GULA

Gula é o desejo insaciável, além do necessário, em geral, por comida e bebida.
Segundo tal visão, esse pecado também está relacionado ao egoísmo humano: querer ter sempre mais e mais, não se contentando com o que já tem, uma forma de cobiça. Ela seria controlada pelo uso da virtude da temperança.

Do latim gula.

HISTÓRIA CINCO

     
Juan Vasconcelos, aos 50 anos, era a personificação do egoísmo. Ao longo dos anos, tornara-se amargo, que satisfazia suas necessidades através de uma gula desenfreada por mais posses e poder. Possuía uma fábrica têxtil que lhe rendia lucros exorbitantes, em grande parte devido à exploração de trabalho escravo. A rede de lojas que mantinha ao redor do mundo operava da mesma forma, maximizando lucros à custa da dignidade humana.

Além disso, Juan era dono de vários imóveis de luxo, iates, jatinhos particulares e envolvia-se em negócios escusos e muita sonegação. Ele acumulava riquezas sem se importar com os meios, acreditando que o fim sempre justificava os métodos desprezíveis que utilizava.

Enquanto isso, suas duas irmãs mais novas, Doralina e Alma, viviam humildemente. Moravam de aluguel e tinham empregos mal remunerados, mas levavam suas vidas com dignidade. Juan desprezava essa simplicidade, vendo-a como uma fraqueza. Temia que suas irmãs viessem tentar eliminá-lo para ficar com sua fortuna, e, por isso, mantinha-se distante delas e de suas vidas medíocres.

Certa tarde, Juan Vasconcelos agendou um encontro com Marcelo, seu contador de confiança, para revisar meticulosamente o relatório mensal da fábrica. Insatisfeito com os lucros recentes, Juan sentia-se cercado por uma crescente desconfiança em relação a todos ao seu redor, inclusive em relação ao fiel Marcelo. Todo mês, Marcelo comparecia à casa de Juan e aguardava pacientemente em seu escritório, pronto para discutir os números e os detalhes financeiros da empresa.

Entrou no escritório com passos firmes e decididos, o rosto carregado de desdém. Sentou-se pesadamente na cadeira de couro, mirando Marcelo com seus olhos frios.

— Trouxeste o relatório? — disse com sua voz anasalada, cheia de arrogância.

— Sim, senhor. — respondeu Marcelo, estendendo uma pasta. — Aqui estão os relatórios e também a lista dos empregados que estão para se aposentar. — pigarreou, nervoso. — A propósito, senhor Vasconcelos, seu advogado tentou entrar em contato com o senhor e, como não conseguiu, ligou para meu escritório.

Marcelo conhecia bem o gênio difícil do patrão e sabia que qualquer coisa poderia desencadear uma explosão.

— E, então? — falou Juan, jogando seu corpanzil avantajado contra a cadeira estofada. — São essas notícias maravilhosas que você tinha para me dizer?

— Vim aqui para avisá-lo que o testamenteiro de seu pai entrou em contato para a abertura do testamento.

— Como? Meu pai deixou-me algo? — os olhos de Juan brilharam quase saindo das órbitas.

— Sim, mas... Ele deixou também para suas irmãs e como o senhor sabe, elas...

— Como assim, seu imbecil? Aquelas imprestáveis? — berrou Juan, o rosto se contorcendo de raiva. — Elas não sabem valorizar o dinheiro! Vão gastar tudo em bobagens!

— Mas senhor, elas precisam...

— Cala-se! — esmurrou a mesa com força, fazendo Marcelo tremer. — Você trabalha para quem, afinal? Quando será a abertura do testamento?

— Amanhã, neste endereço. Está tudo anotado no verso. — disse Marcelo, entregando-lhe um cartão de visitas.

Juan pegou o cartão bruscamente, lançando um olhar para o contador antes de dispensá-lo com um aceno impaciente da mão. Seus olhos faiscavam de desprezo enquanto estudava o cartão com aversão. Virou-se para Marcelo, gesticulando com impaciência, deixando claro seu desagrado com a situação.

— Senhor Vasconcelos? Só mais uma coisa. Preciso que assine alguns documentos para a aposentadoria dos funcionários mais velhos.

— Caia fora da minha casa! Não me venha com essas bobagens! — ele exclamou, cortando-o com uma voz cheia de desdém.

