia, o poder de se tornar outra pessoa se fazia muito mais útil em meios ilegais, como roubo, perjura e até sequestro. Ter um metamorfo por perto significava estar em constante dúvida, mas Edward nunca imaginou ver um ao vivo. Havia conhecido híbridos antes, mas nada com tal aparência. Ela era a única? Não era possível saber. Eles poderiam estar escondidos, misturados com a população sideriana desde o início da colônia... A real questão era : havia uma raça completamente nova diante de seus olhos, e ela estava enjaulada.

— Vamos querida. Obedeça seu mestre e cumpra seu propósito!— brada o ancião, que toma uma chave nas mãos.— Sim, sakná! Fui eu que a despertou de seu sono de outra era! De acordo com o tomo sagrado de Eimn e as oito runas, você está presa a mim pelo sangue e carne, por toda a eternidade!— E disparou mais uma vez contra ela.

Edward ficou horrorizado pela maldição que o velho havia conjurado. Precisava pensar, e rápido. Todos ali dependiam dele, e como capitão, não podia deixar que aquele mineral ficasse em mãos erradas. Assim que desviassem a atenção dele, usaria sua adaga de emergência que ficava num bolso escondido da farda, e se libertaria. Teria que enfrentar três homens rápido o suficiente para que a sakná não chegasse na tribo primeiro, e nem havia pensado o que faria com o velho. Talvez se usasse algum dos tribais como refém... mas até as tribos mais remotas sabiam, e muito bem, que Edward e nem ninguém da parte urbana da colônia tinham o direito de matar, o que significava ir para a cadeia se o fizessem. Com o pensamento acelerado, Edward pensava em mil formas de sair com Ícaro dali. Observou calado o ancião destrancar a pesada jaula. A metamorfa saiu silenciosa e cabisbaixa, enquanto usava as feições do próprio Edward.

— Sim, minha querida. — o velho afagava os cabelos da sakná, com um sorriso vil estampado no rosto— Ouça o meu comando: vá até o acampamento e diga a eles que está tudo bem. O embaixador ficou estudando nossos "costumes" e que logo virá. Você sabe a língua deles, assim como de todas as pessoas que você toca. Não vai ser difícil para você.

— Sim mestre— Respondeu a metamorfa com a voz idêntica a Edward.

— Boa menina. Agora vá.

O ancião se virou para o espadachim, triunfante:

— Conseguiu entender? Os palacianos nunca terão o meu—

Um estalo perturbador ecoa, ao que o pescoço do ancião se torce completamente, caindo ao chão logo em seguida. A sakná estava logo atrás do velho. Edward demora um tempo para se situar, mas a verdade, era que a metamorfa havia matado o ancião num piscar de olhos. Foi um tanto perturbador para Edward ver a si mesmo matando alguém, e ao que parecia, os tribais acharam tão assustador quanto. Os três homens se apavoraram com a criatura parada diante de seu mestre morto, e então fugiram mata adentro.

Edward ficou olhando aquela cena por um tempo, até que sakná, retornando a sua forma original, se aproximou dele. O próprio espadachim temeu por sua vida, ao que os olhos fluorescentes da mulher, fixaram-se aos seus. De cócoras, a metamorfa tocou o rosto do rapaz, e disse apenas uma palavra:

Astargan.

Ícaro saiu ileso da contenda, mas pela exposição intensa ao garel, acabou perdendo total pigmentação dos pêlos do corpo, assim como da pele, e foi claro ao dizer que iria continuar nas relações públicas, mas bem longe de eimn.

Foi descoberto que o mineral no cajado era apenas uma fração do que estava sendo escondido na tribo sehali: um pedaço de um geodo inteiro. Pela análise dos laboratórios de Tegloncy, a rocha era oca, e tinha um formato peculiar dentro dela, a silhueta de uma pessoa. Cercada por alta exposição de garel, a sakná estava em estado de dormência por décadas ou até séculos dentro daquele mineral. Cientistas cogitaram até a possibilidade daquilo pertencer ao mundo antigo, no planeta de Sidéria.

— Eddy, no quê está pensando?

Os pensamentos de Edward retornaram ao presente, quando uma suave voz penetrou seus ouvidos.

— Ah, Ellie. O quê você disse mesmo?

— Não era nada, mas... você tá meio aéreo desde a missão em Eimn.

— Achava que a cabeça oca era você. —brincou Edward, enquanto afagava os cabelos de Elaine. A garota ri em resposta.

Era péssimo ter que mentir para Elaine... Mas a existência da sakná era algo confidencial. Era pela segurança de todos que a presença de um ser que replicava a aparência fosse escondida, ainda mais alguém que foi exposto ao garel por tanto tempo. A última coisa que queria é que Elaine ficasse doente, e tinha certeza que sua fiel escudeira detestaria ficar loira sem mais nem menos.

O espadachim caminhava tranquilamente pelos corredores repletos de pessoas com trajes bioquímicos levando amostras pra lá e pra cá. Era bom que não precisasse usar aquelas roupas pesadas, já estava cansado o suficiente àquela altura.

— Me chamaram?

—Sim, é um prazer, sou Joana, doutora chefe dessa pesquisa.— Ela suspira— Pedimos desculpas por chamar um oficial no seu período de folga, mas a cobaia se recusa a falar e —

Um grito ecoa pelo corredor, enquanto uma cientista praticamente caía para fora de um dos quartos. Edward entrou nele assim que ajudou a pobre mulher a se levantar. Já tinha uma ideia do que se tratava, mas ainda tomou um susto ao ver a sakná com a aparência da pesquisadora que acabara de sair. Ela estava na cama, presa por cabos e medidores por toda a parte, como um rato de laboratório. Edward respirou fundo, já que sua folga havia acabado antes mesmo de começar. Certamente ser capitão é para poucos.

— Oi... — disse o espadachim, sem ter muito o que dizer. Suas habilidades de socialização certamente estavam enferrujadas.

A metamorfa sorriu numa expressão pacífica.

— Olá, Edward de Dustrain. Meu nome é Kira.

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