Capítulo Único

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18 de outubro de 2016

Hoje o dia estava chuvoso lá fora, acordei às cinco e meia, sentei-me em minha janela, observei as gotículas baterem contra o vidro; o céu estava cinzento e os primeiros sinais de um novo dia já se faziam presentes. Não sei por quanto tempo fiquei ali somente com o som da chuva batendo contra o vidro. Eram como notas de uma melodia triste, triste como meus dias, mais um dia que começava e mais um que eu lamentava por minha vida. Desci as escadas até a sala e olhei pelo local, estava vazio, sem nem um sinal de vida. Caminhei lentamente até a cozinha, liguei a cafeteira e me apoiei na bancada, olhando o café cair lentamente em minha xícara por longos minutos. Me perdi na dança que a água fervendo e escura fazia ao despencar até a louça de cor clara, era uma dança sincronizada.

— Aí. — exclamo quando o líquido queima meu dedo.

O dia passou lentamente de novo; a chuva caía ainda mais forte lá fora. Aproveitei para terminar de ler as últimas páginas do livro que Im Ji-an havia me presenteado semanas atrás. Era um romance trágico, onde a mocinha tirou sua própria vida após o falecimento repentino do noivo em um acidente de carro. Algo naquela narração me lembrava da minha própria dor, e da escuridão que eu carregava dentro de mim todos esses anos. Chorei mais que uma vez entre as entrelinhas e desejei que, assim como ela, eu pudesse me livrar daquele buraco instalado bem no meio do meu peito, e que corroía cada pedacinho da minha alma, me fazendo fraquejar mais uma vez.

Olho para os meus braços — estavam marcados pelos anos de dor que carrego, eu os escondia bem demais e nunca ninguém os viu ou desconfiou que eles estavam por lá.

Fecho o livro e o levo até a estante, colocando-o ao lado dos outros que eu havia terminado a leitura. Finalmente minha lista de últimas coisas estava diminuindo, agora faltava terminar aquela canção que eu havia começado ano passado, minha última canção; teve a minha última visita ao lar de idosos que fui voluntário por cinco anos, precisava me despedir da senhora Kim, uma velhinha bondosa que me ouviu por todos esses anos. Ela foi como uma avó para mim e sou grato por todo amor que recebi através de seus doces beijos, abraços e conselhos, mesmo que eles não foram suficientes para me manter firme nesse plano.

Caminho até a varanda e rego algumas folhagens que eu fazia questão de ainda manter vivas. O vento gélido me atinge e meu corpo reage ao clima. Me apresso com meu afazer e entro em casa. Sinto o choque da temperatura, sigo meu caminho até o piano ao lado direito e me sento nele. Anoto algumas notas e, em seguida, começo a tocar. Meu caderno de partitura estava cheio de anotações, mais algumas horas ali e eu terminei a canção que dediquei à minha amada mãe.

Subo até meu quarto e gravo um vídeo aos meus seguidores. Deixo algumas pistas nele sobre meus novos planos e me despeço; eles não são muitos, mas sempre estiveram ao meu lado e não poderia partir sem me despedir. Caminho até o banheiro e ligo a água morna que aos poucos preenche o grande vazio branco que era a banheira e volto minha atenção ao meu computador; nele é onde eu escrevo aquela que será minhas últimas palavras. Me acomodo na cadeira, abro o documento e lentamente digito as palavras que vêm carregadas de dor e pesar. Logo, as lágrimas chegam e eu as deixo dançar sobre minha face esquelética.


"Quero começar aqui pedindo perdão se de algum modo eu magoei ou machuquei seu coração, mesmo que tenha sido sem querer, essa não era a minha intenção. Eu só estou procurando pela minha paz, pelo meu novo começo, por uma nova vida onde a dor não corroa cada pedacinho meu. Talvez diga: "Mas a vida é tão boa e precisa ser vivida", eu de verdade espero que ela seja tudo isso para você e espero que você a viva intensamente e a aproveite por mim. Porém, para mim, ela não passou de um fardo. Durante essas duas décadas e meia de vida, ela é feia e dolorosa.

Fiz o que pude e aquilo que não podia para tampar esse buraco negro que só crescia dentro de mim e engoliu a minha alma, meus sentimentos e minha identidade.

