II | GULA
"[...] Um banquete sob as chamas ardentes; Uma legião de almas perdidas sentou-se perante a rocha onde um anjo seria sacrificado. De tuas penas, sobraram cinzas. Do teu sangue, nenhuma gota. Da tua carne, fez-se o pecado."
[...]
A cena do crime era no máximo, incomum, aos olhos da grande Detetive Chou Tzuyu. Ao contrário do que se espera, ela não esboçou qualquer reação negativa ou demonstrou surpresa com o que via, muito pelo contrário, Sana poderia descrevê-la perfeitamente como se estivesse sentada de frente para a lareira lendo um conto natalino. Tzuyu faz sua primeira análise ao redor do corpo, acompanhada da substituta, que de alguma forma, tentava imitar os passos da mais experiente. Aquela frieza em seus movimentos, por alguma razão, impressionava Minatozaki. Seria esse o segredo para ser uma boa detetive? Ser o menos emotiva o possível? Naquelas circunstâncias, parecia impossível. Em cinco anos na I.C.S, Sana nunca tinha presenciado uma coisa daquelas - mesmo levando em consideração que a Inteligência Coreana de Segurança ficava, na maioria das vezes, com o trabalho mais sujo e pesado.
— O que me diz, Detetive? — pergunta Choi Yeonjun, afastando-se um pouco do corpo.
O ambiente não era um dos mais favoráveis, tratando-se de uma casa velha, empoeirada e caindo aos pedaços. Sobre a mesa da cozinha, há o que parecia ser o resto de um jantar que nunca fora terminado e que agora, servia de banquete para ratos e baratas. Debruçada sobre o prato principal, a primeira vítima. O rosto estava afundado sobre um prato do que era uma macarronada à bolonhesa. Seu corpo estava amarrado na cadeira onde sentava-se, e provavelmente, a vítima não se levantava dali havia um bom tempo, já que havia feito suas necessidades naquele local. Seu pescoço estava inchado, tanto quanto seus tornozelos e abdômen.
— Há um balde embaixo da mesa. — sinaliza Minatozaki Sana durante sua inspeção.
— O que há nele?
Sana se abaixa e puxa o recipiente para perto, saltando para trás ao verificar seu conteúdo.
— QUE NOJEIRA!
— Vísceras?
— Vômito.
— Presença de sangue?
— Eu sei lá e não vou olhar para isso de novo!
Chou bufa, tomando em suas mãos o balde e novamente, mantendo sua face estável. Ela verifica o material e pede para a perícia separar parte dele para análise. Minatozaki calça suas luvas, aproximando-se pela primeira vez do corpo, onde gentilmente levanta a cabeça para que todos pudessem observar melhor. A mandíbula parecia fora do lugar, provavelmente pelo impacto do corpo sobre mesa. Os olhos estavam um tanto saltados e tinham suas pupilas dilatadas.
— É, está morta. — conclui Sana.
— Muito esclarecedor, Minatozaki. — rebate Tzuyu — Policial, temos a identidade da vítima?
— Larissa Ayumi, 28 anos, cidadã Brasileira mas que vivia aqui há pelo menos dois anos.
— Parece que foi um jantar e tanto. — comenta Sana.
— Os vizinhos ouviram alguma coisa? — questiona Chou.
— Não, disseram que a moça era muito reservada, quase nem saía de casa. — responde Choi — Mas encontramos uma coisa interessante.
O homem se direciona até o armário próximo a geladeira, onde havia comprovantes de compras realizadas em um supermercado da região.
— O assassino fez compras? — Sana parecia querer rir da situação — Era alguém conhecido da vítima então? Preparou um jantar para depois matá-la?
— Improvável. — diz Chou — Se parece mais com uma prestação de contas.
— Como dívidas de agiota?
— Sim e não. Amarrar alguém na cadeira e fazê-la comer até vomitar e depois matá-la claramente se caracteriza tortura, mas não acho que se tratava de dívida com agiotas, eles costumam resolver de outra forma nestes casos.
