capítulo 02 | feridas que vão além da pele
TW: morte
San achou que passaria o dia inteiro se remoendo pela luta que perdeu e o que isso poderia significar para sua bolsa. A insegurança se instalava sempre que ele pensava em como a derrota poderia manchar todo o esforço que ele investiu por anos, e a sensação de fracasso já começava a pesar sobre seus ombros, mas o som estridente do despertador impediu que ele tivesse tempo de pensar em qualquer coisa além de sair de casa o quanto antes para pelo menos tentar chegar na aula com menos atraso.
Sem tempo nem para comer, ele certamente não teve chance de ler as mensagens de seus amigos preocupados que se acumulavam no celular. E com razão, se seus hábitos nada saudáveis de comer e dormir apenas quando seu cronograma apertado permitia eram algum indicativo. Não seria um problema, se ele não fosse um universitário que fazia estágio e ainda precisava treinar para manter a bolsa que passou toda a adolescência se esforçando para conseguir.
O celular em sua mão continuava a vibrar, provavelmente com mensagens de Wooyoung ou Mingi perguntando se ele comeu ou Yeosang conferindo como ele estava depois da derrota espetacular do dia anterior. Ele era grato por ter pessoas que se importavam com ele, porém não conseguia deixar de lado os pensamentos de culpa ao colocar ainda mais preocupação nos ombros de seus amigos que já tinham os próprios problemas para cuidar.
San não queria falar sobre nenhuma das duas coisas — seja seus hábitos alimentares nada saudáveis ou seu ego ferido pela luta perdida — e seu tempo estava particularmente apertado naquela manhã, então deixar todos sem resposta foi uma decisão fácil diante do atraso iminente para sua aula enquanto ele corria até o campus que, graças a todas as divindades, era próximo o suficiente de seu prédio para ele não precisar pegar ônibus.
O campus de medicina não era longe de sua moradia estudantil, mas a pressa tinha tendência a adicionar quilômetros inexistentes no trajeto de uma pessoa atrasada e ele podia jurar que para cada metro que ele avançava os próximos se multiplicavam por dois enquanto ele respirava com dificuldade no máximo de sua capacidade pulmonar, os prédios e outros alunos também atrasados eram as únicas testemunhas de sua pressa desesperada.
Ele queria dizer que sua chegada no auditório passou despercebida, mas ele tropeçou na porta entreaberta antes de entrar e claro que isso atraiu atenção. E claro que ele entrou como se nada tivesse acontecido enquanto alguns de seus colegas o olhavam de soslaio.
San estava ofegante quando se sentou, tentando recuperar o fôlego enquanto pegava o material de dentro da bolsa só para lembrar que tinha deixado o caderno em seu armário no hospital no dia anterior enquanto estudava na sala de descanso.
Foi necessário um esforço enorme da parte dele para não bater a cabeça na mesa e fingir de morto até que as coisas realmente dessem certo. No fundo, ele se perguntava por quanto tempo conseguiria continuar daquela forma, mantendo tudo com o mínimo de controle. O medo de falhar parecia sempre estar à espreita, mas agora, além do medo, era o cansaço que ameaçava tomar conta.
San se perguntou como Wooyoung lidaria com tudo aquilo — provavelmente com uma piada despreocupada e um sorriso travesso. Às vezes, ele invejava a leveza dos amigos, a capacidade de transformar tudo em algo menos sério, enquanto ele carregava o peso do mundo nos ombros.
Sem o caderno e já sem forças para reagir, ele deixou o corpo relaxar na cadeira, as vozes dos colegas ao redor começarem a soar como um zumbido distante. Ele passou as mãos pelo rosto, sentindo o peso de mais um dia que ainda estava longe de terminar. E, pela primeira vez em muito tempo, desejou poder largar tudo e simplesmente dormir.
☆彡
San estava atrasado mais uma vez quando deixou o campus para trás, o som abafado do trânsito preenchendo o silêncio de sua caminhada apressada.
Ele já estava tão acostumado com isso que mal o incomodava, porém naquele dia alguma coisa dentro dele urgia para que ele chegasse o quanto antes. Talvez tivesse algo a ver com a mensagem de Moonbyul em seu celular? Talvez, mas ele tentou não pensar no que sua supervisora queria enquanto ainda tinha a chance de se jogar na frente do carro mais próximo.