"A felicidade que eu tinha antes",eu realizei alguns sonhos e achei que isso me traria a paz que eu procurava e não, não trouxe e eu me arrependo deles, pois foram os mesmos que ajudaram a me afundar na droga dessa lama. Eu dei sinais, eu disse que não estava aguentando e que a dor estava mais forte e ninguém ligou ou não percebeu, afinal todos dizem "quero morrer, não aguento mais", realmente todos dizem, mas poucos chegam a realizar esse desejo e talvez pensaram que eu jamais chegaria a esse ponto. Eu lamento dizer que eu cheguei; eu me dediquei a vencer a dor e, no final, ela me consumiu. Hoje não vejo como um dia de tristeza e sim de alegria para mim, pois hoje eu encontrei minha paz e a dor já não pode mais me alcançar. A escuridão está aqui, mas não me causa mais medo, eu dei a mão a ela e caminhamos juntos como bons amigos.

Mãe, não chore, por favor. Eu estava sendo um peso para você e hoje eu te liberto de tudo isso. Vá viver seus dias, seja feliz. Você merece e eu te amo, não chore, eu estou em paz, lembra de todas as vezes que disse que a queria, então eu a encontrei, estou tão feliz, mamãe. Eu te dei aquela viagem de fim de semana com o seu namorado para que você não me encontrasse. Eu lamento não poder dizer adeus do modo certo, mas eu estou aqui nessas linhas dizendo o quanto te amo e o quanto eu precisava disso. Quero apenas que me perdoe e continue me amando, porque de onde eu estou eu continuo te amando.

James, eu te peço desculpas por ser você a limpar toda a sujeira que eu estou prestes a causar; mas, meu fiel amigo... eu não poderia contar com mais ninguém que não fosse você. Eu sei que você correrá até aqui e vai estourar aquela porta e gritar por meu nome, mas não perca seu tempo, quando esse e-mail chegar até você, eu já terei partido. Eu planejei tudo: você só o receberá duas horas após o ocorrido. Seja forte e cuide do Stark, ele precisa de comida e água fresca. Levem-no para passear pelo menos uma hora todos os dias depois do almoço. Diga à Diana que você a ama e vai ser feliz com aquela garota, eu sei que ela é afim de você, soque a cara do brutamonte do irmão dela se ele te ameaçar.

Para finalizar minha despedida... eu quero dizer a Im Ji-nah que eu lamento não ter dito que a amava, que neguei qualquer sentimento quando ela se declarou para mim no verão passado. Me perdoe, querida. Eu também lhe amo, desde o colegial; doeu em mim, mas eu não poderia te dar mais espaço a uma vida que estava prestes a acabar. Eu lamento não termos vivido esse amor, mas quando você o expôs , já era tarde. Eu não tinha mais vontade de ser feliz, eu não podia te arrastar ainda mais para esse buraco. Perdoe-me e prometa que será feliz com um cara que tenha no mínimo uma vida pacata. Eu era complicado demais para você, boneca.

Eu vivi, sorri, chorei e sofri, sofri muito e hoje eu encontro a paz depois de percorrer caminhos tortuosos. Hoje eu abracei a morte e a tive como uma amiga, não tenho mais a dor.

Me perdoe se eu fracassei como um ser humano, como amigo e como filho. Espero que consigam me entender e não se culpem, vocês não tiveram culpa, o único culpado fui eu mesmo que não soube lidar com tudo isso.

Adeus."

Caminho até o banheiro e a água já transbordava pela borda da louça. Desligo a torneira, coloco um pé e depois o outro e lentamente eu me sento. Seguro nas bordas e dou uma última olhada pelo local; eu olho para a tela do computador que brilhava em minha direção, eu havia enviado o e-mail que estava agora programado para chegar ao meu colega. Apoio minha cabeça, fito o teto branco por mais uns segundos e peço perdão a Deus. Fecho meus olhos e mergulho meu corpo, o desespero me toma conta; solto minhas mãos e as levo ao peito, cruzando as mesmas sobre o mesmo, e então abro meus olhos e sinto a água morna adentrar minhas narinas e as queimar. Eu tive vontade de sair dali, mas não o fiz. Ela chega aos meus pulmões e eles queimam como brasa, mas logo tudo escurece e eu soube que estava partindo, a dor diminuiu e o silêncio se fez presente.

E o fim chegou.





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