— O que você sugere?
— Algo mais pessoal. Vamos enviar os materiais para o laboratório e fazer a necropsia, quero saber qual a causa da morte pois não há cortes ou buracos de bala.
Os agentes da perícia assentem, preparando o corpo para ser levado até o Departamento. Do lado de fora, Chou Tzuyu volta a acender um cigarro enquanto espera pelos companheiros. Do outro lado da calçada, a novata lhe olhava fixamente, quase como se tentasse olhar através de si. Minatozaki Sana ainda não sabia o que fazia de uma pessoa tão grosseira e autoritária a melhor detetive do D.I.C, mas de uma coisa ela tinha certeza, faria seu melhor para ser tão respeitada quanto Chou Tzuyu.
• • •
Passo atrás de passo, Chou Tzuyu percorre o Departamento, mantendo seu foco na porta gravada como "Dirigente Jeon Soyeon". Dois toques; A mais velha autoriza a entrada da detetive.
— Quando você ia me contar que vai colocar uma ex-agente da I.C.S no meu lugar? — questiona, furiosa.
— Você disse que pouco te importava, Chou.
— Me importa quando se trata daquela gente, eles são podres, Jeon!
— Escuta aqui, Chou, Minatozaki Sana é extremamente competente ao cargo, a passagem dela pela I.C.S só tem a acrescentar no currículo. — ela coloca seus pés sobre a mesa — Você me disse para buscar alguém digno e eu o fiz, não leve isso para o lado pessoal.
— Jeon, eu...
Mais batidas são ouvidas, incompletando a fala da Detetive Chou. Ela mantém sua postura séria, olhando por cima de seus próprios ombros o adentrar de Minatozaki Sana. A mais nova se aproxima da mesa da chefe, ignorando a presença pouco carismática posicionada ao seu lado.
— Jeon, eu gostaria de ficar com o caso. — dispara — O caso de Larissa Ayumi.
— Chou está cuidando disso.
— Eu vou mudar de função amanhã, esse caso não vai se resolver sozinho. — rebate Tzuyu — Dê o caso a ela, ela é a nova detetive.
— Você ia mudar sua função amanhã, Chou, mas enquanto o caso Larissa Ayumi não estiver resolvido, você continua desempenhando suas atividades no Departamento.
— E quanto a mim? — pergunta Sana.
— Ainda é muito cedo para que você assuma um caso dessa proporção, Minatozaki, entenda, Chou tem mais experiência. Você começa amanhã e os casos que surgirem serão seus, mas este, este em específico não te pertence, fui clara?
Minatozaki Sana engole em seco.
— Só mais este caso e eu estou fora. — adverte Tzuyu.
— Vou manter a sua sala.
— Não se preocupe, passe-a para a nova detetive, uma mesinha de canto está de bom tamanho para mim.
— Como quiser.
Sana dá as costas, preparando-se para deixar a sala quando ouve seu nome ser chamado.
— Ah, Minatozaki. — diz Soyeon.
— Sim?
— Aproveite esses dias para aprender com a Detetive Chou, é uma chance e tanto, ela tem muito a ensinar.
— Sim, senhora.
Desta vez Minatozaki se retira, caminhando com irritação de volta para sua pequena mesa no interior do Departamento. Atrás de si, Tzuyu apressa seus passos em uma tentativa de alcançá-la.
— Novata. — diz Tzuyu.
— O que você quer?
— Precisamos ir até o laboratório ver os resultados.
— Não ouviu? O caso é seu, não meu.
— E você é minha aprendiz aqui, ou seja, desamarre essa cara e me siga, o laboratório fica no oitavo andar. — ela começa a caminhar satisfeita por ouvir os passos de Minatozaki atrás dos dela — A propósito, há alguém lá que você precisa conhecer se quiser ser uma boa detetive.
— Mal posso esperar. — Sana murmura com ironia.
