IRA
A Ira é o intenso e descontrolado sentimento de raiva, ódio, rancor que pode ou não gerar sentimento de vingança. A ira torna a pessoa furiosa e descontrolada com o desejo de destruir aquilo que provocou sua ira, as quais são algo que provoca a pessoa. Ela não atenta apenas contra os outros, mas pode voltar-se contra aquele que deixa o ódio plantar sementes em seu coração.
Do latim ira.
HISTÓRIA DOIS
Antônio Veleda era um negro alto e forte de 45 anos, que sempre levou muito a sério seu emprego de motorista de ônibus. Nunca faltou um dia de trabalho durante os dez anos, nem mesmo quando seu filho nascera, ele não faltou. Achava que, para ganhar dinheiro e ter o que seu vizinho tinha, teria de sacrificar certas "bobagens". Apesar de ser um bom funcionário, não era bem-querido pelos colegas, pois estava sempre de mau-humor e nutria um certo rancor por eles. Em casa, não era diferente. Sua esposa e seu filho eram constantemente vítimas da raiva e frustração.
Quando seu time favorito jogava, dava para ouvir seus gritos e coisas sendo jogadas contra a parede, caso este perdesse. Sua personalidade colérica afastava as pessoas ao seu redor e, lentamente, foi se tornando uma pessoa amarga e sem amigos.
Naquele dia quente de verão, Antônio reclamava do calor, resmungando sozinho na saída da empresa.
"Que droga de calor! Que merda!" — pensou, já enfurecido.
Era sua folga e poderia aproveitar na praia com a família ou amigos. Ou simplesmente descansar ao lado da esposa, passear com o filho.
Mas não ele...
Foi dirigindo para a casa, protestando com o trânsito lento. Buzinava ensandecido, como se assim, aplacasse sua raiva pela vida que levava, sem considerar a esposa dedicada e gentil e o filho que o amava. Já imaginava sua chegada em casa e ter que aturar sua mulher fedendo a cebola e seu filho choramingando o dia todo.
"Quem dera eu pudesse fazer eles sumirem! Só atrasa minha vida! Que ódio!" — pensou.
Buzinava ainda mais forte, ao pensar nisto. Batia no volante, insistentemente, entre um palavrão e outro.
Aquele horário, o trânsito estava geralmente engarrafado e não tinha muito que fazer, além de esperar. Mas não, Antônio. Ele gostava de esbravejar até o sinal liberar.
Colocou a cabeça para fora do carro, soltou o cinto e ligou o rádio. Estava tocando o hit do momento, uma canção romântica de uma banda americana.
— Bando de fracotes! — falou, trocando de estação.
Logo, uma música alegre e popular ecoou no interior do veículo, irritando-o ainda mais.
— Odeio esses moleques! Será que são só essas porcarias que sabem cantar agora? — gritou.
Resolveu desligar o rádio, xingando o mundo que "enchiam os ouvidos alheios com tanta bosta musical". Nisto, o sinal abriu e ele se prendeu ao cinto, acelerando, pensando em pegar uma rua mais tranquila, como atalho, mas em vão. A próxima estava alguns quarteirões dele. Foi obrigado a parar no próximo semáforo, mas sentiu que o trânsito estava fluindo melhor, agora. Olhou para os lados, a fim de se distrair, quando percebeu o carro de luxo à sua esquerda. Chamou sua atenção o veículo que se destacava dos demais. No interior dele, uma linda mulher lhe sorriu maliciosa e, na direção, um homem musculoso, cabelo e barba muito bem cuidada. Tanto ela, como o motorista, olharam-no com escárnio. Antônio fez uma careta de impaciência e desgosto. Assim que o sinal abriu, ele arrancou o carro, sem olhar para os lados.
A imagem daquele carro vermelho importado e o olhar de deboche do homem não saíam da sua cabeça e isso o irritou ainda mais, dobrando na esquina da sua casa bruscamente. Ao estacionar o carro em frente à sua casa, ficou pensando na vida que poderia ter, se fosse solteiro.
"Eu até poderia ter um carro daqueles, se não tivesse que gastar tudo em casa!" — pensou.
— Olá, Antônio? Lindo dia para o passeio com a família, não?
Foi tirado de seus devaneios, por uma voz grave e uma leve batida no vidro do carro. Antônio reconheceu o homem careca do carro de luxo, baixando o vidro com violência.
— Quem é você, afinal, cara? E o que quer de mim? — falou, sem cerimônia alguma.
— Não importa quem sou, Antônio. Ou devo chamá-lo de Toninho? — sorriu, se debruçando e deixando que seu rosto ficasse alguns centímetros de Antônio.
Este se sentiu acuado. Não só pela aproximação demasiada daquele estranho, como pelas palavras proferidas. Desconhecia aquele cara e sabia bem que aquele apelido era de uma infância rejeitada.
"Mas quem é este grandalhão, afinal?" — pensou, recuando.
O careca sorriu, mostrando seus dentes perfeitos. Mas não era um sorriso qualquer. Era um sorriso que provocava medo, como em pesadelos que você não sabe definir, mas sente até os ossos.
— É alguma piada? Se for sacanagem da Laura, encherei aquela vagabunda de porrada! — disse num fio de voz, já sentindo o suor deslizar pelas têmporas.
— Sua mulher não tem nada com isso, Antônio. — disse, se afastando do carro.
Ele ficou confuso e amedrontado. Não sabia explicar, mas o medo ia aumentando cada vez mais, ao ponto de ele não suportar mais. Desceu do carro, na tentativa de compreender o que estava acontecendo.
— Quem é você, afinal? Como sabe...? — gaguejou.