Marcelo, visivelmente perturbado, guardou os documentos e saiu rapidamente do escritório. Juan, com o cartão ainda na mão, dirigiu-se ao seu quarto. Sua mente maquinava planos para evitar dividir a herança com suas irmãs.

"Essas duas idiotas vão acabar com tudo em um piscar de olhos," — pensava com asco.

— O que sabem sobre dinheiro? Vão gastar tudo em puxadinhos e encher um carrinho de supermercado!

No dia e hora marcados, Juan já estava sentado confortavelmente em uma das cadeiras para a abertura do testamento. Olhava impacientemente para o relógio. Logo, uma de suas irmãs entrou, acompanhada do marido, e a outra chegou em uma cadeira de rodas, empurrada pelo filho mais velho. Elas o cumprimentaram timidamente e se acomodaram em silêncio.

— Olá, Juanito. Como você está, meu irmão? — perguntou a caçula, tentando uma aproximação.

Juan nem sequer respondeu, lançando um olhar frio na direção dela. Ele não tinha paciência para bajulações. Sua mente estava ocupada com um único pensamento: como impedir que suas irmãs ficassem com qualquer parte da herança.

Inclinou-se discretamente para seu advogado e sussurrou:

— Como posso fazer para impedir que elas fiquem com a herança?

— O senhor não pode! — respondeu o advogado, também sussurrando. — É um testamento feito em vida, e suas irmãs têm os mesmos direitos que o senhor.

— E se eu prometer algo em troca?

— Senhor Juan, por favor! — disse o advogado, irritado. — Não sabemos o que há no documento. Vamos nos conter, por favor!

— E se eu oferecesse uma cesta básica bem substancial? Hein? O que acha?

O advogado de Juan suspirou profundamente, revirando os olhos. Seu rosto mostrava o cansaço de anos de serviço. Não via a hora de se aposentar e se livrar daquele homem insuportável.

— Vamos aguardar o testamento. — disse, com uma voz exasperada, tentando manter a calma.

As irmãs, sentadas a poucos metros de distância, observavam a interação, percebendo o comportamento insensível de Juan. A tensão na sala era palpável. Finalmente, o notário chegou, trazendo consigo o documento que mudaria o destino de todos ali presentes.

Presentemente, entraram o juiz e o testamenteiro, carregando um envelope pardo. Cumprimentaram os presentes e se acomodaram, iniciando o processo judicial com a leitura oficial e os pormenores legais.

Enquanto isso, Juan varria suas memórias, tentando lembrar-se do que o velho pai poderia ter que valesse a pena.

"Ele tinha um pedaço de terra que não vale nada para construção, mas pode render algo futuramente. A casa onde minha irmã mora com o filho... com uma reforma, daria para vender bem. E aquele carro velho... acho que consigo alguns trocados," — pensava, absorto.

— Preste atenção agora, senhor Juan! Ele abrirá! — cutucou o advogado, tirando-o de seus pensamentos.

O juiz começou a ler o testamento, exatamente como Enrico Vasconcelos havia deixado escrito e autenticado com testemunhas. O juiz fez uma pausa, olhando para os filhos presentes.

— Para Doralina, que cuidou de minha falecida e amada esposa e de mim, sem nunca pedir nada em troca, deixo minhas terras no município vizinho, avaliadas por um corretor local e que são suficientes para mantê-la em vida. Para minha caçula, a doce Alma, deixo a casa e o carro, também avaliados pelo mesmo corretor, e o carro para um colecionador interessado, que permitirá que ela viva tranquilamente se decidir vendê-lo.

Juan começou a se mexer na cadeira, visivelmente impaciente. O juiz continuou:

— Enfim, deixo para o meu primogênito, Juan, que jamais teve coragem de visitar seus pais em vida, nunca ajudou suas irmãs, e se negou a receber seu velho pai quando fui visitá-lo, deixo esta chave, de um depósito localizado no endereço abaixo. Agradeço a todos os amigos que tive em vida, a Deus por me dar discernimento no fim da minha vida para poder ser justo com meus filhos. Assino abaixo, na presença de três testemunhas e de meu médico, que me avaliou mentalmente capaz para tal ato.