A entrada do hospital estava movimentada como sempre e ele se inseriu entre as pessoas para chegar à recepção. Notou uma ambulância parada na entrada para pacientes, e a quantidade de enfermeiros e internos ao lado do Doutor Jaejoong indicava que era um caso complexo, para dizer o mínimo.
Enquanto corria pelo corredor do hospital, San percebeu que, apesar do cansaço, aquele era o único lugar onde ele realmente se sentia vivo. Era ali, entre corredores brancos com cheiro de antisséptico, que as pessoas que precisavam dele, que ele sentia que seu esforço fazia sentido.
Pessoas passavam por ele e o cumprimentavam enquanto ele arrumava melhor o jaleco e ajeitava a touca na cabeça até ver as costas de sua supervisora em seu lugar de costume apoiada no balcão da recepção. Ela tirou os olhos do papel, como se procurasse por alguma coisa ou alguém. Ao reconhecer San, seus olhos brilharam com algo que ele não soube reconhecer, e ela gesticulou para que ele se apressasse.
— Finalmente! Achei que só ia chegar na próxima fase da lua.
San engoliu a culpa pelo atraso e seguiu Moonbyul quando ela começou a se mover.
— Desculpa.
Sua supervisora revirou os olhos para seu atraso e ele engoliu em seco.
— Depois a gente conversa sobre sua dificuldade infinita de chegar no horário.
Os dois avançaram pelos corredores de paredes brancas com pressa e San apressou o passo porque sabia que se Moonbyul, a pessoa mais composta que ele já conheceu, estava se movendo com urgência era porque algo exigia sua atenção.
Moonbyul parou na frente da porta que dava para a ala da pediatria e encarou San.
— Olha, isso é muito, muito importante. Ela 'tá assustada, a vida da mãe dela 'tá por um fio e a gente não tem ideia de como resolver nenhuma das duas coisas. Não importa o que você tem que fazer hoje, Choi San, essa criança é sua responsabilidade e se alguém te questionar diga que foram ordens minhas.
San não tinha ideia do que Moonbyul estava falando, e ela não se preocupou em explicar. Apenas entrou na ala pediátrica com passos firmes, e ele a seguiu de perto. Ao passarem pelos corredores, logo chegaram à ala emergencial, onde uma menininha estava sentada encolhida sobre uma das macas, com uma enfermeira ao seu lado. Marcas de cortes superficiais traçavam linhas vermelhas em seus braços pequenos, e sua roupa azul-bebê estava manchada de terra.
San sentiu seu coração apertar porque, apesar de não demonstrar ferimentos físicos graves, o olhar da menina era o olhar de alguém que já tinha passado por coisas demais e ela não parecia ter mais de sete anos.
Moonbyul se aproximou da maca e se abaixou, ficando da altura da criança.
— Seoyun, esse é o San — apontou para ele e a menina se encolheu. — Eu sei que ele parece assustador, mas ele é uma das pessoas mais doces que eu já conheci e ele vai cuidar bem de você, tudo bem?
Seoyun não parecia acreditar nela e San se abaixou ao lado de sua supervisora.
— Eu... só vou cuidar dos seus machucados, 'tá? Assim eles não vão doer mais — ele disse, com um tom gentil.
Seoyun o olhou, ainda desconfiada, mas San viu um brilho de curiosidade em seus olhos e suspirou antes de olhar para Moonbyul, acenando com a cabeça para mostrar que ela podia deixar com ele e ela sorriu para Seoyun antes de deixá-los para trás com a enfermeira.
A tensão da menina pareceu aumentar ao ficar sozinha com San e ele tentou deixar sua linguagem corporal o menos ameaçadora possível enquanto inspecionava Seoyun sem tocá-la.
— Você sente alguma dor além desses cortes nos seus braços e pernas, pequena?
Seoyun negou com a cabeça.
— Posso cuidar deles? — perguntou.
A menina o encarou por alguns segundos antes de concordar com um aceno hesitante, fazendo San sorrir enquanto pegava as coisas que usaria no carrinho que sabia que Moonbyul deixou posicionado e estocado para aquele caso específico.
Ele analisou os ferimentos superficiais antes de tomar a decisão.
— Posso te mostrar uma coisa?