— Quem sou, não importa. Como sei, menos ainda! — disse, apoiando o corpo contra o capô do carro luxuoso. — Na verdade, eu vim satisfazer um de seus maiores desejos! Pode me agradecer! — falou, soltando uma risada de gelar o sangue.
— Eu não sei o que está acontecendo aqui, mas se for pegadinha daquele programa de TV, que odeio, já vou logo avisando...
— Não é nada disto! E cala essa boca, Toninho! — cortou-o.
Novamente aquele apelido. Ele odiava que o chamassem assim!
— Você não gosta desse apelido, não é mesmo? — riu. — Faz com que se recorde da infância miserável? Onde sua mãe o levava para a casa dos patrões, para poder trabalhar, enquanto os filhos destes te humilharam, gritando "Neguinho Toninho", o tempo todo, não?
Ele gelou, ouvindo tudo aquilo, sem reagir. Não entendia como aquele homem sabia dos detalhes e, um filete gelado desceu pela sua espinha dorsal, fazendo-o balbuciar, de forma quase inaudível:
— Quem é você?
— Você jurou se vingar dos dois e... não conseguiu, tendo que crescer com este veneno destilando sua alma, certo? — continuou ignorando.
Os olhos de Antônio estavam marejados e não conseguia reagir, lembrando-se da infância amarga e miserável.
— Você é amigo deles, não é mesmo? — disse, num fio de voz.
— Não é uma piada, seu arrogante, desgraçado! Livrei-o do tal peso morto, os quais são ter uma família! — ao dizer isto, frisou a frase com asco. ― De ter que aturar aqueles colegas insuportáveis, dos vizinhos imbecis que adoram ostentar o que você nunca pôde ter... — enquanto falava, gesticulava teatralmente, se afastando do carro.
Antônio teve a nítida sensação de ver uma nuvem negra e espessa se formar ao redor do homem, mas poderia ser o calor infernal ou ele estava sonhando com tudo aquilo.
— Você desejou tanto se livrar de tudo que estava ao seu redor, não é mesmo? Então, aproveite bem! — entrou no carro, desaparecendo no final da rua.
No seu lugar, um rastro de nuvem negra e espessa ia se espalhando, tornando tudo ao redor um imenso breu de fuligem. Antônio olhou como se fosse a primeira vez, tentando achar uma resposta racional para tudo aquilo, mas seus pensamentos pareciam se misturar, como se seu cérebro estivesse se liquefazendo.
O bairro estava quieto demais. Não se ouvia nenhum som. Tudo era apenas um silêncio aterrador.
Antônio ficou um tempo parado, sem saber exatamente o que deveria fazer. Respirou fundo, voltou-se para sua casa. Ao entrar na sala de casa, houve um choque. Todos os móveis sumiram, nem sua esposa Laura e seu filho Lucas estavam lá. O vira-lata, que sofria maus tratos dele, também não latiu, como fazia sempre. Ao perceber a loucura que ia surgindo diante de seus olhos, soltou um grito, que estava preso na garganta. Deu meia volta, saindo para rua, indo em direção à casa vizinha, para saber onde sua família estava. Seu primeiro pensamento foi que eles foram embora, levando todos os móveis. Bateu e não obteve resposta. Esmurrou a porta e, novamente, o silêncio reinou. Isto se repetiu em todas as portas da sua rua e nem os latidos dos cães vadios ao longe ele conseguiu ouvir.
Correu até o fim do quarteirão e olhou para os lados. Não viu os carros dos vizinhos e no céu azul, não havia uma única nuvem e nem sons dos pássaros nos galhos das árvores, assim como não havia vento algum, que sacudia as folhas nos galhos das árvores.
Tudo se mantinha terrivelmente estático.
Antônio, entrou em desespero, voltando para o ponto de partida. A frente da sua casa e, ao procurar seu carro, também não o encontrou.
— O que está acontecendo?! Onde foram parar todos? — deu um berro, deixando-se cair de joelhos.
As lágrimas mornas, depois de muitos anos presas, rolavam livres, lavando seu rosto barbeado.
Ele foi andando em direção ao centro da cidade, sem rumo para onde deveria ir, e se deparou com um abismo. Parou no meio da estrada vazia, andando na direção contrária à sua casa. Uma hora depois, percebeu que não havia ninguém. O mesmo abismo negro e sem fim. Ele não sabia o que estava acontecendo, colocando as palmas das mãos no rosto, chorando copiosamente...
— Onde está todo mundo? O que está acontecendo? Alguém me responda! — gritando para o próprio eco. — Alô! Alguém me responde! Pelo amor de Deus! Cadê todo mundo?
Naquele mesmo instante, sua mulher conversava com um médico psiquiatra. Seu semblante era de desolação e uma tristeza profunda, ao ouvir o laudo do profissional:
— Sinto muito, senhora Laura. Seu marido teve um surto psicótico e não há nada que podemos fazer para reverter isto. Mas posso garantir que ele deve estar num lugar maravilhoso, imaginando a senhora e o filho com ele, fazendo suas atividades normais. Geralmente, é isto que acontece nestes casos.
— Sabe, doutor, meu marido sempre foi um homem muito difícil de conviver — disse, secando uma lágrima. — Desejo do fundo do coração, que ele esteja em algum lugar onde mereça e que o torne um homem melhor, doutor.
A pobre mulher, dentro da sua simplicidade, sem saber profetizou o inferno interior do marido cruel.
— Proponho rezarmos que sim, dona Laura. — o médico gentilmente falou, tocando seu ombro, solidário. — Rezemos que sim.
Laura, apesar de tudo, sentia pena do que restara do marido. Um homem sem coração e agora, um corpo sem alma...
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