O juiz parou de ler, tomou um gole d'água e aguardou as reações. Juan estava vermelho de raiva, seus olhos faiscavam.

— Isso é um absurdo! — gritou Juan, batendo com força na mesa. — Um depósito? Isso é o que eu ganho?

O juiz permaneceu impassível, enquanto o advogado se esforçava para manter a compostura.

— Após isto, o senhor Enrico assina, autenticado pelo escrivão e suas testemunhas. Tudo dentro da lei e irrevogável. Espero que todos respeitem a decisão do autor do testamento. Meu colega passará o endereço do corretor, do colecionador e, para o senhor Juan Vasconcelos, a chave com o endereço do depósito. A papelada dos bens se encontra no cartório. Obrigado pela presença de todos. Tenham uma boa tarde.

Juan se levantou abruptamente, jogando a cadeira para trás. Seu rosto estava contorcido de fúria.

— Vocês não ouviram a última de mim! Vou contestar isso no tribunal! — gritou, saindo da sala, deixando todos em um silêncio constrangedor.

Doralina e Alma se entreolharam, aliviadas por finalmente terem algo de segurança, enquanto o advogado de Juan suspirava, cansado de lidar com um homem tão inescrupuloso e egoísta.

— E você, seu incompetente? Está demitido! Suma da minha frente! — ele berrava, totalmente fora de si.

O advogado recuou, ajeitando o paletó, e saiu do local. As irmãs, estarrecidas, assistiam à cena. Elas não entendiam a reação de Juan; para ele, aquelas coisas não tinham valor, mas para elas seriam um presente do pai saudoso.

— Meu irmão, não precisa se alterar tanto. Nosso pai foi generoso com os três filhos por igual e não há motivos para ficar assim. — disse a gentil Alma, sorrindo.
Ele a encarou com um desprezo que fez a pobre mulher se encolher na cadeira. Seu filho, indignado com a reação do tio, afastou a mãe, empurrando a cadeira para longe dele.

Assim que se acalmou, foi ao encontro do testamenteiro para recuperar a chave. Assinou a papelada legal e recebeu uma velha chave de depósito. Era das mais comuns, com um barbante amarelado e preso nele, um cartão plastificado com o endereço e o número do depósito.

"Isto é totalmente ridículo!" — pensava, furioso.

Precisava verificar o que havia lá dentro. Entrou no carro, configurou o GPS e dirigiu por quarenta minutos, chegando quase à noite no local. Desceu do carro, procurando algum responsável, mas não havia ninguém. O silêncio noturno e um ar gelado faziam companhia ao homem gordo e bem-vestido.

— Mas era só o que me faltava! Não há ninguém para me atender! — suspirou, indignado.

Respirou fundo voltando sua atenção para o depósito. Enfiou a chave no cadeado grosso, abrindo a pesada cortina de ferro. Ao olhar para dentro, Juan Vasconcelos sentiu todo seu corpo amolecer e a garganta secar.

O depósito estava praticamente vazio, exceto por um baú de madeira enorme, com gravuras antigas entalhadas, dando-lhe um ar ancestral. O baú estava aberto e, no fundo dele, havia um bilhete amarelado.

Juan se aproximou, trêmulo e com ódio fervilhando em seu peito. Pegou o bilhete com violência, quase rasgando o papel frágil. Leu as palavras que seu pai havia deixado:

"Meu filho Juan:

Espero que aprenda esta lição. É a última que seu pai está lhe dando. Nem sempre tudo o que desejamos é o melhor para nós. Este depósito vazio é o símbolo personificado da sua alma. Preencha-a de coisas boas.

Do seu velho pai,
Enrico Vasconcelos."

O homem gritou de raiva, proferindo palavras de puro ódio contra o pai e suas irmãs. Sua voz ecoou pelas paredes frias do depósito, mas antes que pudesse rasgar o bilhete, uma voz suave surgiu atrás dele.

— Precisa de ajuda, Juan?

Ele se virou rapidamente, ainda possesso, e deu de cara com um jovem de aparência peculiar. O estranho não parecia ser um guarda-noturno comum; vestia-se com um terno de linho em tons dourados, e seu perfume almiscarado era surpreendentemente forte. Seus traços magros e olhos profundos davam-lhe um ar quase sobrenatural.