Seoyun acenou com a cabeça mais uma vez e San levou uma das mãos até a touca, revelando seus fios negros com mechas vermelhas e sorriu ao ver o olhar encantado dela.
— Você gostou? — Seoyun não respondeu, mas sua expressão dizia o suficiente. — Pode tocar, se quiser.
A menina hesitou, mas a curiosidade pareceu vencer sua batalha interna quando ela levou a mão pequena até os fios bagunçados de San, a boca se abrindo em um pequeno "O" ao tocar as mechas coloridas.
— Eu vou começar a limpar seus machucados agora, 'tá bom? — avisou para que ela não se assustasse com um toque inesperado. — Pode arder um pouquinho, então pode puxar meu cabelo se precisar, eu aguento.
Com Seoyun entretida com seu cabelo, San limpou os arranhões o mais delicadamente que conseguiu, impressionado com a forma que a menina sequer piscou com a ardência que ele sabia que ela sentiu, o que demonstrava que aquela não era a primeira vez que ela passava por nada disso e ele não se permitiu pensar muito nessa informação porque não tinha o luxo de se deixar desmoronar por ela.
— Quantos anos você tem, pequena? Eu tenho 25 anos.
San perguntou para tentar fazer com que a menina falasse, sem esperar uma resposta, o que fez com que ele quase pulasse de susto quando a voz dela soou, baixa e hesitante, mas presente.
— Eu tenho cinco.
— Tudo isso?
Seoyun assentiu enquanto San a enchia de band-aids coloridos para proteger os arranhões.
— E qual a sua cor favorita?
A menina parou para pensar, como se nunca tivesse ouvido aquela pergunta antes, e San apenas ignorou quando seu coração apertou de novo. Seoyun não era, nem de longe, a primeira criança que ele tratou que passou por muita coisa, mas, por algum motivo, ela o estava afetando mais do que o normal.
— Azul.
— É? Eu gosto de vermelho — falou, apontando para as mechas vermelhas no cabelo, com a mão de Seoyun ainda perdida entre os fios. — Sabe, eu tenho um amigo que pintou o cabelo junto comigo. O dele é azul.
Os olhos de Seoyun cresceram em surpresa e brilharam com tanta curiosidade e inocência que San sentiu seu sorriso aumentando antes que ele percebesse.
— Você quer ver? — A menina hesitou mais uma vez antes de assentir. — Posso sentar do seu lado?
Mais um aceno afirmativo e San a observou de perto, percebendo que um pouco da tensão dos pequenos ombros tinha se perdido ao longo da interação, antes de sentar ao lado dela, mostrando o celular com fotos que ele e Mingi tiraram no dia em que pintaram o cabelo combinando e contando a ela como foi.
Seoyun não falou nada, mas ouviu atentamente enquanto admirava as fotos.
San permaneceu ao lado dela conversando por um longo tempo, tentando distraí-la enquanto a mãe lutava pela própria vida em uma mesa de cirurgia.
☆彡
San sentiu-se gelar por dentro quando viu Moonbyul se aproximar porque ele conhecia aquela expressão, sabia o que ela significava, e se preparou mentalmente para o que estava por vir.
— Seoyun — chamou ela com a voz terna, atraindo a atenção da menina que estava focada em San. — Eu preciso te contar uma coisa. Não vai ser fácil, mas você precisa saber e precisa ser forte.
Moonbyul se abaixou na frente da maca onde Seoyun estava sentada e San fechou os olhos com força ao perceber que estava certo, um nó surgindo em sua garganta por ter que passar mais uma vez pelo que ele considerava a pior coisa de sua profissão. Muitos achavam que lidar com pacientes era difícil, mas não. Difícil era lidar com aqueles que ficavam quando os pacientes partiam.
— Sua mãe foi muito forte, mas ela não aguentou a cirurgia — Moonbyul começou, o tom sério, mas compreensivo. — Nós fizemos tudo que pudemos, mas ela não resistiu.
Lágrimas encheram os olhos de Seoyun e começaram a escorrer por seu rosto, mas ela parecia estranhamente conformada, como se já soubesse.
— San — chamou sua supervisora e ele se assustou com a atenção, focado e preocupado demais com a criança ao seu lado. — Vá chamar Gahyeon, nós precisamos descobrir como lidar com as coisas daqui para frente.