• • •
Fora do elevador, Minatozaki Sana faz sua primeira jornada até o laboratório da D.I.C, no oitavo andar do prédio. Chou Tzuyu está sempre a sua frente, hora ou outra, lançando-lhe um olhar de canto para se assegurar de que Sana não fugira ainda. Elas entram em uma pequena sala e Chou lhe indica o armário onde estavam os aventais descartáveis, luvas de látex e máscaras — para os casos de corpos em decomposição. A mais nova acompanha seus movimentos, trajando-se para adentrar o laboratório, onde Nicha Yontararak aguardava pelas detetives.
— Chou. — Minnie lhe cumprimenta assentindo.
— Nicha. — Tzuyu devolve o gesto.
— E você deve ser a nova, certo?
— Minatozaki Sana.
— É um prazer, sou Nicha Yontararak, mas pode me chamar de Minnie, legista chefe do Departamento.
Minnie lhes guia até a sala onde anteriormente fizera a necropsia de Larissa Ayumi. O corpo estava sobre uma maca, completamente desnudo e com pontos cirúrgicos por toda sua extensão.
— Nunca vi algo do tipo. -—comenta Nicha — Olhem só o tamanho do estômago.
Ela ergue um saco plástico com as duas mãos, o que parecia exigir muita força. Nele continha o órgão, que parecia muito maior do que normalmente se apresentaria. Exemplificando, o que deveria ter o tamanho de um abacate, estava, aproximadamente, com o de uma melancia.
— E ele estica. — conta — Nem te digo tudo o que encontrei dentro dele, ainda não foi possível analisar todas as amostras.
— É por isso que estava com o abdômen tão distendido. — conclui Chou — Causa da morte?
— Você não acreditaria. O pescoço estava inchado e a mandíbula quebrada devido ao esforço, mas não foi isso que a matou. Eu encontrei pontos hemorrágicos na maioria dos órgãos, principalmente no estômago. Essa garota comeu durante umas doze horas seguidas, o que causou o inchaço e consequentemente o sangramento.
— Está nos dizendo que a garota comeu até explodir? — pergunta Minatozaki.
— Sim e não, a causa da morte foi hemorragia interna, mas com toda certeza ela comeu até perder a consciência e aqui na nuca, quase imperceptível, ela levou uma pancada, o que provavelmente desencadeou a hemorragia no cérebro e consequentemente, sua morte.
— Temos um assassinato bem planejado, quem quer que tenha feito isso sabia muito bem o que estava fazendo. — conclui Sana — Podemos analisar os comprovantes de compra, talvez ir ao supermercado e dar uma olhada nas câmeras...
— O caso é meu, Minatozaki. — interrompe Tzuyu.
— Eu sei, mas talvez possamos...
— Não preciso que me diga como conduzir um caso, novata. Estou aqui antes mesmo de você sonhar com o meu cargo e sei perfeitamente como resolvê-lo. Não preciso que me diga o que fazer, está claro?
— Sim, senhora.
Tzuyu se retira do ambiente, deixando Minnie e Sana entre olhares e pensamentos sobre ela.
— Boa sorte, ela é uma megera.
— Vou precisar.
Minatozaki é a segunda a sair, despindo-se de seu avental e luvas, descartando-os no lixo infectante da mesma salinha por onde entrou. No corredor, ela pôde ouvir quando Tzuyu adentrou o elevador e sumiu pelo prédio, provavelmente a continuar o trabalho de um caso que deveria ser de Sana. É claro, oficialmente, ela era apenas uma agente em ascensão ao cargo, teria muito o que aprender para ser a mais respeitada detetive da D.I.C. Mas, por outro lado, todo aquele desafio de competir com Chou Tzuyu, alguém que até então, Sana costumava idolatrar, era melhor do que a mesma podia ter imaginado para sua chegada.
[...]
Um novo dia se iniciaria, uma terça-feira onde a D.I.C receberia, oficial e incertamente, sua nova detetive — e também, a segunda vítima do serial killer do momento.
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