—  E quem é você? — Juan perguntou, ríspido. — O guarda-noturno? Não és jovem demais para isso?

O jovem sorriu enigmaticamente, deslizando a língua pelos lábios carnudos.

— Não, não sou um guarda-noturno. Na verdade, sou o único que realmente entende você, Juan. — A voz dele era incrivelmente suave, quase hipnótica.

— Como ousa dizer que me entende? Nem nos conhecemos! — Juan retrucou, a irritação transparecendo.

O jovem manteve o sorriso Esfíngico, apontando para o velho baú.

— Aquele baú... Pois saiba que eu já passei por algo semelhante, Juan.

— O que está querendo dizer com isso? — A impaciência de Juan crescia, desejando sair dali.

— Venha, vamos ver se o baú realmente vale algo! — O jovem estendeu a mão, revelando um anel de ouro reluzente.

Apesar de sua desconfiança, Juan seguiu o jovem até o baú, onde ele havia se posicionado, e olhou para o objeto com escárnio.

— Não há nada aqui, imbecil! — Juan gritava, sua frustração transparecendo. — Estou perdendo meu tempo aqui!

— Ora! Não seja tão impaciente, meu caro! Olhe com mais cuidado e mais no fundo, Juan... — o jovem sussurrou com uma voz que parecia ecoar das profundezas do inferno. — Tenho certeza que irá se surpreender. Baús antigos sempre têm segredos.

A curiosidade de Juan foi maior do que sua raiva. Ele se inclinou sobre o baú, comprimindo sua barriga volumosa contra as bordas, procurando uma abertura secreta.

— Acho que encontrei algo! Sim, tem uma pequena abertura! — Ele falava excitado, enquanto sua mão adentrava a escuridão do baú.

O jovem observava com um sorriso enigmático, as mãos magras e ossudas passando sobre os entalhes em alto-relevo do baú, como se estivesse conduzindo um ritual macabro.

— Olhe os detalhes, Juan... — sussurrou o jovem, sua voz parecendo sussurrar diretamente na mente de Juan, como se estivesse arranhando sua alma.

— A madeira... é rara... os entalhes... luxuosos... — sua voz, um murmúrio arrastado, envolvia Juan como uma névoa escura, fazendo-o sentir-se aprisionado em um pesadelo sem fim.

Em um frenesi voraz, Juan se atirou para dentro do baú, seus olhos brilhando com ganância ao se deparar com o tesouro escondido: joias cintilantes, lingotes de ouro reluzente e pérolas resplandecentes.

— Sim! Sim! Encontrei!! E é tudo é meu! Tudo! — Ele ria euforicamente, agarrando as preciosidades como um animal faminto se lançando sobre uma presa.

— Isto... Delicie-se, seu glutão...

Enquanto Juan se inebriava com sua pilhagem, o jovem misterioso começou a fechar lentamente o baú. Cada rangido do ferrolho era como uma nota sinistra em uma sinfonia macabra. Por fim, ele trancou o baú com uma chave antiga, deixando Juan aprisionado em sua própria cobiça.

— Desfrute de sua riqueza, seu insaciável. — A voz do jovem ecoou, impregnada de malícia, enquanto ele se afastava do depósito, mergulhando na escuridão da noite.

Puxou a cortina metálica com raiva, trancando com o cadeado. Colocou um cartaz na cortina: "INTERDITADO". Entre gargalhadas demoníacas, trocou o adesivo que escondia o verdadeiro número do depósito e fez o mesmo com a chave, revelando o verdadeiro número.

O jovem misterioso, agora saciado com a cena grotesca diante dele, passou a língua úmida pelos lábios, saboreando o gosto da perversidade no ar. Com um sorriso sádico dançando em seus lábios, ele desapareceu na noite, deslizando pela rodovia no carro de Juan, como uma sombra sinistra fugindo da luz do dia.

Juan, aprisionado no baú com suas joias, sentiu o pânico crescer à medida que o ar diminuía. O que realmente pertencia ao senhor Juan Vasconcelos, a verdadeira fortuna que seu pai lhe deixara, estava mais adiante, em um depósito diferente. Mas ele nunca chegaria a saber.

O depósito ficou esquecido, assim como Juan, seu novo e macabro habitante, trancado para sempre em seu próprio símbolo da gula e desespero.

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