San assentiu e se levantou para procurar a assistente social, porém antes que pudesse se afastar da maca sentiu uma pequena mão se fechando ao redor de seu pulso, paralisando-o no lugar.
— Não vai — pediu a menina em um fio de voz, fazendo San olhar para Moonbyul sem saber o que fazer, mas mais do que disposto a desobedecer a ordem.
— Eu vou. — Ela cedeu de imediato, levantando-se e sumindo pelo corredor de onde veio.
San voltou a sentar no lugar ao lado de Seoyun e ela continuou segurando o pulso dele, como se ainda tivesse medo que ele fosse embora e o coração dele doeu.
Moonbyul não demorou para voltar com Gahyeon em seu encalço, puxando as mangas do blazer preto até o cotovelo antes de se abaixar na altura da maca.
San sentiu o aperto no peito crescer enquanto observava o desespero silencioso de Seoyun. A cada segundo que passava, ele precisava lutar contra o próprio nó na garganta, concentrando-se apenas na promessa de estar ao lado dela.
— Oi, Seoyun. Eu sou a Gahyeon e vou cuidar de você enquanto encontramos alguém que possa te ajudar direitinho.
San nunca gostou do protocolo nesses casos. Ele odiava como forçava as crianças a lidarem com perguntas sobre o futuro enquanto ainda tentavam entender a perda de alguém importante e como isso afetava tudo que elas conheciam.
— Você pode vir comigo? Eu vou te levar para um lugar bem legal, cheio de brinquedos enquanto a gente espera — ofereceu a assistente social, estendendo a mão como forma de convite.
Ela mal terminou de falar antes que Seoyun negasse com a cabeça e San sentiu o aperto em seu pulso ficar mais forte, como se a menina estivesse tentando se prender a ele.
— Não, eu não posso ir — negou, se escondendo atrás dele. — A mamãe preparou um anjo para mim, eu não posso ir com você, moça.
O nó na garganta de San quase ficou grande demais para ele conter suas próprias emoções enquanto Moonbyul olhou para Gahyeon, perdida sobre o que fazer naquela situação, e a assistente social respirou fundo, recolhendo a mão.
— Segundo o doutor Jaejoong, Chaewon deixou a tutela dela para o irmão, eles estão tentando entrar em contato, mas por enquanto sem sucesso. Eu deveria ficar com ela até isso ser resolvido — explicou —, mas...
A explicação não foi além disso, a forma que Seoyun se escondia atrás de San e ainda apertava seu pulso era autoexplicativa.
— Eu posso esperar com vocês — ele sugeriu, olhando para Moonbyul e Gahyeon. — Isso ajudaria, pequena? Se eu ficasse com vocês?
Seoyun voltou ao seu estado hesitante ao assentir e San se virou para sua supervisora para pedir permissão, mas ela foi mais rápida que ele.
— Não se preocupe, fique com ela o tempo que for necessário.
San concordou com a cabeça, um pequeno sorriso triste se formando em seus lábios quando Seoyun soltou seu pulso para segurar sua mão.
San sentiu a mãozinha de Seoyun apertando a sua, como se ele fosse a única âncora que ela ainda tinha no meio da tempestade. Ele sabia que não poderia mudar o passado dela, mas enquanto ela estivesse ali, ele faria o possível para tornar o futuro dela um pouco menos solitário. E naquele momento, era o suficiente.
Com um último olhar para o corredor, San aceitou a responsabilidade que a pequena mão lhe entregava, sentindo a promessa silenciosa de permanecer ao lado dela pelo tempo que fosse necessário.
───── continua...
Notas da autora
Hey, estrelinhas!!
Finalmente, nosso primeiro contato com o San. O que acharam??? Eles ainda vão crescer muito, mas o que acharam da primeira interação do San com a nossa princesa? Eles são muito meus protegidos.
Por enquanto as atualizações ficam ficas toda quarta-feira, mas talvez eu tenha que mudar quando meu próximo semestre começar. Qualquer coisa eu vou avisando vocês.
A partir de hoje, depois das atualizações, eu vou postar nos stories spoilers do próximo capítulo, então vocês podem dar uma olhada lá no meu instagram @/parkemmoya ou ir pelo link na minha bio se tiver curiosidade.
O próximo capítulo tem um pouco mais de peso emocional, então venham preparados.
Se cuidem, bebam água e até a semana que vem ❤️❤️❤️.
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